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A primeira grande emoção de Abril 74, a primeira imagem da revolução em marcha, foi a mesma que já tinha observado em Paris, no Maio de 68: a fraternidade — a grande fraternidade que iluminava os rostos da massa com uma nova claridade. A vida voltava a ter sentido. Éramos o sujeito da história.
Esta imagem radiante, pude admirá-la no desfile do 1º de Maio, algumas horas após o meu regresso (provisório) do exílio. Uma imagem com uma carga emocional fortíssima, ao ponto de esmagar a consciência, de esbater a luta de classes, de eliminar as contradições.
A primeira grande manifestação de massas que iniciava um longo período insurreccional revelava pelo menos três grandes fraquezas que lhe seriam fatais quando a questão do poder se pôs em termos concretos: salpicava a calçada. A menos que a memória me traia, não creio ter visto uma só faixa recordando o sacrifício supremo dos últimos mártires pela liberdade; aqueles que na quinta-feira, 25 de Abril de 1974, caíram baleados pelos agentes da Pide. Desde então, sempre fiquei surpreendido com a cortina de nevoeiro que envolveu a memória dos acontecimentos da rua António Maria Cardoso e do nome das vítimas.
E, a meu ver, estes acontecimentos eram de uma importância vital: o cerco espontâneo da sede da PIDE pela massa apontava o caminho acertado para possibilitar o triunfo futuro do movimento revolucionário: extirpar pela raiz os órgãos repressivos, completamente desnorteados pela fraqueza política momentânea da classe dirigente. Nem era demasiado cedo nem demasiado tarde. Era o momento, que se desperdiçou.
Que constem aqui os nomes daqueles que morreram, indicando o caminho certo: Fernando Carvalho Gesteira, 18 anos; João Guilherme Rego Arruda, 20 anos; Fernando Luís Barreiro dos Reis, 24 anos; José James Barneto, 37 anos.
2) Os limites estreitos do nacionalismo e do patriotismo sempre tolheram o movimento revolucionário e a luta pelo socialismo. O erro é histórico e ficou profundamente vinculado na consciência do proletariado: submeter a luta pelo socialismo à aliança com as camadas intermédias da burguesia, na esperança de facilitar o triunfo de uma revolução democrática e nacional que afinal não existia... Os sentimentos patrióticos acabaram por abafar os sentimentos internacionalistas.
A revolução em Portugal, como uma componente da revolução mundial; a classe operária de Portugal como um destacamento do proletariado internacional; as lutas de libertação nacional nas colónias no após-guerra como a ponta de lança da revolução mundial — tais ideias nunca foram dominantes no seio do proletariado.
Não é de espantar que este 1º de Maio florido e prazenteiro saudasse os militares do MFA como os libertadores do povo e da Nação. Hoje como ontem, é necessário enraizar no coração da massa esta ideia simples: os verdadeiros libertadores, os autores políticos da queda do regime fascista, foram os povos das colónias africanas que se bateram de armas na mão durante treze anos contra uma burguesia portuguesa feroz, que dedicava metade do orçamento de estado ao aparelho militar, ao esforço de guerra.
Nesse 1º de Maio, desapareceram-me de entre as mãos, num ápice, a centena de exemplares de um jornal que publicava em Paris com outros camaradas, o Jornal Português, e no qual afirmava isso mesmo. Foram, claro, apenas alguns grãos de areia na grande máquina consensual que se espalhava pelas ruas fora, aos vivas aos militares, que erigia em heróis os carrascos que durante tantos anos a fio sangraram os povos africanos para que singrasse a expansão mercantil da burguesia.
3) A ideologia pequeno-burguesa penetrou profundamente um movimento operário que sempre evitou o combate frontal com o inimigo de classe. A ideologia dominante no movimento operário sempre foi a ideologia reformista social-democrata. O velho PC foi de facto um partido burguês para operários que incarnou a resistência de todas as camadas sociais em oposição ao fascismo. Os acontecimentos do 25 de Abril irão fornecer à burguesia portuguesa o ensejo para catapultar para a vida política uma nova força aparentemente virgem: o partido socialista. Uma força política inteiramente forjada no exterior pela mão da social-democracia francesa e alemã, e a quem o partido de Cunhal vai passar o testemunho.
Cunhal e Soares são pois os dois dirigentes políticos civis, aclamados pela multidão nesse 1º de Maio. O primeiro, à cabeça do PC, é altamente responsável pela limitações, os desvios, as trapaças do movimento revolucionário. O segundo, um pró-imperialista e neocolonialista declarado, vai mobilizar à escala nacional e internacional toda a energia da social-democracia para abafar o movimento insurreccional nascente, não hesitando no momento próprio em prestar mão forte à contra-revolução militar do 25 de Novembro de 1975, inspirada pelo imperialismo americano.
A multidão emocionada envolve os dois comparsas, esmaga-os de afeição. Não posso deixar de estabelecer um paralelo com uma outra multidão não menos eufórica que, em 30 de Maio de 1968, subia os Campos Elíseos, enquadrada pelos dirigentes gaullistas da época: Malraux, Debré, Couve de Murville. A expressão de todos esses dirigentes é a mesma: rostos esgaseados, corpos desarticulados, olhares furtivos e receosos para a multidão que, no fundo, desprezam.
Invadia-me nesse 1º de Maio de 74 o mesmo sentimento de fraqueza que sete anos mais tarde voltaria a sentir na Praça da Bastilha, ao juntar-me à multidão em delírio que festejava a vitória de Mitterrand aos gritos de “on a gagné!” No momento em que julgavam ter ganho, começavam a perder. Como nós.
Inclusão | 23/11/2018 |