L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Raptado


capa

Um carro aproximou-se devagar do edifício do Reactor e parou em frente do maciço de arvoredo onde se encontravam os miúdos.

— É o carro do tio Lima! — exclamou o Filipe, tão espantado que se esqueceu por completo que não podia falar alto.

O tio Lima era um primo afastado da mãe dos gémeos, vinha jantar muitas vezes a casa deles e, por coincidência, colega de trabalho do Dr. Barroso. Nunca casara e não tinha filhos, por isso tinha uma predilecção especial pelos gémeos.

— Não pode ser! No escuro os carros parecem-se todos uns com os outros! — o Luís, aflitíssimo e em surdina, tentava acalmar as hostes.

— E tu és um nabo! Até parece que não percebes nada de automóveis! É o carro do tio Lima, pois! — o Filipe, excitadíssimo, mal podia conter o tom de voz.

Do carro saía, naquele momento, um sujeito alto, de bigode, barba e cachimbo. Não havia dúvidas. Era o Eng. Lima.

O Filipe não aguentou mais. Saiu do esconderijo e correu na direcção do tio. Mas, de repente, estacou. É que por trás do bigode, da barba e do cachimbo parecia estar uma cara que não era a do tio! Não teve tempo de reflectir; sentiu uma dor, levou a mão à cabeça, deu uns passos atrás e caiu no chão, desmaiado, por sorte atrás de outro arbusto.

Os outros três tinham assistido a tudo sem poderem fazer nada. Quando o Filipe correu para aquele que parecia ser o Eng. Lima, saíra do outro lado do carro um indivíduo gordo e baixinho que, por trás, lhe aplicara um valente golpe na cabeça!

Mas o Nuno, ao ver o irmão cair, desamparado, no meio das ervas, não aguentou e correu em seu socorro. Foi logo apanhado pelo indivíduo gordo! Era evidente que o tinham confundido com o irmão, caído atrás do arbusto. Agarraram-no, taparam-lhe a boca com um lenço e enfiaram-no dentro da mala do carro.

Foi tudo tão rápido que o Luís e a Ana ficaram imobilizados pelo medo.

Houve um momento de hesitação entre os dois homens. Falavam em voz tão baixa que era impossível perceber-se o que eles diziam. O "Eng. Lima" ainda se dirigiu para os arbustos, fazendo girar uma lanterna em várias direcções, mas desistiu quase logo. Era evidente que dispunha de muito pouco tempo e qualquer manobra mais ruidosa poderia chamar a atenção dos guardas que estavam ali, a muito poucos metros de distância. Os miúdos, esses, sentiam-se quase transformados nos arbustos em que se escondiam. Até lhes parecia que tinham deixado de respirar.

Entretanto o suposto tio dos gémeos deslizara até ao edifício do reactor e, servindo-se de uma gazua e da lanterna, abrira com facilidade a porta principal. O gordo sentara-se outra vez no carro e acendera um cigarro, enquanto esperava. Notava-se que estava muito atento aos barulhos que vinham da mala do carro. Era o Nuno que estrebuchava o mais que podia mas, sozinho, não conseguiria soltar-se.

desenho

Atrás das moitas, nenhum deles sabia o que fazer. Estavam demasiado afastados uns dos outros para poderem planear qualquer coisa e, também, muito assustados e chocados com a situação. Era evidente que aquele desconhecido alto que desaparecera dentro do edifício não era o Eng. Lima, que conheciam tão bem, embora no escuro parecesse igual. Quem seria?!

Entretanto, trazendo uma pasta, o "Tio-Engenheiro", saía agora do edifício. Trocou algumas palavras com o outro sujeito, voltou atrás para fechar a porta, deu a volta ao carro para se certificar que a mala estava bem fechada e o carro arrancou na direcção da Portaria. Ouviram-no abrandar e de novo acelerar, desta vez a toda a velocidade. Depois fez-se um silêncio total.

— Filipe! Estás aí, pá?! — era a voz do Luís, que saía, abafadíssima, do meio de um cedro.

— Meu Deus! Que fazemos agora?! Nem consigo acreditar no que aconteceu! — a vozinha da Ana também soava muito esquisita. E não me consigo mexer! — gemeu. — Tenho o corpo todo a dormir!

O Luís foi o primeiro a sair do meio dos arbustos. Se houvesse um pouco mais de luz, a Ana teria apanhado um susto porque o irmão não aparentava ter pinta de sangue. Não conseguia sequer articular palavra. Parecia hipnotizado.

— Tens a certeza que não estamos a sonhar? — a voz da Ana tremia. Aproximou-se do Filipe e começou a limpar-lhe a roupa das folhas. "E agora?" Diziam os olhos da Ana, procurando o irmão. Não conseguia dizer mais nada. Sentou-se no chão, pôs a cabeça do Filipe no seu colo e começou devagarinho a esfregar-lhe a cara com as duas mãos. Aos poucos o Filipe parecia voltar a si.

— Filipe! Filipe! — chamaram os dois. — Estás melhor?

— Tenho a certeza que não era o Tio Lima ... — respondeu o amigo à guisa de resposta, com uma voz muito fraquinha. — Se fosse ele não me deixava cair. Mas o que é que me aconteceu? Onde ... onde está o meu irmão? Onde está o Nuno?

O Luís ajudou-o a levantar-se e passou o braço do amigo sobre o seu ombro.

— Aconteceu uma coisa terrível — gaguejou. — Parece ... Parece ... O teu irmão foi raptado pelos bandidos! — e segurou-o com mais força porque o Filipe ameaçou cair outra vez.

— Mas nós vamos libertá-lo, está descansado! — acrescentou a Ana, recuperando o fôlego e ajudando o irmão a segurar o Filipe.

— Olhem ... ali! — e o Luís apontou para um ponto no chão. No sítio em que o carro parara estava um bloco pequenino, daqueles de apontamentos, meio amassado.

— Vamos levá-lo! — disse a Ana. — De certeza que tem impressões digitais!

— Sim, de certeza que é deles! Deve ter caído do bolso do gordo quando ... — e o Luís não teve coragem de acabar a frase, porque a cara do Filipe metia pena.

desenho

Precipitaram-se para o bloco. Assestaram as lanternas e com a ajuda do luar puderam ver que era um bloco vulgaríssimo, meio sujo e a que faltava já grande parte das folhas. Naturalmente, uma das rodas passara-lhe por cima, porque se notavam as marcas do pneu.

— Azar! Não tem nada escrito! — continuou o Luís, folheando o bloco. — Todo em branco!

— Não faz mal! Entregamo-lo à polícia!

— À polícia? Àqueles inteligentes que andaram lá por casa e não descobriram nada? Vamos mas é procurar nós as impressões digitais. Os gémeos têm umas poucas de lupas. — concluiu o Luís.

— O.K., vamos depressa para casa e, quando chegarmos, pensamos melhor no que havemos de fazer! — disse o Filipe.

— Tenho a certeza que aquele bloco nos vai dar uma pista! Vais ver, vai ser a nossa salvação! — a Ana, já mais calma, tentava, sem saber muito bem como, animar o Filipe.

— Que bestas! — articulou este, por fim. O sangue começava a voltar-lhe à cara. — Que raio de plano diabólico! Chegarem ao ponto de se fazerem passar por outras pessoas ... Mascararem-se assim! Grandes brutos! Por uma porcaria duns papéis velhos!

Corriam agora pelo mesmo atalho por onde tinham vindo. Depois do enorme abalo que todos tinham sofrido, a corrida fazia-os sentir vivos e voltavam a si. Filipe parecia ter recuperado e corria um pouco mais à frente. Tinha perdido a lanterna e os outros dois ouviam-no falar sozinho, sem parar, deixando escapar palavrões. De vez em quando, viam-no lutar com um adversário invisível, dando murros e pontapés no vazio.

— Deixa lá, faz-lhe bem ... ao menos vai desabafando — disse o Luís, segurando a irmã.

— Tens razão, claro, mas faz-me tanta pena ... Coitado do Nuno! Onde estará ele agora? E como se sentirá? Tomara que não lhe façam mal!

— Vocês acham que podemos descobrir quem são aqueles bandidos pelas impressões digitais? — o Filipe voltara-se de repente para trás enquanto corria. Parecia que não ia a dar ouvidos à conversa dos outros dois e, afinal, saía-se com aquela.

— Claro, claro, de certeza! — responderam, à uma, o Luís e a Ana.

Estavam já muito perto de casa. As ruas pareciam adormecidas mas, estacionado quase à porta do prédio deles, um carro atroava os ares com o rádio, ligado muito alto. Dentro, duas pessoas conversavam.

— Como é que se pode namorar assim, com o rádio aos berros? — interrogou-se Ana, entrando em casa.

Mas, os três amigos, ainda puderam ouvir o anúncio do sinal horário, que saía muito distintamente de dentro do carro: "Faltam cinco minutos para as vinte e três horas".


Inclusão: 29/04/2020