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— Afinal, expliquem-nos o que vêm aqui fazer. Não acham um sítio perigoso para andarem a passear? E parece que escolheram o dia! Nem de propósito!
— Andam a fugir a alguém? Se calhar fizeram asneira grossa! — disse o outro, divertido.
— Olha, olha! — a cabeça da Ana assomava naquele momento no meio das telhas. — Outro! Mas afinal quantos são vocês? Um batalhão inteiro? Vêm fazer outra revolução cá em cima, no telhado?!
Os miúdos, sem saber muito bem o que dizer, estavam calados que nem uns ratos. Sentiam-se apanhados de surpresa em surpresa, e não sabiam muito bem que volta haviam de dar à situação, para conseguirem o que tanto queriam.
Foi Ana que os tirou daquela situação aflitiva. Encheu-se de coragem e lá conseguiu trepar até cima. O telhado era muito pouco inclinado e a superfície rugosa das telhas oferecia uma certa segurança.
— Dizemos-lhe já o que estamos aqui a fazer se nos explicar o que se está a passar ali em baixo! — exclamou, de braço esticado, apontando, com o dedo, a Praça mas sem olhar para baixo. Pelo sim, pelo não ... Sempre eram quatro andares!
— Então tu não sabes? É uma revolta! Estamos aqui para mudar o governo ... — respondeu o primeiro soldado.
— É mas é uma revolução! — interrompeu o segundo soldado. — Viemos dar liberdade ao povo e acabar com a guerra nas colónias! Aquele ali — e apontava para baixo, mostrando o soldado do megafone — é o nosso comandante: O capitão Salgueiro Maia! Os oficiais combinaram tudo e nós, apoiámo-los! — e os olhos brilhavam-lhe de orgulho. — Todos queriam vir ...
— Ora! — resmungou o primeiro. — Eu vim porque os meus colegas vieram e eu não quis ficar mal, mas...
— Mas o quê?! Só veio quem quis. À uma e tal da manhã acordaram-nos e explicaram-nos que era para marchar sobre Lisboa e acabar com esta situação em que estamos. Ninguém foi obrigado a vir!
— E já viram?! Mal sabemos atirar. Só temos três meses de instrução. Se começamos aos tiros vamos é acertar uns nos outros! — continuou o primeiro soldado.
— Se calhar, o que tu tens é medo!
— E os carros?! Estão a cair de velhos! Até está ali um com a metralhadora presa por arames!
— E isso que interessa?! Não vês que temos o povo todo do nosso lado? — e o segundo soldado continuou, voltando-se para os miúdos: — Quando chegamos a Lisboa tínhamos o moral a cem por cento. Quando vimos o povo todo a apoiar-nos, passou para mil por cento!
— Pois é, mas o povo vira com facilidade. Hoje dá palmas, amanhã lembra-se tanto de nós como do D. Afonso Henriques!
— Que importa! Estamos a fazer uma revolução justa e isso é que é importante! — rematou o segundo soldado. — Por mim, já sonhava com isto há muito tempo!
"Meu Deus!" pensou o Filipe, com o coração aos saltos. "Se calhar, agora o pai já vai poder voltar! Quem dera que o meu irmão já soubesse!"
— Nós vimos muita tropa no Terreiro do Paço. Também estão do vosso lado? — perguntou o Luís.
— Claro, claro! Estão quase todos do nosso lado!
— E como é que combinaram vir todos para Lisboa, ao mesmo tempo? — quis saber a Ana.
— Não estamos todos em Lisboa! Há tropas amigas a movimentarem-se por todo o País. Mas saímos dos quartéis todos à mesma hora, para a surpresa ser maior!
— Mas como conseguiram? — insistiu a Ana.
— Isso foi um segredo que só os oficiais tinham. Nós somos de Santarém. No caminho para Lisboa é que soubemos que o primeiro sinal foi dado pela rádio. O locutor disse: "Faltam cinco minutos para as vinte e três horas". Era o sinal combinado!
— Nós ouvimos, nós ouvimos! — gritaram a Ana e o Luís. O Filipe, esse, estava tão absorto a pensar no regresso do pai que já nem ouvia nada.
— Ouviram? Claro, muita gente deve ter ouvido mas só os nossos oficiais sabiam o que queria dizer: "Preparar!"
— E depois? — perguntaram, de novo o Luís e a Ana.
— Depois, por volta da meia noite e meia hora, na Rádio Renascença, passaram uma canção de um cantor que já esteve preso várias vezes. Foi a "Grândola, Vila Morena". Era outro sinal! Mal ouviram a "Grândola", todos os oficiais revoltosos apoderaram-se dos quartéis e foram falar com os soldados. De aí em diante ... já nada nos podia parar!
- E o governo?
— Está ali, dentro do Quartel do Carmo.
— Ora, ora! Ali dentro só está o Marcello Caetano e um ou dois ministros! — disse o primeiro soldado. — Os outros não se sabe ao certo onde estão ...
— Se for como tu dizes, devem andar fugidos! — interrompeu o segundo soldado, com um sorriso vitorioso. — Mas quando lhes deitarmos a mão, não lhes vamos fazer mal. Não ouvem o nosso capitão sempre a repetir que não quer magoar ninguém?! Portugal agora vai passar a ser um país ... lindo! — e os olhos humedeceram-se-lhe.
— Vamos a ver ... Quem viver, verá! — sentenciou o primeiro soldado, fazendo uma cara céptica.
— E quem é aquele, encavalitado em cima da guarita? Não pode ser da tropa! — concluiu o Luís.
— Ah, aquele! Não sei o nome dele mas está sempre a aconselhar o pessoal a ter calma ... Sabes que há muitos civis que vieram dar uma mãozinha! Até nos disseram quais eram os melhores sítios para vigiar, aqui no Largo ...
— Estão mas é para aí a empecilhar ... Tomara que esta história acabe depressa! — desabafou o primeiro soldado.
— Não vês que o povo ansiava também por isto há muito tempo? Nunca mais aprendes! Isto é mais uma festa que uma revolução! Estamos todos unidos ... — disse, entusiasmado, o segundo soldado.
— Ora, ora, ora! — resmungou o outro.
— Filipe! Que é que tens? Estás tão calado! — exclamou a Ana, estranhando o silêncio do amigo.
— Hummmmmm ...
— Deixa lá, já vais ver o teu irmão!
— Sim ... é isso ...
— E vocês afinal ainda não nos explicaram a razão por que vieram passear para o telhado!
— É um bocado complicado — começou o Luís. — Mas pensando bem ... vocês até nos podiam ser muitíssimo úteis!
— É verdade! Ao fim e ao cabo estão aqui em cima, de braços cruzados ... Vêm a calhar para nos dar uma ajuda!
E os três contaram aos soldados a história em que se tinham metido.
— Porque é que não foram à polícia em vez de andarem nesta dança? O vosso amigo pode estar a correr perigo! — ralharam os soldados.
— Pois é, mas agora já não há remédio! — respondeu o Luís, para simplificar.
— E como vêem, temos de actuar o mais rápido possível!
— Lembrei-me de uma coisa ... Se tirássemos umas telhas, entrávamos logo na casa! Se formos pelo alçapão das escadas, eles podem ver-nos e têm tempo de fugir, enquanto descemos! — lembrou o Filipe.
— Boa ideia! — aprovou o Luís. — Acham que é muito difícil abrir um buraco no telhado? — perguntou aos soldados.
— Não, afinal de contas é só deslocarmos algumas telhas ...
E, pousando as metralhadoras junto da chaminé, começaram a deslocar as telhas no sítio que o Luís sugeriu.
— O andar ... só tem uma habitação? — lembrou Ana, a medo.
— Só faltava agora descobrirmos que, naquele maldito bloco, a direcção estava incompleta ... E abrirmos um buraco na casa do vizinho! — desabafou o Luís à guisa de resposta.
— Credo, não deitem azar!
— Cá está o buraco aberto. Dá directamente para o forro. Agora um de vocês tem de entrar e procurar uma abertura para a casa ... Ou julgavam que as telhas eram o tecto da sala de visitas? — cochichou um dos soldados.
— Cuidado! Vocês sabem no que se estão a meter? Pode ser muito perigoso! — avisou o outro.
— Também estamos a fazer a nossa revolução! — respondeu-lhe o Luís, sorrindo.
— Se é assim ... — respondeu-lhe o segundo soldado, olhando-o com simpatia. — Tenho pena de não vos poder ajudar mais, mas não podemos abandonar os nossos postos ...
Quase sem ninguém dar conta, o Filipe esgueirara-se pelo buraco entre as telhas. Estava escuro e muito sujo, no forro, mas teve o bom senso de esperar que os olhos se habituassem à escuridão, e foi marinhando como um gatinho até encontrar um alçapão de madeira tosca. Há muito tempo que não devia ser aberto, pois apesar de ter conseguido dar a volta à maçaneta foi impossível levantá-lo. Parecia ter as bordas coladas ao forro.
— Luís! Preciso da tua ajuda! Encontrei o alçapão mas não consigo levantá-lo! Está pregado ao tecto, cheio de lixo à volta ...
A cara do Filipe emergia, enfarruscadíssima, do buraco no telhado.
— Peguem o meu canivete! — ofereceu um dos soldados. — Dá jeito para raspar ...
— E esta faca do mato ... dá sorte! Comprei-a a um sargento que a trouxe da Guiné e nunca mais me separei dela! — disse o outro.
O Luís e o Filipe mergulharam na escuridão. Tentando não fazer barulho, conseguiram chegar ao alçapão. Os momentos seguintes eram decisivos: se dessem por eles estava tudo perdido!
Muito devagarinho começaram a raspar as bordas com o canivete e a faca de mato que os soldados lhes tinham emprestado. Foi difícil, de qualquer maneira, abrir o alçapão, porque este, além do lixo acumulado pelos anos, estava muito perro e empenado. Mas valeu a pena!
Mal conseguiram abrir uma frincha, o Filipe teve de fazer um esforço para não gritar de alegria. Mesmo por baixo do alçapão, sentado numa cadeira, de pés e mãos amarrados, estava o Nuno! Até que enfim!