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Tal como referimos nas primeiras páginas apresentamos a seguir depoimentos desenvolvidos por dirigentes da ACR/Associação Conquistas da Revolução sobre temas relacionados, quer com a luta antifascista, próxima do 25 de Abril, quer sobre outras questões pouco referidas nos diplomas legais cuja divulgação, 40 anos depois, nos apraz reforçar.
O 3º Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro entre 4 e 8 de Abril de 1973 constituiu, a muitos títulos e por variadas razões, um importante êxito da luta antifascista em Portugal e um sólido e incontestado testemunho da persistente contribuição para a unidade das forças de oposição à ditadura fascista.
O Prof. Rui Luís Gomes, na qualidade de Presidente do Congresso em que fora investido por vontade unânime da Comissão Nacional, foi impedido pelo fascismo, ao não permitir o seu regresso do exílio, de presencialmente declarar a abertura do Congresso no Cine-Teatro Avenida. Coube ao antifascista Álvaro Seiça Neves ler o seu telegrama declarando aberto o Congresso.
Os participantes nesta sessão inaugural teriam certamente boa consciência de que, para trás, ficava um aturado, laborioso e amplamente participado trabalho preparatório com uma firme e fundamentada convicção de que aquela realização iria significar um forte impulso na luta do movimento democrático contra o fascismo e designadamente na sua intervenção na farsa eleitoral marcada para Outubro desse ano. Mas não podiam saber – e ninguém honestamente podia saber ou adivinhar – que se estava à beira do último ano de vida da ditadura e a um ano do 25 de Abril.
A preparação do Congresso assentou, durante meses em centenas de reuniões pelo País fora, na constituição de amplas Comissões Distritais, Grupos de Trabalho, Comissões Coordenadoras e uma Comissão Nacional com cerca de 500 elementos de todas as zonas do País.
As eleições de 1969 tinham marcado um ponto de viragem e de ruptura com uma certa concepção conspirativa. As novas e distintivas características que o 3º Congresso da Oposição Democrática assumiu e bem assim a natureza das orientações políticas fundamentais que nele foram aprovadas testemunharam, por referência aos meritórios 1º e 2º Congressos (respectivamente, de 1958 e de 1969), um processo não apenas de assimilação crítica de experiências e orientações anteriormente prevalecentes, mas também uma evolução de concepções determinada por patentes alterações na correlação de forças dentro do campo da oposição antifascista que já se vinha desenhando e afirmando, no plano do movimento democrático, exactamente desde as referidas «eleições» de 1969. E surge como indiscutível que nessa evolução e nessas mudanças pesaram, entre outros factores e de forma determinante, a própria dimensão da luta da classe operária, os audaciosos avanços e posições conquistadas nos sindicatos e a integração na luta legal e semi-legal de novas gerações de estudantes e jovens trabalhadores.
A constituição de Comissões Eleitorais (CDE’s) por todo o País, forçando a abertura de sedes e mobilizando milhares de democratas introduziu uma nova dinâmica popular, de unidade na acção e de convergência democrática na organização e na luta pela liberdade.
Método que desaguou no 3º Congresso da Oposição Democrática traduzido na elaboração de 169 teses das quais 67 eram colectivas. E se encontramos entre os autores das teses grandes vultos da democracia e da intelectualidade, muitos dos quais destacadas figuras da vida pública no Portugal de Abril, também lá encontramos teses elaboradas por operários, camponeses, jovens, mulheres numa imensa mobilização popular que, aliás, constituiu o principal fermento da luta contra a ditadura e sua queda.
As teses apresentadas ao Congresso, os vivos debates que ocorreram, as conclusões aprovadas, percorreram todos os temas importantes, à época, da sociedade portuguesa. Questão central, presente em quase todas as secções, a exigência do fim do regime fascista e da guerra colonial, a liberdade de reunião, de associação, de expressão. Mas também as questões laborais e os direitos dos trabalhadores, o desenvolvimento global do País, o desenvolvimento regional e local, a situação da juventude, as questões da educação, do desporto e da cultura, a segurança, a saúde e até o urbanismo e a habitação, teses que só por si pressupõem um imenso trabalho de preparação prévia.
Apesar da censura e da repressão, a ditadura não foi capaz de silenciar o Congresso. A imprensa nacional - embora a muito custo e com as notícias muito mutiladas - e a imprensa internacional foram como “obrigadas” a fazer eco do acontecimento.
A brutal repressão desencadeada contra a concentração e a romagem à campa de Mário Sacramento na manhã de 8 de Abril de 1973, de que resultaram mais de 70 feridos, foi a expressão do pânico que o Congresso provocou no regime, mas também do seu enorme êxito.
Notável a solidariedade do povo de Aveiro, abrindo espontaneamente a porta das suas casas para abrigo dos congressistas das cargas policiais, dos bastões e dos cães-polícia. Mas o clima de intimidação e perseguição e a repressão contra o Congresso tinham começado muitos dias antes: prisões de quem colocava cartazes a anunciarem o Congresso; proibição de sessões de trabalho preparatórias; encerramento do parque de campismo de Aveiro; retenção dos comboios e camionetas que transportavam os congressistas, múltiplas operações stop. Aveiro foi cercada. Mas tudo em vão. A pé, percorrendo quilómetros ou à boleia, o cerco foi furado e mais de 4.000 democratas convergiram de todo o país, grande parte dos quais jovens, chegaram às ruas da cidade e superlotaram o Cine-Teatro Avenida.
Esta imensa mobilização não se limitava contudo ao Congresso. Na clandestinidade, eram conduzidas dezenas de pequenas e grandes lutas nas fábricas, nos campos, entre a juventude. Na Universidade (por exemplo, na Faculdade de Economia do Porto) cresciam as greves.
Nas Forças Armadas desenvolvia-se um largo movimento de consciência democrática entre os militares e já tinham começado a nascer encontros e discussões pronunciadoras. Alguns oficiais, nos quais o subscritor deste depoimento se inclui, (cerca de duas dezenas) estiveram presentes clandestinamente neste Congresso.
Quando alguns pretendem reescrever a história, branqueando o fascismo e omitindo ou reduzindo ao máximo o papel dos antifascistas e revolucionários é oportuno lembrar, designadamente para as jovens gerações, o 3º Congresso de Oposição Democrática e tudo quanto o rodeou. Como foi possível a mobilização e o êxito do Congresso? Não significaria que o regime se estava a democratizar, como proclamava à época a chamada “ala liberal”? Não era o Congresso, como afirmavam outros, uma concessão do regime que poderia conduzir ao branqueamento da ditadura e que poderia aparecer aos olhos do mundo como um regime de liberdade onde a oposição até podia realizar as suas iniciativas?
A vida provou que aqueles que sempre se bateram pela realização do Congresso tinham razão. O Congresso realizou-se e foi um êxito porque o fascismo não teve forças para conter o imenso movimento democrático e popular que crescia no País desde as eleições de 1969. A repressão que se abateu sobre o Congresso foi a prova de que o regime não se estava a abrir. Contribuiu para o isolamento internacional da ditadura e para o caminho que abriu as portas do 25 de Abril.
O Congresso só foi, entretanto, possível com um amplo entendimento e forte empenhamento das diferentes componentes das forças democráticas com especial relevo para os comunistas, os socialistas e os então chamados católicos progressistas com base num intenso diálogo.
Na declaração final do Congresso pode ler-se:
“os milhares de democratas – reunidos em Aveiro - têm a consciência de que esta reunião – a que o Governo foi obrigado por pressão das condições internas e para tentar melhorar a sua imagem internacional - constitui uma grande vitória das forças democráticas. A longa mobilização de democratas efectuada em todo o País em torno da organização dos trabalhos, da elaboração das teses e do debate dos problemas apresentados, veio no seguimento da movimentação democrática crescente, ao mesmo tempo que traduz o descontentamento cada vez maior da população portuguesa em face do constante agravamento dos problemas fundamentais do País”.
Como objectivos imediatos o Congresso definiu a luta pelo fim da guerra colonial; a luta contra o poder absoluto do capital monopolista e a conquista das liberdades democráticas.
Hoje justifica-se explicar que o relevo e importância da fixação destes três precisos objectivos não derivam naturalmente do ponto referente à «conquista das liberdades democráticas» (desde há muito património comum das diversas correntes da oposição) mas sim dos pontos referentes ao «fim da guerra colonial» e da «luta contra o poder absoluto do capital monopolista», objectivos de há muito sustentados pelos verdadeiros democratas. A definição destes três grandes objectivos e a assunção dos seus indissolúveis nexos, iluminando «a contrario sensu» a verdadeira natureza da ditadura fascista, não só marcaram decisivamente a intervenção da oposição democrática na farsa eleitoral de Outubro de 1973 como influenciaram o pensamento político do Movimento dos Capitães, viriam a ter uma aproximada consagração no «Programa do MFA» e viriam a plasmar-se na vida como componentes cruciais da Revolução de Abril. A mobilização popular e a luta por um regime de liberdade ajudam a compreender muitos aspectos programáticos retomados um ano depois nos textos do MFA e na luta do Portugal de Abril, que não nasceram por geração espontânea ou por uma aceleração artificial da história mas na continuidade de um processo de exigência e de luta com origem nos movimentos democráticos da oposição à ditadura e nas suas diversas componentes.
Como já foi referido, o 3º Congresso da Oposição Democrática representou um importante passo na unidade na acção das principais forças e sectores democráticos (comunistas, socialistas – então ainda agregados na Acção Socialista Portuguesa mas à beira da fundação do PS –, católicos progressistas) só possível porque, entretanto, se foram desvanecendo as ilusões e rectificando as concepções erróneas que alguns sectores democráticos (e sobretudo a ASP) tinham perfilhado aquando da substituição de Salazar por Marcelo Caetano e nos primeiros tempos do «marcelismo». Mas, por respeito pela verdade histórica, é necessário observar que se esse passo teve especial consagração e desenvolvimento no encontro realizado em Paris entre delegações do PCP e do PS em Setembro e na estreita e leal cooperação de comunistas e socialistas nas «eleições» de Outubro de 1973 isso não significa, porém, que não tenham permanecido no campo da oposição consideráveis controvérsias e que algumas evidentes lições do 3º Congresso não tivessem sido, só por si, bastantes para evitar que diversas personalidades democráticas (tanto de tendências mais moderadas como de tendências mais radicais) decidissem desvalorizar e rejeitar a intervenção democrática na «farsa» eleitoral» subsequente.
Quarenta anos depois, é caso para perguntarmos: quantos temas existem hoje que aguardam e reclamam novos entendimentos à esquerda (mas entendimentos leais, à luz de politicas criadas no espirito dos Congressos da Oposição, da alvorada libertadora do 25 de Abril e das conquistas da Revolução) dando corpo ao apelo final da carta-testamento de Mário Sacramento, citada na intervenção de encerramento do Congresso pelo Prof. Lindley Cintra: “Façam um mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá”.
Mas também honrando a memória da luta quarenta anos volvidos sobre a comovente e corajosa jornada do 3º Congresso da Oposição Democrática, sendo essencial evocar as contribuições determinantes para a sua realização e o seu êxito, é também de inteira justiça evocar o papel e o mérito de todos os homens e mulheres, vivos ou infelizmente já falecidos, de diversos quadrantes, que o ajudaram a erguer e a fazer dele um momento marcante no nosso percurso colectivo para a liberdade. E, propositadamente prudentes na tentação de nele procurar outras projecções ou lições para a actualidade, concluamos ao menos afirmando que o 3º Congresso da Oposição Democrática foi há muito tempo mas dele e de tantos outros episódios da luta antifascista continuam vivos o valor das convicções e a determinação de luta que impulsionam, a confiança nos objectivos em que se acredita mesmo que não se saiba nem se anteveja quando se realizarão, a esperança de um país melhor e mais justo a ser construído pela acção colectiva e pela inteligência, trabalho e luta dos portugueses.
[Como já referido estivemos presentes (clandestinos) nas últimas sessões e sessão de encerramento do congresso (a 7 e 8 de Abril) e assistimos ao vivo, manhã cedo, à preparação do aparato policial junto ao edifício do tribunal e depois, durante a manhã, à feroz carga, na avenida central, sobre os congressistas e aderentes. Não contivemos a nossa raiva e reagimos entrando com o carro que conduzíamos pela avenida acima. Foi patético o encontro com o policial a quem exigimos o cumprimento (a continência) depois de parados e ameaçados. Este acto intrépido mas solidário com o “congresso” teve profundo significado na nossa vida futura. Durante dois dias distribuímos um documento/manifesto, que no passado dia 1 tínhamos apresentado às hierarquias militares, denunciando o obscurantismo e a falta de liberdade do regime. As hierarquias militares com receio de criar uma “vítima”, numa época delicada de contestação generalizada, não oficializaram uma punição formal mas apressaram a nossa “deportação” (em comissão militar) para a colónia da Guiné-Bissau.]
I - Introdução
A ideia lançada de que a “revolta dos capitães” começou na Guiné não merece discussão. Têm tanta razão os que a defendem como os outros. A revolta começou em cada um de nós, o espaço não foi temporal nem fisicamente circunscrito a uma qualquer latitude, mas de facto a Guiné marcou muito os militares e era ressonante o seu efeito como um vulcão de conflitos e desafios.
Efectivamente na Guiné viviam-se tempos favoráveis à reflexão e ao debate. De forma mais aberta ou mais reservada a contestação convivia com a humidade e o calor tropicais. Seria injusto não reconhecer a quota-parte que se deve à personalidade do General Spínola na criação desse ambiente. As circunstâncias fizeram o resto; tornaram a colónia da Guiné um laboratório de experiências e de vivências particulares. Muito pelo seu clima, muito pelo seu tamanho, muito pelo abandono do colonizador e bastante pela forma de actuação do PAIGC e do seu líder Amílcar Cabral, cujo pensamento nos apaixonou e guiou a partir de certa altura.
Talvez se deva considerar, como primeira pedrada no charco, na Guiné- Bissau, a reacção e repúdio dos Oficiais do Quadro Permanente ao “Congresso dos Combatentes do Ultramar”. Almeida Bruno, Dias de Lima, Monge, Otelo S. Carvalho e outros, puseram ao corrente o general Spínola do descontentamento que se apoderou dos Oficiais em geral. Tratava-se dum Congresso, que mais não era do que uma encenação do governo com o aproveitamento de antigos oficiais milicianos, que desde 1961 haviam cumprido comissões militares no Ultramar. Esse descontentamento chegou a Lisboa pela via hierárquica mas não só. Chegou também a Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e a Vasco Lourenço, que encabeçavam na Metrópole, um vasto movimento de protesto.
Quatrocentas assinaturas de Oficiais do Q.P., assinaram em Bissau, protesto idêntico ao ocorrido no Continente. Um telegrama de Bissau foi enviado para o Porto, onde se realizaria o dito evento (de 1 a 3 de Junho de 1973) assinado por Marcelino da Mata e Rebordão de Brito (oficiais naturais da Guiné, ambos com a “Torre e Espada”) com o seguinte texto:
“Os oficiais do Q. P. Em serviço no teatro de operações da Guiné:
1. Não aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação;
2. Não reconhecem aos organizadores do I Congresso dos Combatentes do Ultramar, e portanto ao próprio Congresso, a necessária representatividade;
3. Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser
imputadas à generalidade dos combatentes;
4. Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua
expressão.”
A este propósito no seu livro “Alvorada em Abril” é com oportunidade que Otelo afirma a págs. 114:
“Esta autêntica manifestação colectiva poderia ter constituído um sério sinal de alerta para o Regime“ que conclui o parágrafo dedicado ao Congresso, dizendo ainda “os jovens leões rugiram, mansos, a princípio. Ganhando consciência da sua força, foram deitando as garras de fora e, rugindo mais forte, lançaram-se ao ataque. A partir daí, quem poderia realmente travar o seu desenfreado galope?”.
Estava pois criado o ambiente e lavrado o terreno para o que viria a seguir.
II - A Conspiração
Na sua viagem para Bissau a 28 de Julho de 1973, Duran Clemente, viria a escrever mais tarde no livro “30 anos do 25 de Abril - Jornadas de reflexão” (edição Casa das Letras/2005):
“O meu companheiro de viagem e de lugar no avião, que então me levou para a Guiné, foi o Capitão Piloto-Aviador Pinto Ferreira. Ainda que contemporâneos na Academia Militar (1961/64) já não nos víamos há muitos anos. Fixava-me com olhar inquieto. Estava do lado da janela e nunca olhou o céu. Regressava após meses antes, ao seguir atrás do “Fiat” do seu comandante, Ten.Coronel Alves Brito, assistir ao desintegrar do avião em estilhas e chamas. Escapou porque ao ver o reflexo, de algo vindo do solo, guinou instintivamente o seu “Fiat” (avião-parelha) que conduzia. Foi isto que me contou, acrescentando em desabafo: “vai ser difícil esquecer”.
Na noite do dia 29 de Julho reuniram-se os oficiais a seguir designados no Agrupamento de Transmissões, depois de jantar: Capitão Jorge Sales Golias (Eng.Transmissões) e 2º Comandante do Agrupamento de Transmissões da Guiné, Capitão Manuel Duran Clemente (Administração Militar) e 2º Comandante do Batalhão de Intendência da Guiné, Capitão Carlos Matos Gomes (Comando) e 2º Comandante do Regimento de Comandos da Guiné, Capitão Jorge Alves (Eng.FA), Capitão José Tavares Coutinho (Eng Transmissões) e Capitão Miliciano José Manuel Barroso, sobrinho de Mário Soares, em serviço no Comando Chefe próximo do Gabinete do General António Spínola Governador da Colónia. A reunião moveu-se pela curiosidade em ser lido o documento (exposição/requerimento) entregue por Duran Clemente à hierarquia militar (40 páginas de papel selado) e que pelo seu teor de manifesto contestatário (e pelo facto do ter distribuído em Aveiro, em 8 de Abril, pelos congressistas da Oposição Democrática, onde esteve) tinha levado aquele capitão até Bissau.
Estavam este e outros militares muito preocupados com a situação nacional e com o uso dos oficiais do Q.P. (Quadros Permanentes). Havia a nítida noção de que estes estariam a tomar consciência, missão após missão, do logro em que os tinham metido. Mas era lento e doloroso o processo. Desta reunião resultou a criação de um “núcleo dinamizador” (António Spínola uns anos mais tarde apelidou-o de “célula soviética” no seu Portugal sem Rumo) que nunca mais se desintegrou e funcionou curiosamente até ao dia da liberdade. Constituiria prioridade, desse núcleo, editar um documento a distribuir por todos os oficiais das FFAA, no sentido de os sensibilizar, para o que se estava a passar, nos mais diversos aspectos e sectores da vida do país. Distribuíram-se tarefas. Cada um encarregava-se de uma matéria específica. Na reunião seguinte refletir-se-ia sobre a forma de fazer chegar a informação aos Camaradas militares, Oficiais do Q.P., onde quer que se encontrassem, nas Colónias ou na Metrópole. “Como obter os endereços de todos?” Era um dos desafios. Não foi preciso.
Graças à publicação do celebérrimo Decreto-Lei nº. 353/73 que facultava a “entrada de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente através de curso intensivo na Academia Militar” os acontecimentos precipitam-se. A questão era saber aproveitar o facto. Assim o fez este núcleo dinamizador e agora, muito mais animados. Não se podia perder a oportunidade. Por isso, na segunda reunião, valeu a concentração na criatividade de acção possível para servir uma estratégia colocada em andamento. Não mais pararia.
Ainda não se conhecia bem o conteúdo do referido diploma. Constava que se aplicava às Armas operacionais de Infantaria, Artilharia e Cavalaria. E assim era. Só em meados de Agosto houve conhecimento do seu completo teor. Até aí, bastou adivinhar qual o seu espírito para que aquele brinde fosse recebido de braços abertos.
Havia que explorar com sucesso o ”tremor de terra“ que tal diploma casou no seio dos capitães. E assim foi. O núcleo entrou em acção. Promoveram-se reuniões. Espalhou-se a palavra para os Capitães reunirem na Sala de Jogos do Clube Militar.
Confortou-se a “convocatória“ com a adesão por solidariedade (e não só) dos Capitães que mesmo não pertencendo às três Armas atingidas, deviam comparecer. Aconteceu a 17 de Agosto de 1973.
Era sábado, às 16h00, lá se encontraram mais de 30 capitães.
No espaço de oito dias, efectuaram-se mais três encontros realizados no Agrupamento de Transmissões.
Resultou dessas reuniões a decisão de endereçar uma “carta-protesto” ao Presidente da República, Presidente do Conselho, Ministro da Defesa e Exército, Ministro da Educação e Secretário de Estado do Exército. O grupo de trabalho, encarregado de escrever o texto da mesma, foi constituído pelo recém-promovido Major A. Almeida Coimbra, Capitães J. Teixeira Branco, M. Duran Clemente e C. Matos Gomes.
Com a data de 28 de Agosto a referida carta teve as assinaturas de quarenta e seis Capitães, recolhidas em Bissau e nas guarnições próximas (em 66 capitães possíveis em todo o território - CTI Guiné), às quais se juntaram ainda as de quatro subalternos (em estágio) e foram enviadas, por mão própria, através do capitão Ayala Botto, reforçando o envio por correio registado, para os destinatários a cinco de Setembro. O então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, pôs o seu serviço de secretariado em marcha para a tarefa de “bater a carta à máquina” em “stencil” (era assim, na ocasião, as fotocópias eram ainda raras). Igualmente se encarregou de comunicar aos Capitães, em serviço no interior, o seu conteúdo e explicar-lhes a atitude de protesto colectivo, como afirmação frontal do nosso descontentamento.
O Almeida Coimbra iniciou então o contacto com Hugo dos Santos (em Lisboa) de quem se passou a obter informação sobre o desenvolvimento dos acontecimentos na Metrópole.
Na sua primeira informação ficamos a saber que toda a actuação prevista aqui era fortemente tocada pela legalidade, pelo menos, aparentemente. Esta, e todas as informações que iam chegando, foram lidas nas reuniões de Capitães que começaram a realizar-se periodicamente e numa das quais, ainda em Setembro, é eleita a primeira Comissão do Movimento de Capitães (e que daria o nome ao Movimento),(1) constituída por Duran Clemente, Matos Gomes, Almeida Coimbra e António Caetano (que mais tarde seria substituído por Sousa Pinto, o quinto mais votado). O núcleo preparou a reunião. Matos Gomes que tinha vindo a Lisboa trouxera, no regresso, alguns exemplares do recente livro de Sottomaior Cardia “Para uma Democracia Anticapitalista”. Divulgou-se nessa reunião boa parte do seu conteúdo e o acto funcionou como campanha eleitoral. Valeu a eleição de dois capitães - os mais votados (Duran Clemente e Matos Gomes) - do referido “núcleo dinamizador” para a aludida comissão. E se dúvidas houvesse ficou claro como o esclarecimento político acrescentava “mais-valia” à vontade de revolta.
Entretanto soube-se da reunião de Évora/Alcáçovas (9 de Setembro) onde se encontraram mais de 130 oficiais do Q.P que subscreveram documento semelhante. Ficámos mais tranquilos porque a manifestação colectiva se alargava a quase 200 capitães e no continente a conspiração intensificava-se.
Foi deliberado que se desse conhecimento ao Comandante Militar da existência das reuniões. Achou-se que era melhor que soubesse pelos próprios capitães descontentes. Formalmente avançaram-se motivos profissionais como justificação. Ficou claro que só lhe era transmitido aquilo que se achasse conveniente. E assim aconteceu. Nessa primeira reunião e única que tivemos com o então Comandante Militar Brigadeiro Alberto Banazol (irmão do Ten. Cor. Luís Atayde Banazol) este saudou a atitude e deu-nos a devida autorização para reunirmos na Biblioteca do Quartel-General, instalada fora deste, no Batalhão de Intendência, situado em frente ao QG em Santa Luzia/Bissau. Assim e, acredita-se, distraidamente os capitães foram autorizados a conspirar...contra o sistema. Estará bem na lembrança (dos que tomaram parte numa destas primeiras reuniões já autorizadas e em Setembro) o papel da intervenção de Salgueiro Maia, vindo de Bula a Bissau de propósito para este encontro, foi exemplar ao dar-nos uma lição clarividente de como as nossas tropas se sentiam no mato, sem solução à vista. Foi um autêntico grito de ânimo e de estímulo para o Movimento prosseguir.
No entanto o Comandante Militar foi peremptório ao reprovar expressamente a manifestação colectiva que representou o envio e teor da carta-protesto subscrita em 28 de Agosto. Para mostrar aparente solidariedade com os capitães, foi ao ponto de os convidar para um lanche ajantarado em sua própria residência, o que veio a acontecer com a comparência da esmagadora maioria dos Capitães, então disponíveis em Bissau. Tal jantar teve um final conturbado pelas intervenções acaloradas, de Otelo Saraiva de Carvalho e de Duran Clemente, não só porque, à evidência de que as “altas esferas” estavam a deixar resvalar a Guiné, para um caso semelhante ao de Goa, Damão e Diu, o Comandante Militar Brigadeiro, Alberto Banazol respondia com evasivas. Bem tentou aproveitar-se da condição de anfitrião (e de máximo superior hierárquico no Exército) para nos anestesiar e adormecer com a retórica habitual e a fundamentação oficial do regime. A partir daí, o Comandante Militar nunca mais teve informações desta Comissão Coordenadora de Bissau, mais por desinteresse seu do que nosso. Não consta que se preocupasse muito com “os ventos fortes” que corriam. Talvez não nos tenha levado a sério ou lá no fundo estivesse connosco, como (até) suspeitávamos.
Convirá recordar que a 6 de Agosto de 1973 o Gen. Spinola regressara a Lisboa. Fim de missão, início de outros voos. Ficara célebre a sua frase de que “a solução na Guiné era política e não militar” enquanto Marcelo Caetano apregoava “prefiro um desastre militar a negociar com quem for”. O seu lugar de Governador e de Comando Chefe só seriam preenchidos em Setembro (dia 21) pelo General Betencourt Rodrigues. Este trouxe outra frase não menos infeliz e célebre “resistir até à exaustação dos meios”.
Três dias depois da sua chegada, a 24 de Setembro de 1973, o PAIGC declara unilateralmente a independência da Guiné-Bissau, em Madina do Boé (Gabu/sueste) de imediato reconhecida por 72 países. Ninguém, militar ou civil, ficou insensível a este acontecimento.
Através dos militares que gozavam férias na metrópole, ou dos que a esta voltavam por fim de missão (ou pelos que entretanto chegavam em início) ou ainda através de correspondência, já com linguagem um tanto codificada, as informações iam-se cruzando entre Bissau e Lisboa. O Hugo dos Santos passou a ser o “Pedro” e outros heterónimos deram à luz, por precaução, mais tarde justificada. A conspiração desenvolveu-se no sentido prioritário e fulcral de angariar o maior número possível de “adeptos para a causa do movimento”. Trabalhou-se sempre em ligação e sintonia com a “coordenadora” do Movimento de Capitães no continente. O trabalho de sensibilização e de informação foi sendo feito com método e sistema. Os resultados iam sendo, entretanto, muito gratificantes, na medida em que paulatinamente se foi conquistando para o nosso lado a maioria de Oficiais colocados em posições (de comando) estratégicas e essenciais para o que “desse e viesse”.
A Marinha aderiu em força. Com a sua tradicional organização (meticulosa e serena) dispôs as suas pedras com todo o cuidado e aceitou o repto. Destacaram Oficiais que passaram periodicamente a reunir-se connosco, para troca de informações e análise da situação. Inicialmente os 1ºs Tenentes Marques Pinto e Pessoa Brandão logo seguidos de Manuel Bouza Serrano, Pedro Lauret e Rosado Pinto. A Força Aérea destacou desde sempre os capitães Jorge Alves e Faria Paulino e depois Sobral Bastos e Albano Pinela (Paraquedista). Em Outubro há oportunidade de efectuar uma reunião com catorze oficiais pilotos-aviadores do Q.P. Acompanhado de Faria Paulino, Duran Clemente tem um debate/esclarecimento com os aviadores descoroçoados. Lá estava também o companheiro dele na viagem Lisboa/Bissau, o Pinto Ferreira. O trauma da bola de fogo do companheiro perdido estaria a transformar-se iluminando as consciências. Como é sabido as acções militares da Força Aérea estavam praticamente paralisadas depois de nos primeiros meses de 1973, seis aviões entre Fiat, T-G e DO 27, terem sido abatidos, após a introdução de mísseis terra-ar Strella, na equipagem do PAIGC. Nesta reunião com os Pilotos-Aviadores, ficámos com a sensação de que quase todos, se não mesmo todos, tinham aderido ao Movimento, ou pelo menos, não lhe eram hostis. No Exército contávamos, cada vez, com mais aderentes à medida que íamos, progressivamente, com maior segurança, alargando a malha de contactos e de informações e consolidando as estruturas organizativas por cada unidade operacional.
Paralelamente um movimento de Oficiais milicianos foi criado e acompanhou a actividade e iniciativas possíveis da contestação e conspiração do Movimento de Capitães. Como principais mentores e dinamizadores tinham (os ex-dirigentes das associação académica de Coimbra) agora os Alferes Milicianos Barros Moura, Celso Cruzeiro e o já referido capitão Miliciano José M. Barroso, reflectindo curiosamente três tendências politicas diferentes.
Os ânimos confortaram-se ainda mais à medida que da Metrópole iam chegando as notícias da evolução do processo. A partir de Dezembro começa-se a ver mais claro qual o sentido do Movimento, após as reuniões que na Metrópole apontavam para a mais que provável decisão de “pegar em armas” para derrubar a situação. A “profecia” que Jorge Sales Golias lançara como repto em Agosto (na primeira reunião -) ... “quem sabe se isto só se resolve pela via armada!??”…- que assustara alguns, estava mais perto de se realizar. Estavam os conspiradores convictos e preparados.
Também na Guiné foram conhecidas as três hipóteses, colocadas para reflexão (decisão) aos Capitães na reunião de Óbidos (1 de Dez) e Caparica (5 de Dez):
Também soubemos, a seu tempo, da consequência do resultado do escrutínio e nele nos concentrámos para na Guiné dar o correspondente apoio como retaguarda e reforço.
A decisão de que na Guiné também optaríamos pela tomada de poder pelas armas já estava tomada há muito; daríamos no entanto a possibilidade à hierarquia militar no Comando Territorial Independente da Guiné/CTIG para se pronunciar. Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa. No caso de insucesso das operações do Movimento em Portugal a nossa estratégia era a tomada de poder na mesma. Teríamos esse trunfo para jogar na defesa das nossas convicções. Por outras palavras, constituir-nos-íamos numa grande pedra no sapato e dor de cabeça para o Governo Português, com uma Colónia sublevada. Para isso, tínhamos de ter o completo domínio do comando em todos os Sectores e Ramos das Forças Armadas instaladas no teatro de operações da Guiné. Iríamos ter.
Conseguiu-se ter, posição de força pronta a actuar, em todas as guarnições do CTIG. No final do ano de 1973 só nos faltava o Regimento de Paraquedistas que virá a aderir em Fevereiro de 1974, após o conhecimento do conteúdo do livro “Portugal e o Futuro” do General Spínola.
O Comandante do Batalhão de Paraquedistas, Major Mensurado, manda formar o Regimento. Faz uma palestra. Adverte os seus homens da eventual necessidade de terem de cometer uma acção de indisciplina a “Bem da Nação”. Declarou: “Quem não estiver de acordo deve dar um passo em frente”. Ninguém deu. Todos concordavam. Era a vontade dos Povos a mandar!
Mesmo assim, veio a Lisboa, com um delegado do Movimento, perguntar pessoalmente ao General Spínola se “avalizava” o seu procedimento. Regressou aliviado e mais feliz. E o movimento também, porque era uma unidade indispensável.
Antes, porém, houve de “travar” a ansiedade do Ten. Coronel Luís Atayde Banazol (que aqui e hoje sempre prestaremos homenagem pela sua atitude na reunião de Cascais em 24 de Nov. de 1973) e nas duas reuniões posteriores(2) e que ao chegar à Guiné, no final do ano de 1973, comandando o seu Batalhão – que estacionou uns dias (Janeiro/74 )na guarnição do Cumeré – antes de chegar ao seu destino (Bambadinca, perto de Bafatá) queria tornar o poder ocupando, em Bissau, o Palácio do Governo da Colónia. Após aturadas reuniões connosco “os jovens e pálidos Capitães da Guiné”, como refere num dos seus livros, conseguimos dissuadi-lo. Sobre isso o Jorge Golias muito teve para contar pois chefiou a delegação do Movimento que cumpriu a tarefa de o dissuadir. Tivemos oportunidade, mais tarde, de lhe prometer que seria dos primeiros a saber quando “ganhássemos”. E assim aconteceu. Foi imediatamente avisado na manhã de 25 de Abril.
Voltando aos primeiros meses do ano é de assinalar o seguinte e de forma resumida: estreitaram-se os contactos com Lisboa. Em Fevereiro Duran Clemente, vem a Lisboa para contacto com Vasco Lourenço em serviço numa unidade na Trafaria (Bat.Art). Nesse encontro foram actualizados os conhecimentos das situações. Mas da Guiné vinha um aviso firme dos seus capitães “…ou as coisas se resolvem em Portugal e depressa ou nós, capitães na Guiné, que temos tudo preparado para tomar conta da colónia, o faremos. Estamos mais que impacientes…não vamos depor as armas. Há vidas a defender. Mas tomaremos o poder e negociaremos…com quem for preciso”. Era sabido que o pessoal na Guiné estava com acentuado nervosismo, embora consciente mas impaciente, e isso tinha sido claramente clamado por Salgueiro Maia que, em Outubro antes, regressara a Lisboa e fora colocado em Santarém. Vasco Lourenço apelou para que tivéssemos serenidade e afiançou que a “acção” se daria antes do 10 de Junho. Foi esse o recado do Movimento de Capitães no continente que o mensageiro trouxe para o Movimento na Guiné.
Em 4 de Março avisámos Lisboa (Hugo dos Santos) de que os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monje regressavam à metrópole no dia seguinte e estavam cheios de entusiasmo e algum voluntarismo. Denotavam extrema vontade de intervir. Haveria que dar o melhor enquadramento à sua dinâmica. Otelo distraiu-se do nosso aviso e ocorreu o 16 de Março. Como nota de rodapé esclareça-se que em finais de Dezembro, estes oficiais, com mais cinco oficiais superiores entre estes o Major Rodrigues Coelho, manifestam também adesão ao Movimento. Assinaram na nossa presença uma carta enviada ao General Spínola confortando a sua decisão e colocando-se ao seu dispor na mudança.
Marcelo Caetano continuava nas suas conversas em família a tentar convencer-nos de que se podia fazer turismo nas nossas “províncias ultramarinas”, mesmo na Guiné!!!
O semanário “Expresso” publica excertos duma dessas conversas em família lado a lado com retalhos do livro “Portugal e o Futuro” de António Spínola.
No princípio de Abril uma Delegação de Bissau ainda esteve com o Movimento em Lisboa e recebeu as últimas informações.
III - O 25 de Abril na Guiné e a tomada de poder
Na noite de 24 para 25 de Abril aguardámos (Major Monção Fernandes, chefe do CHERET, Duran Clemente e Faria Paulino) no Centro de Comunicações do Quartel General de Bissau o contacto telefónico programado com Lisboa. Não chegou. Uma das poucas acções de retaliação da dita “Legião Portuguesa” foi o corte do cabo telefónico - na Rua de S.Marçal/Lisboa - que servia a Guiné. No meio da nossa ansiedade lá fomos sabendo do que se passava através das agências noticiosas, France Press, Reuter e outras. Pouco a pouco as teleimpressoras foram ditando os acontecimentos e noticiando a “Alvorada de Abril” em “inglês”, “francês” e “português”. Exultámos. Pelas oito horas da manhã foram restabelecidos os contactos telefónicos com a capital. Imediatamente comunicámos a todos os membros da nossa coordenação o sucesso.
Aos nossos homens do Movimento colocados em todas as guarnições da Guiné, e que estavam há dias alertados, foram dadas pela Coordenação de Bissau a indicação de transmitirem aos comandos que ou aceitavam a nova “ordem nacional” ou eram imediatamente substituídos. O poder na Guiné era já e a partir daqui do MFA da Guiné. Muito poucos comandos foram afastados, pois nas guarnições a maioria eram supervisionadas por Capitães ou Majores aderentes ao Movimento quer nas próprias guarnições quer nos COPs (Comando Operacional) ou CAOPs (Comando de Agrupamento Operacional). Os contrariados, não aderentes “marcharam” para Bissau. Embarcariam para Lisboa dias depois.
Enquanto isso, propriamente no dia 25 de Abril, e em Bissau, já com todas as unidades submetidas ao Movimento, quer o Comando Chefe quer os Comandantes Militares, não tomaram posição de adesão ao mesmo. A PIDE /DGS não se manifestou pois não tinha qualquer força sem o apoio militar. As unidades colocaram-se em alerta, prontas a avançar: Batalhão de Comandos, Batalhão de Paraquedistas, Batalhão de Intendência, Grupo de Artilharia, Agrupamento de Transmissões e de Engenharia e outras. No dia 26, de manhã, avançou a Companhia de Polícia Militar, comandada pelo capitão Sousa Pinto, que tomou pacificamente as instalações do Comando Chefe dando apoio a uma delegação do Movimento, composta por alguns oficiais da comissão coordenadora (J. Golias, M.Gomes e P. Brandão) e sobretudo com oficiais de impacto, como os Comandantes do Reg. Comandos (Major Folques) e o do Reg.Paraquedistas (Major Mensurado) e bem assim do Tenente-coronel Mateus da Siva que decidíramos iria ser o representante provisório da JSN. Foi interpelado o Comando Chefe Gen. Betencourt Rodrigues, que entretanto reunira todos os seus oficiais e aos quais se dirigiu “vencido mas não convencido “. Ficou à nossa disposição e com outros oficiais que foram selecionados, como não tendo aderido aos novos ventos da história, foram “convidados” a seguir, uns dias depois, por avião para Lisboa.
O MFA, antecipando-se a procedimentos tomados no continente, colocou o Comodoro Almeida Brandão como Comandante-chefe (Interino) e, como já referido, o Tenente-Coronel Eng.Transmissões, Mateus da Silva, como representante “provisório” da JSN/Junta de Salvação Nacional, até 7 de Maio, quando chegou o Tenente Coronel Carlos Fabião.
De Bissau partimos junto dos quatro cantos da colónia para explicar aos militares o ponto de situação e consolidarmos a manutenção da disciplina e das novas hierarquias tendo por base as delegações do MFA. Estas, já em embrião, seriam constituídas por um capitão, um representante dos sargentos e outro das praças, militares a serem confirmados em eleições. Quisemos reforçá-la instituindo regras de democratização no seio do MFA e começando a editar poucos dias depois um Boletim do MFA com notícias e orientações militares. Foram também publicadas normas especiais para os procedimentos a ter em sintonia com a coordenação de Bissau. E assim evitámos problemas maiores de disciplina ou qualquer outra natureza.
IV- A Descolonização e reconhecimento da Independênciada Guiné-Bissau
Carlos Fabião, graduado em Brigadeiro passou a ocupar o topo da hierarquia militar e governativa na ainda oficialmente considerada “província ultramarina”. Desde a sua chegada, Carlos Fabião, surpreendentemente e contra o que se esperaria dum oficial tido como “spinolista”, não mais deixa de colaborar com os militares do MFA local. Talvez se surpreendesse porque ao chegar a Bissau, ainda no aeroporto e num discurso de circunstância declarou à rádio: “por uma Guiné melhor num Portugal renovado”. Acossado pelos “capitães de Abril” (MFA-Guiné) na viagem e ainda na chegada ao Palácio do Governo, após acesa discussão connosco, acabaria por reconhecer que se enganara e queria ter dito: ”por uma Guiné melhor e um Portugal renovado”. A sintonia, iniciou-se logo depois deste episódio marcante. O MFA local constituído em Comissão Coordenadora, agora mais alargada, já integrava também oficiais da Armada e Força Aérea. Constituíam-na, da primeira hora, os Major Almeida Coimbra, Capitães: Jorge Golias, Duran Clemente, Matos Gomes e Sousa Pinto, com os oficiais da Armada, os Primeiros-Tenentes: Pessoa Brandão, Marques Pinto, Bouza Serrano e Rosado Pinto e com os Capitães da Força Aérea: Faria Paulino, Jorge Alves, Sobral Bastos e Albano Pinela. Ficaram permanentemente no gabinete do Governador Jorge Golias pelo Exército, Faria Paulino pela Força Aérea e Pessoa Brandão pela Marinha. No fundo esta comissão alargada, era constituída pelos militares, que desde Setembro de 1973 tinham operado e dirigido clandestinamente todas as acções. Do movimento de Milicianos, que se erguera paralelamente com o desenvolvimento do MFA, intitulado de “Movimento Para a Paz”, apraz destacar a importante contribuição de Barros Moura e de Celso Cruzeiro (Advogados e Alferes Milicianos) na colaboração para soluções e acções subsequentes e na assistência também ao novo Governador.(3)
Todos os fins de tarde e durante mais de duas horas havia reunião com Carlos Fabião no Palácio do Governo. E isto perdurou bastante tempo mas muito aprendemos sobre os meandros da colónia trespassada a pé por aquele brioso oficial superior. Tinha sido instrutor de muitos guerrilheiros, enquanto militares das nossas tropas. Dominava à vontade o “crioulo” e conhecia o terreno palmo a palmo.
Um dos primeiros problemas que tivemos de resolver, em paralelo com a libertação dos presos políticos, foi a detenção, mas também segurança, dos membros da PIDE, perante as ameaças de linchamento pela população. Houve manifestações e ameaças mas conseguiu-se controlar a justa causa popular colocando-os a salvo e guardados no Campo de Instrução Militar do Cumeré a quilómetros da capital. A JSN/Junta de Salvação Nacional queria que fossem integrados nos serviços de informações militares, o MFA na Guiné entendeu não haver condições para tal.
O jornal do sistema “A Voz da Guiné” e a sua empresa editora passaram a ser geridos por oficiais do MFA (Duran Clemente e Jorge Alves) e constituiu um excelente meio de esclarecimento ao longo de cinco meses, mudando de cor e de conteúdos.
No plano político aguardava-se que o General Spínola, o novo Governo português e o MFA nacional desbloqueassem a questão delicada de a Guiné-Bissau já se ter autodeclarado independente em 24 de Setembro de 1973. Felizmente as operações no mato foram suspensas depois do PAIGC estar certo das intenções revolucionárias do MFA. E não tardou muito que no ainda escaldante teatro de operações os antigos inimigos de armas começassem a festejar, em conjunto, o fim da guerra e a libertação.
Face às hesitações de Spínola, Carlos Fabião não receia ter um encontro clandestino com acreditados representantes do PAIGC. Encontros realizados em plena mata do Cantanhês guineense e que foram o advento do que acabaria por ser decidido. Foi um gesto patriótico pois não mais se entenderia que houvesse mortos após a alvorada de Abril.
O General Spínola teimava em deslocar-se a Bissau na esperança de realizar um dos seus Congressos do Povo. Chegou a enviar-nos mais de 20 mil cartazes/fotografias suas. Acabou por ser contrariada tamanha insensatez. No entanto enquanto pôde gastou todas as suas munições contra o MFA da Guiné. O General mandou encerrar o jornal Voz da Guiné por não lhe agradar a linha editorial. Carlos Fabião não obedeceu a essa orientação. O General expulsou, em Agosto, um prestigiado jornalista (Joaquim Letria) da RTP por este ter feito uma entrevista (a Duran Clemente, Jorge Alves, Barros Moura e Rosado Pinto) que passara entretanto na televisão nacional com enorme audiência. O General chamou a Lisboa estes oficiais e os que considerava mais perigosos para serem ouvidos e repreendidos. Carlos Fabião só permitiu a deslocação a Jorge Golias, Jorge Alves, Bouza Serrano e Barros Moura. Vieram e enfrentaram Costa Gomes (CEMGFA). Este perante a excelente argumentação apresentada, sobretudo por Barros Moura, decidiu mandá-los regressar em paz a Bissau para cumprir a missão.
Entretanto tinham decorrido os encontros de Dakar (16 de Maio/74), de Londres (25 a 30 de Maio/74) e de Argel (14 de Junho/74), entre delegações portuguesas e da Guiné-Bissau, ao mais alto nível e acompanhadas de oficiais do MFA nacional. Melo Antunes, acompanhado de Almada Contreiras e Pereira Pinto, vai a Bissau e tem reuniões preocupantes connosco; isto no princípio de Junho. Depara-se com a manifestação do nosso desagrado por não termos sido convidados para as reuniões essenciais de Dakar, Londres e de Argel. Enfrenta a nossa ainda mais forte resistência por não entendermos a dificuldade do reconhecimento “oficial de jure” da independência de uma nação já independente e reconhecida por cerca duma centena de países. A situação era “kafkiana”! Em Bissau realizou-se, em 1 de Julho, uma Assembleia com mais de mil militares afectos ao MFA, em que foi aprovada uma moção “exigindo o reconhecimento imediato da independência da Guiné e a preparação da transferência de poderes”. Mas esta nossa pressão e a, não menos válida, de todas as entidades progressistas, nacionais e internacionais, acabaram por ter o seu efeito com a difícil promulgação da Lei 7/74 de 27 de Julho pelo então PR, que acabará por clarificar o Programa do MFA e reconhecer o direito das colónias à independência, derrogando o artigo 1º da Constituição Política de 1933. Em 4 de Agosto é publicado o importante comunicado conjunto Portugal - ONU sobre a descolonização das colónias portuguesas. Para além do compromisso do governo português na cooperação com as Nações Unidas (ponto 1), na reafirmação do reconhecimento à auto determinação e independência de todos os territórios ultramarinos …comprometendo-se a garantir plenamente a unidade e integridade de cada território… (ponto 2), no concernente à Guiné, no seu ponto 3), a) “O Governo português está pronto a reconhecer a República da Guiné-Bissau como Estado independente e está disposto a celebrar imediatamente acordos com a República da Guiné-Bissau para a transferência imediata da administração; b) Nestes termos, dará completo apoio ao pedido de admissão da Guiné-Bissau como membro das Nações Unidas (…). Nos restantes pontos são individualizados os compromissos relativamente à autodeterminação e independência de cada uma das restantes colónias. Em 30 de Agosto é homologado o acordo de Argel assinado com o PAIGC.
Finalmente em 10 de Setembro é assinada pelo PR, acompanhado pelo Governo de Vasco Gonçalves e pelo MFA nacional, a declaração do reconhecimento “de jure” do Estado da Guiné-Bissau.
Na Guiné tudo se foi planificando em perfeita harmonia e diálogo com o PAIGC. Este foi nomeando os seus interlocutores para a concretização dos actos de transferência operados em Agosto e Setembro de forma faseada. As transmissões de poderes foram feitas, região a região, e decorreram sem incidentes e com a maior das dignidades até 15 de Outubro, data do regresso de Carlos Fabião (e das nossa ultimas tropas) a Lisboa. Nesses meses, também o regresso dos nossos militares, por avião ou barco, foi devidamente planeado e concretizou-se sem qualquer atrito. Os poucos portugueses e outros, sobretudo comerciantes libaneses, com vida firmada na colónia nela continuaram. Não obstante alguns ligeiros actos de perturbação pouco sentidos, com raízes nas diferenças étnicas e na reivindicação de grupos políticos a um estatuto igual ao PAIGC que lutara onze anos, nada de gravoso se passou, sempre com o nosso controlo e a melhor das colaborações dos altos dirigentes do PAIGC que se iam apresentando nas cidades transferidas e em Bissau. Destacam-se Juvêncio Gomes (futuro comissário da câmara de Bissau), Manuel dos Santos (Comissário da Informação), Barros, A. Alcântara Buscardine (Comissário da Segurança) e Comandante Julinho (Comissário Militar) para além dum grupo de jovens simpatizantes do PAIGC, constituídos na CJUP, que nos ajudaram na capital.
Em 24 de Setembro deste ano de 1974, o PAIGC, com notável esforço de organização, comemorou o seu primeiro ano de Independência, em Madina do Boé, com a presença de centenas de convidados, num grandioso desfile de diversas organizações internas do PAIGC, cerimónia inesquecível a que alguns de nós (capitães de Abril) assistiríamos como convidados. Para além do Presidente da OUA, Organização da Unidade Africana, estiveram presentes Presidentes ou representantes de vários Estados Independentes Africanos e bem assim delegações amigas de países ou de organizações políticas cujas intervenções ecoaram a um sublime grito de Libertação. Por Portugal esteve Almeida Santos (PS), Jorge Campinos (PS), Dias Lourenço (PCP), Carlos Fabião (Governador/JSN) e Hugo dos Santos, Duran Clemente e Faria Paulino representando o MFA. Entre outros presentes, é digno também destacar, o investigador e musicólogo Michel Giacometti.
Na sala redonda da construção localizada no preciso sítio da declaração de independência, um ano atrás, tendo por pano de fundo uma enorme fotografia de Amílcar Cabral, realizou-se uma conferência de imprensa dada por Manuel dos Santos, comissário da informação, e por Luís Cabral, Presidente do Estado da Guiné Bissau.
Nessa tarde, de céu quente mas transparente, as pequenas aves africanas desenharam, com nitidez, lá no alto: “Cabral ka muri” (Cabral não morreu).
E nós destaparemos esta e outras memórias com a Liberdade de Abril e do nosso Abril de sempre!
“Regressámos a Lisboa em 29 de Setembro de 1974 e integrámos de imediato a 5ª Divisão do EMGFA, assim como aconteceu ou aconteceria com Jorge Alves, Bouzas Serrano e Jorge Golias. Missão Cumprida”
é o último apontamento, rabiscado nas folhas amarelecidas do tempo eterno: passado, presente e futuro, guardadas pelo subscritor deste texto de muitos dos factos vividos na primeira pessoa.
Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, era admissível que existisse uma certa perplexidade, senão desconfiança, relativamente ao papel dos militares na Revolução, atendendo a que num passado recente, aparecia como um dos sustentáculos do regime, devido ao seu envolvimento na Guerra colonial.
Por outro lado, emergia um amplo movimento de clubes, associações e grupos de civis que há muito combatiam o regime fascista em diversas frentes, nomeadamente no campo cultural.
Entretanto, os militares eram cada vez mais solicitados a dirimir questões laborais em empresas situadas próximo das respectivas unidades. Com a ocorrência do golpe contra-revolucionário de 28 de Setembro de 1974 e a queda do General Spínola que sempre se opôs a que os militares saíssem dos quartéis, estavam criadas as condições para enviar as forças armadas para o terreno, juntamente com os civis, envolvidos no objectivo geral de em conjunto, construírem a revolução com um suporte cultural considerado indispensável.
Em 25 de Outubro de 1974, numa conferência de Imprensa na Biblioteca do Palácio Foz, é anunciado o início das campanhas de dinamização cultural, sob a coordenação de uma direcção militar, a Comissão Dinamizadora Central (CODICE), integrada na 5ª Divisão do EMGFA, composta por nove oficiais, três por cada Ramo das Forças Armadas e da Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, subordinada ao Ministério da Cultura.
No entanto, devido à criatividade e determinação de Ramiro Correia, 1º tenente médico naval - primeiro coordenador da CODICE, até 20 de Junho de 1975 quando tomou posse da chefia da 5ª Divisão do EMGFA, tendo sido substituído pelo cap.ten EMQ Manuel Begonha - a direcção destas campanhas passou progressivamente a ser efectuada pelas Forças Armadas.
Para a respectiva execução foram então definidos os seguintes objectivos:
Nesta fase inicial e preparatória, propuseram-se deslocações de elementos da CODICE ao Porto, Coimbra e Faro para divulgação, junto às autoridades civis e militares e também da Igreja, dos objectivos das campanhas.
Todas as campanhas obedeciam a directivas e eram suportadas por textos de apoio onde se registou claramente que as Forças Armadas eram apartidárias, mas não apolíticas, para melhor conhecimento dos costumes, tradições linguagem e cultura dos locais a visitar, procedia-se a uma formação prévia dos militares integrantes das campanhas, no Centro de Sociologia Militar, adstrito à 5ª Divisão.
Numa 1ª fase as campanhas percorriam uma determinada área, dispondo de forças militares especiais e de meios de animação cultural. Como exemplos mais marcantes referimos:
A dificuldade na obtenção de meios, especialmente máquinas de engenharia disponíveis em várias unidades militares, começou a constituir um entrave à construção de infraestruturas para a população mais necessitada, reflectindo as contradições já existentes a nível do MFA - Forças Armadas e MFA - aparelho de Estado.
A retirada desta campanha consumou-se devido às pressões verificadas pelo comando da Região Militar Norte, tendo sido a última até ao 25 de Novembro.
Ficou por iniciar uma grande campanha no Alentejo prevista para Agosto e Setembro, destinada ao reforço da Reforma Agrária, garantindo as sementes e os adubos às Cooperativas Agrícolas e o fornecimento de técnicos de contas, agrónomos e meios de engenharia civil para o levantamento de barragens de terra.
Para além destas campanhas desenvolveu-se ainda um conjunto de intervenções em vários países com militares apoiados pela Secretaria de Estado da Emigração, nomeadamente na França, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Inglaterra, Bélgica e Suiça, com a participação dos “Coros da Academia dos Amadores de Música” e da “Companhia de Teatro Rafael de Oliveira” e do Sector de artes plásticas da CODICE.
Apesar do esforço despendido, verificou-se existir uma fácil recuperação das forças contra-revolucionárias, após a passagem dos meios disponíveis nas campanhas, pelo que se decidiu aproveitar as unidades militares de quadrícula espalhadas pelo território nacional, para arrancar com a 2ª fase que implicava fixar militares no terreno, privilegiando-se assim os contactos locais em prejuízo de um processo mais itinerante.
Deste modo, foram constituídas Comissões Dinamizadoras Regionais e Distritais e Sub-Comissões. Este tipo de campanha permitiu intervenção em todo o país, desenvolvendo actividades com a população local, tais como:
Como exemplo relevante desta fase das campanhas, destaca-se a levada a cabo no Distrito de Viseu, focada em Sernancelhe e Castro de Aire que realizou um pouco de todas as acções acima descritas, tendo sido iniciada em 19 de Março de 1975. Face ao volume e qualidade dos trabalhos realizados e em curso, apenas terminou em Abril de 1976, já com a 5ª Divisão do EMGFA em reestruturação e a CODICE extinta.
Finalmente e para estruturar os meios a gerir as campanhas no terreno e para recolher e tratar os dados fornecidos, entrou-se na 3ª fase que implicou o desenvolvimento da Acção Cívica, com a constituição de Gabinetes de Apoio, englobando e reorganizando o controlo das várias actividades algumas delas em funcionamento desde o início, como a literatura, música, teatro, cinema e artes plásticas.
Eram os seguintes os Gabinetes de Apoio:
Estes Gabinetes dispunham de dezenas de técnicos, especialmente oficiais milicianos com licenciaturas que trataram e encaminharam centenas de relatórios provenientes das várias Comissões Dinamizadoras. Durante a restruturação da 5ª Divisão e numa época revanchista após o 25 de Novembro, toda esta documentação muitíssimo útil foi mandada queimar, juntamente com várias colecções dos boletins do MFA.
Entre campanhas de dinamização, sessões públicas e de esclarecimento e intervenções em empresas, cobrindo todo o país, foram efectuadas mais de 10000 iniciativas.
Na falta de apoio fornecido pelas unidades militares, a prática comum era comer e dormir onde possível, até no chão, algumas vezes tornado necessário.
Para os que intervieram neste processo viveu-se uma experiência de galvanização e de esperança irrepetível. Centenas de criadores, dos mais relevantes existentes em Portugal, desde os artistas plásticos, escritores, actores, artistas de circo, músicos, bailarinos, cantores, cineastas a jornalistas, deram o seu melhor contributo à Revolução cobrindo este país de cartazes, murais, tarjetas, livros, representações e todas as formas de elevação cultural e cívica do povo que não poderão ser esquecidas.
A 26 de Novembro de 1975 a Comissão Dinamizadora Central foi extinta.
Os militares que representavam a CODICE e os que se empenharam nas unidades militares e nas campanhas para levar o programa do MFA até ao fim, foram exilados, presos, licenciados ou enviados à situação de onde haviam sido requisitados.
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Relacionado com este tema não podemos deixar de assinalar o importante papel desempenhado pelos militares que a seguir referimos.
O Primeiro-tenente M.N. Ramiro Correia, cuja memória a nossa Associação recentemente homenageou, foi um dos activistas destacados da Dinamização Cultural. Colocado na Junta de Salvação Nacional colabora com o Conselho de Cultura e Espectáculos. Integrado na 5ª Divisão do EMGFA veio a fazer parte do Conselho da Revolução. Chefiou, por fim, a referida 5ª Divisão do EMGFA.
Autor do livro “MFA e luta de classes” e co-autor do livro “MFA-Dinamização Cultural e Cívica”
O Coronel Varela Gomes, associado da ACR, figura destacada da resistência anti-fascista e operacional responsável pelo designado Golpe de Beja, foi, no pós-25 de Abril, Chefe da 5ª Divisão do EMGFA e um dos militares mais activos e empenhados no processo pela luta das conquistas da revolução e da sua defesa, bem como da Dinamização Cultural e, ainda, da criação das bases dum “Centro de Sociologia Militar”.
O acesso à cultura e ao conhecimento, à liberdade de expressão e de reunião, foram objectivos claros da intelectualidade portuguesa que fez opção pela mudança da situação política e das mentalidades, colocando-se ao lado da classe operária, dos trabalhadores e das populações mais desfavorecidas.
Antes da revolução de 25 de Abril de 1974, Ferreira de Castro, Assis Esperança, Aquilino Ribeiro, entre outros, e, desde muito jovem, Bento Jesus Caraça, acompanhados pelo aparecimento e a intervenção de intelectuais como Álvaro Cunhal, António Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, Óscar Lopes, Joaquim Namorado, Ruy Luís Gomes, Virgínia de Moura, Fernando Lopes Graça, Maria Lamas, abriram caminhos novos na esperança de uma outra vida, de justiça social, de crescimento e intervenção da classe operária e dos trabalhadores contra o fascismo e a exploração capitalista de que Bento Gonçalves foi exemplar dirigente e organizador, como secretário-geral do Partido Comunista Português e operário inovador, até ser deportado para o Tarrafal, para ali ser assassinado em 1942.
A frontalidade no combate ao idealismo presencista, em que Álvaro Cunhal teve um papel determinante, trouxe para primeiro plano, na literatura, nas artes plásticas e outras artes, a vida e o trabalho dos explorados e oprimidos, o grito da liberdade a construir, da democracia e da igualdade a conquistar.
Combateram os que eram “intelectuais” servidores da exploração humana, que silenciavam as injustiças e valorizavam as classes possidentes e opressoras e o sistema capitalista. Combateram a política do fascismo, a União Nacional e o SNI - Secretariado Nacional da Informação, que promoviam esses “intelectuais” e um folclorismo passadista, ao mesmo tempo que perseguiam intelectuais criadores e cientistas, que censuravam e proibiam livros, revistas, jornais, exposições, peças de teatro e iniciativas de esclarecimento nas colectividades de cultura e recreio, nas instituições representativas da intelectualidade que resistia, criava e se ligava ao movimento democrático unitário, nas suas várias expressões, ao longo de décadas, e, em grande parte, decisivamente, ao único partido que ficara a organizar-se e a intervir na clandestinidade e na resistência, o Partido Comunista Português.
A actividade cultural, social e desportiva das colectividades, clubes e outras associações por todo país, as bandas de música, as bibliotecas populares, o teatro amador, a acção de intelectuais como Bento Jesus Caraça, na Biblioteca Cosmos e na Universidade Popular, a criação do Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido por Fernando Lopes Graça, a intervenção organizada de intelectuais em actividades promovidas pelos associados de tantas instituições populares, culturais e científicas que resistiam ao fascismo e criavam condições para o acesso mais amplo e fraterno à cultura, ao conhecimento e à intervenção libertadora e organizada das classes exploradas e oprimidas, foram realidades consecutivas durante décadas do fascismo, enfrentando a repressão, a censura, a proibição e apreensão de livros, discos e outras obras de arte, que eram e continuam a ser património inestimável e valioso de todos nós.
O aparecimento de grupos de teatro profissional e amador como o Teatro do Salitre, o TEUC, os Bonecreiros, A Comuna, o Grupo de Campolide, que surgiram nas universidades e nos bairros populares; o movimento cooperativo livreiro, a Devir, a Vis, a Proelium, na região de Lisboa, a Unicepe no Porto, outras cooperativas em Coimbra, cidades e regiões; a criação da Associação Portuguesa de Escritores, depois do encerramento e destruição, pela Pide e pela Legião, da Sociedade Portuguesa de Escritores, por ter atribuído em 1964 um prémio literário a Luandino Vieira; o papel importante da Sociedade Portuguesa de Autores, na organização e defesa de direitos dos criadores e artistas; o ascenso do movimento sindical, na conquista dos sindicatos fascistas pelos trabalhadores; a luta pelas oito horas de trabalho nos campos do Alentejo e Ribatejo; a intervenção mais organizada e popular, a partir das “eleições” fascistas de 1969, com a CDE-Comissões Democráticas Eleitorais a continuarem activas nos bairros, nas freguesias, nas colectividades e associações populares; a conquista de melhores condições no ensino e nas actividades dos professores e pedagogos, na formação de maior consciência e conhecimentos; as lutas e greves dos trabalhadores nas empresas e nos campos; a Comissão de Defesa da Liberdade de Expressão; os Congressos da Oposição Democrática; o Socorro Vermelho e depois a Comissão de Apoio aos Presos Políticos; todos os movimentos e acções de trabalhadores, intelectuais, classes e camadas populares; as lutas contra a guerra colonial e pela conquista de direitos ao trabalho e à liberdade, as greves e movimentações por melhores salários e condições de vida, contra a censura, pela democracia e pelo fim do fascismo foram criando as condições para o aparecimento do que veio a ser o Movimento das Forças Armadas e a realização extraordinária e decisiva do golpe militar libertador em 25 de Abril de 1974, desde logo acompanhado e desenvolvido pela acção das massas populares e das forças políticas e sociais organizadas, que realizaram, com os militares progressistas, em cada frente e nas ruas, nas empresas e por todo o país, a Revolução de 25 de Abril que se prolongou e aprofundou no derrube das estruturas fascistas, na criação do poder local democrático, na democratização de outras áreas e instituições, na resistência a golpes como o 28 de Setembro de 1974 e a intentona de 11 de Março de 1975 (envolvendo Spínola e militares e civis já contra o 25 de Abril e pelo regresso ao passado), na nacionalização dos sectores produtivos e financeiros mais importantes e decisivos e na realização da reforma agrária.
As campanhas de alfabetização levadas a cabo por estudantes de universidades portuguesas, em vastas regiões do país, logo em 1974; as campanhas de dinamização cultural e acção cívica criadas e realizadas por militares, intelectuais, trabalhadores e outros civis, nomeadamente em regiões mais difíceis e onde o caciquismo e a ignorância eram armas dos mais ricos e exploradores e da igreja reaccionária; o aparecimento e a eleição de comissões de moradores e de trabalhadores, de novas colectividades e associações em bairros, aldeias, vilas e cidades; o controlo operário, a intervenção organizada e revolucionária nas empresas, nos campos e nas pescas; a eleição de comissões administrativas democráticas para as câmaras municipais e juntas de freguesia, colocando o poder local ao serviço das populações, do desenvolvimento económico e social, da cultura, do desporto e do ensino; a criação de creches, jardins de infância e novas escolas de 1º ciclo, de escolas preparatórias e secundárias nos concelhos do país; o acesso à intervenção organizada e popular por direitos e aspirações milenares e à condução dos próprios destinos; a transformação da SEIT (Secretaria de Estado de Informação e Turismo – antigo SNI) em Secretaria de Estado da Cultura, que ajudou à descentralização e ao apoio cultural nas regiões, ao teatro amador e profissional, às bandas e escolas de música, às artes plásticas, ao cinema e a todas as expressões que se materializaram também na rede de Centros Culturais Regionais, no ascenso e actividades das colectividades culturais e associativas, num rejuvenescimento e inovação nunca vistos; a criação do FAOJ - Fundo de Apoio às Organizações Juvenis, com apoio a estruturas e jovens interventivos em defesa e expressão de direitos, ambições e sonhos próprios; o aparecimento da Direcção Geral de Desporto, vocacionada para o desenvolvimento da actividade desportiva organizada em todo o país e para a construção de estruturas e equi-pamentos necessários à prática popular e desportiva; a afirmação das identidades culturais regionais e locais, a defesa do património cultural material e imaterial por associações específicas que foram criadas nas regiões e apoiadas pelas autarquias e por estruturas centrais da SEC; a formação de quadros de animação cultural e dirigentes associativos, a dimensão mais global e cultural do desenvolvimento social, educativo, associativo e político, o acesso generalizado dos trabalhadores e das populações à fruição e criação em diversas áreas da arte, da cultura e da ciência foram realidades que acompanharam o ascenso da re-volução e, depois, os combates e a resistência contra a destruição do 25 de Abril, da democracia e da Constituição da República Portuguesa, enfrentando um processo reaccionário que teve expressão muito perigosa no golpe de 25 de Novembro de 1975, contra as nacionalizações de sectores fundamentais da nossa democracia e independência nacional, contra a Reforma Agrária nos campos do Alentejo e do Ribatejo, contra a descolonização e a efectiva independência dos países e povos das ex-colónias, contra as liberdades e a organização política e social dos trabalhadores e do povo.
Aí começaram também os ataques ao desenvolvimento económico, social, cultural e político do povo português; a liberdade de expressão e de reunião atingidas, a censura nos meios de comunicação social, o controlo de jornais, rádios e televisão, a reconstrução dos grupos económicos do fascismo e a construção de outros potentados financeiros desde o 1º governo de Mário Soares, as limitações ao apoio cultural, associativo e desportivo pelas estruturas democráticas a nível central foram sendo realidades duras acrescentadas ano após ano, governo após governo, desde os governos do PS e Mário Soares aos de Cavaco Silva e PSD, secundados por outros governos com ou sem o CDS-PP, que envolveram o país na integração europeia destruidora da nossa independência livre e soberana, na moeda única suicidária e no endividamento brutal a que nos conduziram, na cobertura ao aparelho especulativo bancário e financeiro interno e externo, cavando esta situação profunda e grave de destruição generalizada de avanços e conquistas civilizacionais e de roubo de salários, reformas, pensões e outros direitos e condições para termos trabalho, liberdade, saúde, ensino, cultura e uma vida digna e afirmativa que engrandecem e transformam cada ser humano e o país no sentido de mais felicidade e conhecimento, de realização pessoal e colectiva de forma integrada e libertadora.
A mercantilização da cultura à escala mundial, o controlo ideo-lógico nos grandes meios de comunicação social, a destruição de estruturas centrais e regionais da SEC, entre outras, geradoras de apoios e responsabilidades, o ataque à cultura, as dificuldades de sobrevivência e o desaparecimento de orquestras, grupos de teatro e outras expressões culturais profissionais e amadoras; o pagamento generoso do capitalismo dominante a “intelectuais” servis, atentos e obrigados, a comentadores de serviço encastelados nestes e naqueles órgãos de comunicação controlados e domesticados; esse silêncio e essa miséria enorme de alienação, mentiras, “modas” perversas, dificuldades, roubo de condições de realização pessoal e colectiva, têm sido enfrentados e combatidos pelos trabalhadores, pela intelectualidade progressista e pelo povo português, sempre na perspectiva afirmativa de que a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a Constituição da República Portuguesa são realidades vivas, aliadas e defendidas pela enorme experiência e saber dos trabalhadores, das classes e camadas organizadas e revolucionárias, que conduzirão à derrota dos inimigos e exploradores, dos que vivem e enriquecem à custa de quem trabalha e sofre.
Quem não luta, perde sempre. Quem luta, vai vencendo e construindo, nas derrotas e nas vitórias, esse mundo imenso de liberdade, de afirmação humana, de crescimento social, económico, cultural e político que conquistámos com o 25 de Abril, na revolução que fizemos e que continuaremos a defender e a construir, nas experiências e conquistas que realizámos e nas novas conquistas da revolução e do 25 de Abril que continuarão connosco e, sobretudo, na vida e na resistência dos jovens activos e revolucionários que aí estão, a nosso lado e já à nossa frente, na abertura de novos caminhos de fraternidade, de direitos ao trabalho, à independência e soberania do nosso país e do nosso povo.
Notas de rodapé:
(1) Movimento de Capitães, ver declaração de Vasco Lourenço, “… na Guiné, ter sido feito um documento assinado por cinquenta e um oficiais e enviado para «cima». Aliás, é aí que nasce a denominação Movimento dos Capitães” (nº112-Referencial). (retornar ao texto)
(2) Ver “Uma pedrada no charco” em Folha Informativa nº 4 da ACR de Janeiro de 2014: “Na noite de 24 de Novembro de 1973, quarenta Capitães de Abril, reuniram-se numa casa em São Pedro do Estoril. Um momento que em particular incendiou de forma irreversível o MFA foi a intervenção do Tenente Coronel Luís Atayde Banazol. Reproduzimos o que merece registo histórico: “… creio que estão a perder o que têm de bom: energia e tempo, organização e vontade.”… “O que vocês estão e todos nós, é agonizantes”…“Estrangulados por um regime que nos conduz para o abismo, para a derrocada, como o têm feito todos os regimes fascistas…” “…é preciso acabarmos de vez com a maldita guerra colonial, que nos consome tudo…, incluindo a própria dignidade de militares profissionais de uma país civilizado, lançados, por um tenebroso conluio, hipócrita e assassínio”...“E nós, que representamos a força das armas, por que esperamos?”… “vemos todos os dias exemplos de coragem dos universitários que desarmados, enfrentam a polícia de choque, e não deixam amortecer um só dia a luta pela Liberdade.” “Impõe-se a Revolução Armada desde já, seja qual for o seu preço e as suas consequências.” (retornar ao texto)
(3) Não obstante a acção corajosa e correcta destes oficiais do MFA da Guiné a nenhum deles foi atribuída a Ordem da Liberdade. Mesmo Carlos Fabião só passados 30 anos (em 2004) recebeu esta distinção (retornar ao texto)