I. UM NOVO SISTEMA JURÍDICO
EM RUPTURA COM O PASSADO
Transcrição parcial das alegações da parte
apelante nos autos de recurso cível n.º 17.476 da 3.º
Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
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Qual o significado, ao nível jurídico, de uma mutação histórica como a que o 25 de Abril originou em Portugal? A questão pode ser formulada de outro modo: o «sistema jurídico» português é, enquanto totalidade, o mesmo antes e após a Revolução de 1974?
Para o pensamento jurídico conservador o problema não se põe — pelo menos em princípio. Dado que a nova República não destruiu o poder de Estado da classe dominante, os servidores dessa classe no interior do aparelho judicial do Estado, procurarão «aplicar a lei» sem se questionarem. 10 Têm mesmo a tarefa facilitada pelo facto de a maior parte da legislação ordinária não ter sido tocada após a queda do Estado Novo. Nas relações emergentes do contrato de arrendamento urbano para habitação, tratar-se-ia de «aplicar» a Secção VI do Capítulo IV do Título Il do Livro II do Código Civil — em 1977 tal como em 1973. Nas relações emergentes do contrato de trabalho, tratar-se-ia de fazer outro tanto com a Lei do Contrato de Trabalho (Decreto-Lei 49.408 de 24 de Novembro de 1969). As leis ordinárias avulsas do novo regime seriam acidentes de percurso e não sinais da emergência de um outro sistema de valores que ao intérprete se impõe conhecer.
Os juristas conservadores tenderão, aliás, a entender a aplicação da lei como um acto puramente técnico, eternamente igual a si próprio e indiferente à «impureza» dos fenómenos políticos.
Não vale a pena demonstrar no espaço destas linhas porquê e como esta conceipção tem bases falsas. Resumidamente dir-se-á apenas que o legislador, ao produzir a norma, o faz sempre, ainda que o negue, de acordo com os interesses de um grupo social e contra os intereses de outro; o intérprete e o julgador fazem outro tanto — (evidentemente que, neste campo, muitos procedem como Monsieur Jourdain, falando em prosa sem o saberem...).
A Revolução de 1974 ea Constituição de 1976, não instituiram é certo um novo tipo de Estado, a 11 nova superestrutura política de uma nova classe dominante. No entanto, a irrupção das massas trabalhadoras portuguesas no palco da nossa História e a crise política (e de hegemonia) que afecta o bloco no Poder, produziram efeitos no Estado e nas formas como este se legitima. Um novo regime (uma nova relação de força entne dominantes e dominados e no interior dos dominantes) com um novo tipo de legitimidade, eis o que nos separa do defunto Estado Novo.
A estrutura jurídica é indiferente ou não a estas alterações? Sem descer ao fundo do abismo, direi que qualquer sistema jurídico contemporâneo coloca de dois modos a questão dos seus fundamentos últimos: através do conceito de ordem jurídica (ou sistema jurídico) e da figura da constitucionalidade.
As normas jurídicas não constituem um caos de justaposições nem se articulam arbitrariamente: são um todo organizado de acordo com princípios fundamentais, agrupam-se naquilo que os autores designam por ordens ou sistemas jurídicos; esses princípios fundamentais estão consagrados na Constituição e as leis ordinárias terão que se conformar com eles.
2.
No direito positivo português impõe-se ao intérprete em termos precisos, a consideração de 12 um sistema ou ordem jurídica, superior à norma e integrando-a. Assim:
— o número 1 do artigo 9:º do Código Civil dispõe que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo, em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que à lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
Por outro lado:
— o artigo 280.º da Constituição de 76 considera «inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» e dispõe que «as normas inconstitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais»;
— o artigo 282.º da Constituição prevê um sistema de fiscalização judicial da constitucionalidade, enquanto os artigos 277.º e 278.º impõem que o Conselho da Revolução fiscalize «preventivamente» a constitucionalidade de um diploma a promulgar.
— A Constituição é aliás bem clara na definição da inconstitucionalidade por acção (no já referido artigo 280.º), própria de diplomas que contrariam formal ou materialmente a lei fundamental, e da inconstitucionalidade por omissão (art.º 279.º), «quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais».
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A nova relação de forças, posterior ao 25 de Abril, alterou os fundamentos do sistema jurídico; há princípios (meta-jurídicos) em que esse sistema assenta e a consideração desses impõe-se ao intérprete; esses princípios têm aliás uma estrondosa consagração no direito positivo, ao nível da lei fundamental — a Constituição de 1976.
Entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976 esses princípios e fundamentos encontravam-se dispersos por um conjunto de leis constitucionais, das quais a mais importante era a Lei 3/74, que conferiu força jurídica ao Programa do Movimento das Forças Armadas.
Com a promulgação da Constituicão de 1976, a dispersão terminou e o intérprete tem à mão uma muito legível codificação dos fundamentos do novo sistema ou ordem.
Na sequência do processo revolucionário mais profundo e o mais fecundo da nossa História contemporânea, a luta do proletariado e dos seus aliados (nomeadamente a pequena burguesia pauperizada das cidades) «atravessou» os aparelhos de Estado «dividindo-os» entre eles próprios e o seu contrário. O 25 de Novembro possibilitou um reforço do poder de Estado mas a superestrutura jurídico-política não regressou por isso a 24 de Abril de 1974. A Constituição da II República democrática é a expressão de um novo equilíbrio de forças 14 sociais. Representa o afastamento do bloco no Poder de fracções da classe dominante (os latifundiários, os roceiros e certos sectores do capital monopolista) e consagra um conjunto de direitos políticos e económicos das classes dominadas. No plano do direito constitucional positivo a nova República «é um Estado democrático» que «tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras» (artigo 2.º da Constituição); está pois «empenhada» na sua própria «transformação numa sociedade sem classes» (artigo 1.º da Constituição).
Dado que o poder político não foi conquistado pelo proletariado e os seus aliados, a II República democrática não é um Estado de transição entre o capitalismo e o socialismo; os grandes princípios da lei fundamental bem como o conjunto de órgãos de soberania definidos e o papel reservado às organizações populares de base (órgãos autónomos das classes dominadas no decurso do processo revolucionário) fazem porém da nova Constituição portuguesa a expressão jurídico-política da pré-transição para o socialismo, o que a torna um documento incomum. A classe dominante não foi substituída, mas o texto fundamental aponta para um outro modo de produção e para a transformação da formação social portuguesa numa «sociedade sem classes». Lê-se no preâmbulo da Constituição que a «Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo 15 português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção «de um país mais livre, mais justo e mais fraterno».
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O conjunto de elementos díspares, contraditórios e até antagónicos que integram hoje o nosso sistema jurídico (herdados uns de um regime fascista, impostos outros, e nomeadamente a lei fundamental, por uma relação de força típica de uma crise revolucionária), dificultam a «reconstituição» da respectiva «unidade» de que fala o Código Civil. A forma de Estado vigente entre 1926 e 1974 tornava linear tal reconstituição: a hegemonia exercida no interior do bloco no Poder por um dos seus componentes tornava unívoco o seu discurso jurídico. As cúpulas do sistema jurídico — a Constituição de 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional, o Acto Colonial — correspondiam às suas bases ordinárias. Juristas recrutados nas classes dominantes — e nas suas classes e fracções de classe de apoio — e formados no interior de aparelhos ideológicos preservados, eles próprios, da contestação, encaravam a interpretação e a aplicação da norma 16 jurídica como assuntos de rotina. Por isso uma e outra eram entendidas por advogados e por magistrados como simples questões técnicas e o estatuto e a situação dos juristas como mero problema de índole corporativa. Ambas são hoje, porém, trabalhos de Hércules, confrontadas com um passado recente que se julgava eterno e que muitos pretendem seja ainda presente.
Os juristas conservadores, disse-se acima, tentarão ignorar o problema de saber se os fundamentos da ordem jurídica portuguesa estão hoje de acordo com o direito ordinário legislado e de que modo condicionam a interpretação desse direito: propor-se-ão pois ler a norma (em grande medida herdada do regime anterior) com os olhos sem espanto com que durante décadas o fizeram.
Os juristas que se propõem apoiar as lutas populares e colocar a sua profissão ao serviço da «decisão» do povo português de «abrir caminho a uma sociedade socialista» — transcrevo, uma vez mais, o preâmbulo da lei fundamental — encontrarão nos princípios basilares da ordem jurídica consagrada na Constituição a fundamentação de uma interpretação e de uma aplicação em ruptura com o passado.
Maio de 1977
Amadeu Lopes Sabino