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Eu morava em Sacavém, tinha 14 anos, e ia para o ciclo preparatório. Tinha a mania de andar a apanhar papéis do chão para ler, talvez por não haver livros em casa. Uma vez apanhei um saco cheio de papéis que tinham uma foice e martelo. Quando cheguei a casa, a minha mãe ficou num estado de terror: “Vamos todos presos!”. Eu, na minha inocência, cheguei à janela e despejei o saco para me “libertar daquela sarna”. Não aconteceu nada.
Em Abril estava doente em casa e soube pela rádio que havia um golpe de Estado. Lembro-me do 1º de Maio e dos primeiros cartazes que aparecem em Sacavém. Houve então uma alegria colectiva.
Começou a catadupa das ocupações de casas. Em Cheias as paredes apareceram cobertas de “As casas são do povo — O povo ocupa as casas”. Eu morava numa casa modesta, pequena. A família era de quatro pessoas e não tínhamos sequer um quarto para o casal e outro para os filhos. Os meus pais foram ocupar casas também, no bairro social de Chelas-Cabo Ruivo, que estava destinado para a Pide, Guarda Fiscal, Serviços Sociais do Exército, etc. Algumas casas estavam na fase terminal, outras estavam só com as estruturas, sem paredes. Lembro-me de termos ido para lá morar, só com os cobertores. A água pertencia à construção e era distribuída com uma mangueira pelo prédio todo.
Estabeleceu-se uma grande fraternidade, vinham pessoas de todos os lados: do Bairro da Liberdade, de barracas, de zonas degradadas, de partes de casa, etc. Também havia oportunistas que ocupavam duas, três casas para depois alugar, mas o que caracterizava as ocupações era um sentimento de união, de solidariedade.
Havia Comissões de Moradores e Comissões de Prédio. Tudo estava estruturado. Havia reuniões de prédio, de rua, de bairro, conforme o assunto. Lembro-me de reuniões nas escadas do prédio onde toda a gente participava e dava opiniões: os chamados chefes de família, mulheres de filhos ao colo a dar de mamar, velhotes, putos como eu. As fronteiras das idades estavam esbatidas. Depois de discutido no prédio, o assunto ia para a Comissão de Moradores.
Posteriormente houve uma terceira vaga de ocupações em Cheias, estas já consideradas fora-da-lei. O governo de Vasco Gonçalves tinha decretado que só considerava legais as ocupações até determinado período.
No ano lectivo de 74/75 entro no Liceu D. Dinis, uma escola muito politizada. Adiro à FEML. Dá-se uma greve dos estudantes do secundário contra os exames nacionais, pela avaliação contínua e eu fui eleito para a direcção do comité de greve. Esta dura cerca de um mês, com ocupação permanente. Havia reuniões de alunos, assembleias gerais de escola, jornal de greve, debates, cursos livres (sexualidade, contracepção, sindicalismo, ecologia, etc.). Realizavam-se exposições e colóquios sobre os países considerados socialistas, pelos quais havia uma grande curiosidade.
A greve tem no entanto um final infeliz. Sectores considerados de esquerda, ligados ao PC e ao PS, eram contra por acharem que “desestabilizava o socialismo”.
Havia também moções e proclamações de apoio às lutas dos moradores, ocupantes e trabalhadores. Promoveram-se jornadas de apoio à Reforma Agrária em que o pessoal se deslocava ao Alentejo para ajudar na apanha da azeitona. Às vezes, faziam-se recolhas de fundos de porta em porta, para os ocupantes e moradores pobres ou para os operários em greve nas fábricas à volta do liceu, como os Sabões, em Marvila. Quando foi da greve dos operários da construção civil, nós também fomos para S. Bento para apoiar.
A discussão política era uma coisa muito viva. Na sala de convívio do D. Dinis chegava a haver dez bancas de propaganda. Nos intervalos era frequente verem-se três ou quatro organizações políticas a distribuir propaganda para o 1º de Maio, para a manifestação, contra isto, de apoio àquilo, etc...
★★★
“A Srª Drª de Português propôs uma ordem de trabalhos.... O D... propôs que o problema das faltas devia ser o primeiro a abordar. Isto foi recusado e portanto aprovou-se a proposta da professora (....) Como é já do conhecimento geral, as faltas são de tipo informativo. Quando houve RGA, aquela tal que foi muito confusa e não era legal — cerca de 18 alunos faltaram à aula de Geografia e o professor marcou as respectivas ausências. Mais tarde as faltas apareceram um pouco riscadas por giz no livro. Quando há RGA e RGE é preciso comparecer nela e não aproveitar a ocasião para ir brincar ou passear (...) C.N. tem preguiça de estar nas aulas; vergonha de comparecer por não fazer os trabalhos de casa; perturba constantememente os colegas e mete-se com estes. Diz que vai tentar fazer os trabalhos de casa, não faltar às aulas e estar quieto nas mesmas. É preciso que os colegas contribuam não lhe ligando (...)”
(Da acta de uma reunião de turma, de Fevereiro de 75, redigida por um aluno de 12 anos, cit. por Eduarda Dionisio).
Inclusão | 23/11/2018 |