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Desceram os três pelo Largo abaixo, descoroçoados e sem saber muito bem o que fazer. A desilusão fê-los sentir o cansaço que a excitação e o nervosismo tinham afastado. Apesar das sanduíches terem sido engolidas à pressa, há tão pouco tempo, sentiam fome, sede e uma sensação de abandono nada agradável.
— Como é que nos enganámos?!
— E agora? O que fazemos?
O Filipe, esse, não dizia nada. Passara de uma espécie de euforia para um desalento total.
— E se fôssemos ali abaixo ... comer uns pastéis naquela loja muito antiga? — lembrou a Ana, quase a medo. — Tenho fome e frio ...
— Talvez não seja má ideia — respondeu o Luís. — Descansávamos um bocadinho, comíamos uns pastéis e revíamos a situação. É evidente que nos enganámos ... Ainda bem que trouxemos o bloco!
— Mas não havia no roteiro mais nenhum largo começado por "Ga" ... — gemeu o Filipe. — Se calhar ... imaginámos uma história maluca a partir de um bloco que pertencia a um desconhecido qualquer ...
O Luís passou-lhe o braço à volta do pescoço.
— Anima-te pá! De certeza que não é nada do que estás para aí a pensar! Agora vamos comer e descansar um bocadinho. Depois até pensamos melhor! Revemos o mapa e o bloco. Vais ver que vamos descobrir o gato!
Entraram os três na pastelaria. Era um estabelecimento antigo, muito engraçado, com as paredes forradas a azulejos azuis e amarelos e vitrines carregadas de garrafas, cheio de mesas e cadeiras, muito sólidas e escurecidas pelo tempo. Havia um balcão, ao centro, onde várias pessoas em pé, se apinhavam, esperando qualquer coisa.
— Três pastéis por favor! E três meias de leite! — pediu a Ana a um empregado idoso que se inclinou para eles, já sentados a uma mesa.
— Os meninos preferem esperar ... ou querem da fornada anterior? Está quase a sair outra fornada e os pastéis vêm mais quentinhos! — aconselhou o homem com um ar paternal, colocando em cima da mesa dois frasquinhos com açúcar e canela.
— Bom, não sei ... ainda temos muito que andar hoje!
— Temos tempo — decidiu o Luís. — Lembra-te que ainda temos de rever aquilo ... e se calhar leva algum tempo. Nós esperamos! — disse para o empregado. — Assim, vamos descansando e pensando ...
— Mas, por favor, traga-nos já as meias de leite! — pediu a Ana. — Estou gelada!
O empregado fez um leve aceno afirmativo com a cabeça e afastou-se na direcção do balcão. Quando voltou, trazia, além das meias de leite, um prato com seis pastéis de Belém a fumegar.
— Tiveram sorte — disse, sorrindo. — Saíram mesmo agora! Vão ver como são bons, assim quentinhos!
— Mas só pedimos três — balbuciou a Ana.
O Luís deu-lhe um pontapé por baixo da mesa e deixou o empregado afastar-se.
— Temos dinheiro, não temos? Se não te apetecer, não comas! Por mim, acho que engulia uma dúzia, num abrir e fechar de olhos! — e juntando a acção à palavra, comeu um de uma só vez, sem dar tempo à irmã de o polvilhar, como aos outros, com açúcar e canela.
— Que grande bruto! — exclamou a Ana. — Não vez que é muito melhor saborear que devorar dessa maneira estúpida?
Depois dos pastéis e da meia de leite quentinha sentiram-se mais reconfortados. Até o Filipe, apesar da desilusão sofrida, comeu com apetite a sua dose. Os pastéis eram óptimos!
— Não sei como vamos abrir o mapa no meio disto tudo. A mesa está cheia de coisas e não sei se temos luz suficiente para observarmos aqui o bloco! — disse o Luís.
De facto a loja era pouco iluminada.
— E isto cá dentro é uma confusão, cheio de gente ... Se fôssemos outra vez para aquele banco, onde estivemos a comer as sanduíches? — sugeriu o Filipe, um pouco mais animado.
A Ana estivera sempre muito calada e, enquanto comia, fixava um ponto de um azulejo a um canto da parede, alheia à confusão e ao barulho que reinava à sua volta.
— Tenho estado cá a pensar — disse, de repente, sem ouvir a sugestão do Filipe. — Se calhar, vocês vão achar-me maluca, mas cá vai: Lembram-se daquele Largo onde estivemos há dois dias? Aquele das ruínas muito antigas com o eléctrico a entrar lá dentro?
— Aquele Largo que tinha um quartel e um soldado que apanhou com caquinha de pomba no nariz e mesmo assim quase não se mexeu? — lembrou o Filipe.
— E daí? — perguntou o Luís. — A que propósito vem isso agora?
— Pois é! — concluiu a Ana. — Vocês lembram-se do nome do Largo? Largo do Carmo! Chama-se Largo do Carmo!
— Não percebo! Que é que tem o Largo do Carmo a ver com esta história toda?
— Está a delirar, a minha maninha! Estas confusões todas deram-lhe volta à cabeça ... Vamos mas é ali para fora ver de novo o roteiro!
O Luís chamara o empregado. Pagou-lhe e ele tirou pachorrentamente as coisas de cima da mesa, para um tabuleiro redondo, de metal. Parecia interessado na conversa porque não despegava do sítio. Estaria à espera de uma gorjeta? Então ele não sabia que naquelas idades o dinheiro não abundava?
— Bem! Vamos embora! — concordou a Ana.
Saíram os três cá para fora. Estava um dia lindo e, àquela hora, a intensidade da luz era tão forte que por uns breves instantes se sentiram quase cegos.
— Vocês não vêem? — berrou a Ana, já impaciente. — Não vêem as coincidências entre as palavras Galvão e Carmo?
Isto é, — continuou entusiasmada — à primeira vista não há grandes semelhanças, claro. Mas lembrem-se das letras que faltavam; era um "I", que tanto podia ser uma letra inteira como um pedaço de um "L" — que foi o que nós pensamos — como um resto de um "R". O "G" de "Galvão", tanto pode ser um "G" como um "C". Lembrem-se que o bloco está cheio de marcas e risquinhos, porque está muito velho, e até lhe passou um pneu por cima. Assim — continuou — o "Gal" transforma-se em "Car". Estão-me a perceber?!
O Luís e o Filipe olhavam para ela meio assarapantados. Quem se havia de lembrar daquilo?
Mas a Ana continuava o seu raciocínio, sentindo cada vez mais que aquele podia ser o caminho certo.
— O "V" estava meio apagado, lembram-se? Pode muito bem ser um resto de um "M" em vez de um "V". O último "A" fomos nós que inventamos a partir da consulta do mapa, lembram-se? Não o vimos no bloco, disso tenho eu a certeza! E lembrem-se que um "M" é muito mais gordo que um "V". Portanto, desaparece o espaço para o último "A". Quanto ao "O" está bem gravado no bloco, por isso não há dúvida nenhuma em relação à ultima letra. E cá está: "Largo do Galvão", transformado em "Largo do Carmo"!! Querem ver? — e, pegando no mapa, desenhou na margem:
G A I V O
C A R M O
O Filipe e o Luís tiveram de fazer um certo esforço para conseguirem seguir o raciocínio da Ana. Ficaram um bom pedaço de tempo sem conseguirem articular palavra, a pensar naquilo.
— Perderam os dois a voz? Não é boa a minha ideia? — perguntou Ana, já assustada com todo aquele silêncio.
— Não, não, pelo contrário! — respondeu o Luís. — Tenho estado a tentar perceber as modificações e também me parece que encaixam ...
— Podíamos confirmar ... mas falta a lente! Esqueci-me dela em casa! — gemeu o Filipe, outra vez muito nervoso.
— Ora! Nem precisamos de confirmar nada! Lembrei-me agora de mais outra coisa: as casas no Largo do Carmo têm muitos andares!
— Sim, sim, também me lembro! É um Largo pequeno, com poucas casas, muito antigas e todas bem altas!
— Estão a ver o nosso azar? Passámos quase ao pé, hoje de manhã! Acho que fica muito perto daquela zona em que estavam os soldados!
— Ih! Tinha-me esquecido daquela confusão! Parecia mais um filme que a realidade! Será que ainda lá estão todos?
— Se calhar desvaneceram-se no ar, como nos sonhos! — riu-se o Luís. — Pode ser que já se tenham ido embora, mas que estavam lá, estavam de certeza!
— A chatice maior vai ser fazer outra vez o caminho todo, agora ao contrário ... Ainda temos dinheiro para os bilhetes? Gastámos muito na confeitaria?
— Esta estava tão concentrada a transformar letras que nem deu conta de mais nada — continuou o Luís. — Gastámos ... uma fortuna! Mas parece que valeu a pena: foram uns pastéis muito inspiradores!
— E se fosses gozar a tua avó gorda? Tens é inveja de não teres sido tu a descobrir tudo!
— Olha a convencida! Ainda estamos para ver se descobriste alguma coisa!
— Por amor de Deus, calem-se! — berrou o Filipe. — Vamos mas é apanhar o eléctrico. Senão têm de me ir levar ao hospital dos malucos. Sinto que vou perder o juízo a todo o momento!
Apearam-se do eléctrico no mesmo sítio onde o tinham apanhado de manhã, e perguntaram a uma senhora que passava o caminho para o Largo do Carmo. A senhora foi muito simpática, explicou tudo com todo o cuidado, mas olhou-os com uma cara esquisita.
— Vocês andam aqui sozinhos, os três?
"Mau", pensou o Luís, "A mesma história de hoje de manhã, no comboio. Será que se nota na nossa cara que nos metemos numa grande alhada?".
— Tenham muito cuidado por onde forem; não vão pela rua do Alecrim; está cheia de tropa! E está o trânsito todo engarrafado ... e há tanques e jipes carregados de soldados! Mas o que é que vocês vão fazer ao Carmo, afinal?
— É que ... combinamos encontrar-nos com uns amigos nossos — mentiu a Ana.
— Mas que sítio que vocês arranjaram para se encontrarem com os vossos amigos! Hoje a Baixa não dá para se passear, meus filhos! Não ouviram no rádio? E os vossos pais? Deixaram-vos sair assim?
E a senhora afastou-se, a abanar a cabeça, deixando os três perplexos.