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CADERNOS PORTUGÁLIA — O general Spínola retirado não constituirá um perigo para o prosseguimento dessa actividade?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — O general Spínola, sendo, apesar da sua aparente irreverência, um legalista, não é homem que se meta à cabeça de qualquer movimento revolucionário. Já para o 25 de Abril, o general se esquivou sempre a assumir uma responsabilidade. Fomos nós que provocámos essa responsabilidade e fizemo-lo, porque queríamos manter a hierarquia militar. De resto, esse foi outro problema nos bastidores do Movimento: havia os que consideravam que devíamos assegurar o concurso dos generais que após a vitória assumissem o comando; outros entendiam que se tinham sido os capitães e majores a tomar a iniciativa, a afrontar directamente o Governo, a arriscar tudo, eram eles que deviam continuar, pois não fazia sentido pedirmos aos generais que tomassem, depois da vitória, as rédeas do comando, quando, de um modo geral, afinal, os tínhamos desprezado.
CADERNOS PORTUGÁLIA — De resto, você afirmou isso mesmo no seu célebre discurso no acto de posse, salvo erro, como Governador Militar de Lisboa...
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Exactamente. Fi-lo por coerência. É evidente que eu pertencia ao segundo grupo...
CADERNOS PORTUGÁLIA — Isso leva-nos a uma pergunta um pouco melindrosa: você tem sido criticado por ter aceite ser graduado em brigadeiro...
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — No dia 26 de Abril, quando se vivia em pleno a euforia do êxito (êxito em que poucos camaradas acreditavam), eu afirmei aos meus companheiros que considerava a minha missão cumprida, pelo que regressava ao meu lugar de professor adjunto na Academia Militar. Não me deixaram e eu continuei ao serviço do MFA a que me devotara. Reconheço agora que era uma ingenuidade da minha parte, já não se tornava possível voltar atrás. Estávamos num situação revolucionária e numa situação como essa, os acontecimentos arrastam-nos, galvanizam-nos. Passados dias, foi o próprio general Spínola que me mandou elaborar uma lista dos camaradas que mais se tivessem destacado no 25 de Abril para os graduar em patentes mais elevadas. A hierarquia militar sofrera um forte abanão, fora toda alterada, quase pulverizada. Com a sua larga visão militar, o general compreendeu que, ao vencer o 25 de Abril, tinham de ser agora os capitães e os majores a assumir os postos de comando. Então surgiu a nossa posição de não aceitação de qualquer promoção como prémio pelo 25 de Abril, não só por modéstia mas também com receio de praticar injustiças por omissão. Quando, tempos depois, surge a necessidade de criar o COPCON, o meu nome foi naturalmente indicado para o comandar como adjunto do general Costa Gomes. Mas para tal era necessário que eu fosse graduado pelo menos em brigadeiro. Num plenário do MFA foi decidido por unanimidade que eu aceitasse a graduação, visto tratar-se de um posto-chave (conjuntamente com o de Governador Militar de Lisboa) para o próprio Movimento. Além disso, faço notar que, antes de mim, já tinham igualmente sido graduados em brigadeiros o Coronel Esmeriz e o Tenente-Coronel Fabião, sem que tivesse havido quaisquer reparos.» E a verdade é que não pertenciam ao MFA original! Ou talvez por isso mesmo...
CADERNOS PORTUGÁLIA — Porque surge, digamos politicamente, o MFA, só após a crise Palma Carlos?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — O 25 de Abril foi feito por militares. Mas tivemos sempre a intenção de, após o êxito, nos retirarmos, desempenhando apenas funções militares. Mesmo assim, teríamos desde logo sete representantes nossos no Conselho de Estado, órgãos de poder acima do próprio Governo. A necessidade da intervenção directa no Governo, em função política, surgiu exactamente quando verificámos estar em perigo a concretização, na sua pureza, do nosso Programa.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Em entrevista concedida a um semanário lisboeta, o major Silva Pais, director da PIDE, afirma que a PIDE suspeitava do Movimento das Forças Armadas, mas ele fugia à sua jurisdição. Se a PIDE suspeitava, o Governo também, claro?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — O Governo não suspeitava apenas, sabia. O MFA, de início, como «movimento dos capitães» surgiu às claras através de reivindicações e protestos de carácter militar. Assim, o processo desencadeia-se com o envio, a várias altas entidades, de uma carta, que eu próprio pus no correio, na Guiné, e que tinha por motivo o protesto contra os célebres decretos 353 e 409/73. Logo depois, também na metrópole os meus camaradas se reuniam pelas mesmas razões e elaboravam uma exposição para as instâncias superiores. Perante a acção desencadeada, o Governo tentou uma solução, destituindo Sá Viana Rebelo e Alberty Corieia e passando Silva Cunha para a Defesa Nacional e fazendo entrar para Ministro do Exército o General Andrade e Silva e para Secretário de Estado do Exército o Coronel Viana de Lemos. Em Novembro de 1973, perante as alterações já verificadas e certas pressões que os novos responsáveis militares começaram a exercer, o Movimento passou à clandestinidade. As reuniões feitas até então tinham servido para verificar quais os camaradas que queriam ir para a frente e os que se desinteressavam por razões várias. A partir de Novembro, o grupo estava já limitado a cerca de 200 oficiais. Sucederam-se várias reuniões clandestinas, tendo-se realizado o último plenário em 5 de Março em Cascais, o qual foi precedido de uma curiosa manobra de diversão: na semana anterior, dirigi-me à Sinase e marquei uma sala para uma «reunião de trabalho com antigos camaradas de Liceu», assinando o pedido com o meu próprio nome. De todos os pontos do país vieram camaradas para Lisboa, com a indicação de que a reunião era às 21 horas do dia 5 de Março na Sinase. Os camaradas concentrar-se-iam em pequenos grupos em 12 pastelarias e cafés de Lisboa. Uma hora antes, o capitão Vasco Lourenço e eu dividimos entre nós a tarefa de ir a esses diferentes pontos de encontro avisar que a reunião era em Cascais, em determinado local e não na Sinase. Assim, se as autoridades e a PIDE estiveram preparadas para intervir na Sinase, fizemo-las perder a oportunidade.
As circulares que distribuímos aos camaradas e que chegaram às mãos das entidades governamentais, a transferência súbita de unidade ordenada a camaradas que, de um modo ou de outro estavam ligados ao Movimento, o clamoroso acontecimento das Caldas, faz-me sorrir da sua pergunta quanto às suspeitas (!) que a PIDE e, em consequência, o Governo, teriam da existência do Movimento das Forças Armadas!
CADERNOS PORTUGÁLIA — Uma das perguntas que surge naturalmente em todos os espíritos diz respeito às razões que teriam existido para que um grupo de oficiais com uma média de idades rondando entre os trinta e os quarenta anos levasse a cabo um movimento do tipo do 25 de Abril. Se nos recordarmos que o regime fascista sempre viu no Exército um corpo de elite, guardião do sistema, estranha-se que tenham sido os oficiais aqueles que agora se rebelaram. Para tal sabemos que a guerra no Ultramar terá contribuído de maneira decisiva. Mas, por outro lado, quer-nos parecer que, a partir de certa altura, há uma modificação estrutural na Escola do Exército e essa modificação leva ao aparecimento de uma geração de oficiais captada em camadas menos favorecidas, ao contrário do que até aí sucedia, em que a maioria do oficialato era recrutada na grande burguesia e mesmo até na decadente aristocracia. Como encara estes dois aspectos motivadores do 25 de Abril?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — É realmente verdade que durante décadas o recrutamento dos oficiais era feito nas classes economicamente mais elevadas. Para a admissão à antiga Escola de Guerra, depois Escola do Exército, era necessário passar-se em provas físicas muito rigorosas e, além disso, o candidato devia poder adquirir um determinado «enxoval» que custava ainda uns bons contos de reis. É natural, portanto, que as classes menos favorecidas se vissem em dificuldades para colocar os seus filhos na Escola do Exército; no final da década de 50, porém, o governo salazarista começa a conceder maiores facilidades ao acesso, até que a eclosão da guerra em Angola vai permitir uma total abertura para a admissão na Escola do Exército, a par de excelentes regalias. Era necessário, para se dar continuidade à guerra, um número muito maior de oficiais do que o então existente e daí ter surgido como lógica tal abertura. Eu sou do tempo em que não sendo já tão rigorosa a admissão, ainda se passava por alguns crivos apertados; mas grande parte dos meus camaradas são mais novos e realmente originários de um estrato social e económico muito diferente daquele que frequentara a Escola de Guerra nos anos 30 e 40. Sendo essa uma razão lógica e determinante, sem dúvida que a segunda, a guerra no Ultramar, foi mais importante. Eu lembro-me que na minha segunda comissão de serviço em Angola em 65-67, fui encontrar nas tropas um espírito completamente diferente daquele que as animava no início, quando em 1961 marchavam para Angola imbuídas da ideia da defesa do torrão pátrio e pensando que aquilo se resolveria rapidamente, pois se tratava apenas de uma sublevação sem razão de ser, que não havia direito, que tínhamos de dominar aqueles bárbaros o mais depressa possível a bem da Nação. A continuidade da guerra alterou esta visão do problema e o cansaço provocou também uma mudança no espírito das pessoas. Constituíram factores que provocaram a tomada de consciência que em nós se foi consolidando e que rapidamente nos fez chegar à conclusão de que o problema tinha de ter uma solução política. Na verdade, nós andávamos ali de espingarda nas mãos, aos tiros uns aos outros, sentindo que aquilo não conduzia a nada. E dizíamos para nós próprios: nós estamos para aqui desenraizados, os nossos «inimigos» se calhar também não sabem bem o que andam a fazer, mas são capazes de ter mais razão do que nós e, pelo menos, a lutar, porque esta terra é deles. Já era um bom motivo. Pela nossa parte, podíamos andar ali dezenas de anos aos tiros uns aos outros que aquilo não se resolvia; bastava «eles» porem uma mina por mês numa estrada e essa mina rebentar, para nós continuarmos em estado de guerra e termos ali empatado um Exército de dezenas de milhares de homens, longe das famílias, desmotivados, a quem tínhamos de imprimir a chama do fogo sagrado da defesa da Pátria em terras do Ultramar. Chegámos à conclusão que a nossa missão só podia ser «aguentar» a guerra militarmente, até que a nível de Governo Central se encontrasse para ela uma solução política. Conhecíamos o exemplo de outros países que tinham possessões coloniais e que, em determinado momento, cederam, encontrando a solução. Concluímos, por fim, que ou o Governo Português se revelava incapaz para encontrar essa solução ou até colaborava na continuidade da situação, porque protegia toda uma alta finança que ia buscar às colónias a mão de obra barata e a matéria-prima que lhe permitia enriquecer cada vez mais em estado de guerra, enquanto a Nação se depauperava nos seus meios humanos e de potencial riqueza.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Exactamente. Mas supomos que é o facto da vossa origem social ser completamente diversa da dos oficiais mais antigos que vos leva a essa tomada de consciência, a essa reflexão mais rápida sobre o verdadeiro cerne do problema.
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Sim, parece-me lógico. Nós de modo nenhum nos sentíamos obrigados a proteger ninguém e muito menos a alta finança com a qual não nos sentíamos identificados. É provável que oficiais recrutados em classes sociais mais favorecidas sentissem que, pelo menos, estavam a defender os seus privilégios classistas, o que não acontecia realmente connosco.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Para terminarmos esta já longa conversa, parecia-nos interessante, no caso evidentemente do brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho concordar, saber a sua opinião acerca de algumas personalidades que pelo menos desde 25 de Abril têm estado em foco. Por exemplo, que pensa do brigadeiro Vasco Gonçalves?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Vasco Gonçalves é um homem de extraordinário carácter, profundamente honesto e de uma pureza de ideais que é raro ver-se na geração de oficiais a que ele pertence. Eu sei, embora nunca tenha falado com ele a esse respeito, que o brigadeiro Vasco Gonçalves esteve envolvido em intentonas anteriores, que ou nunca foram perfeitamente organizadas ou, pelo menos, nunca deram garantias de terem êxito. O brigadeiro Vasco Gonçalves que estava colocado na Direcção da Arma de Engenharia foi integrado no Movimento pelos capitães Pinto Soares e Macedo. Estes dois oficiais eram dois dos representantes da Arma de Engenharia na Comissão Coordenadora do Movimento. Havíamos sentido a necessidade de formação de uma Comissão Consultiva para alargamento dos ideais do Movimento a escalões mais elevados, ou seja, de estendermos a nossa acção a tenentes-coronéis, coronéis, brigadeiros, generais. Infelizmente, não houve tempo para isso. Infelizmente ou felizmente... Nessa primeira tentativa de alargamento procurámos contactar com tenentes-coronéis e coronéis de todas as Armas e a verdade é que só nos apareceram a nível de tenentes-coronéis, o tenente-coronel Lopes Pires, agora graduado em general e o tenente-coronel Bazol que eu vi pela primeira vez na reunião de 24 de Novembro em S. Pedro do Estoril e não em Cascais, como ele afirmou recentemente. Mais tarde, em 5 de Março, embora eu já soubesse que ele estava profundamente integrado no Movimento, aparece o tenente-coronel Charais, agora Conselheiro de Estado e o tenente-coronel Costa Brás, actual ministro da Administração Interna. Mas, ao nível de coronéis é que a nossa acção de aliciamento se tornou extrema^ mente difícil. Os únicos coronéis que apareceram foram o Marcelino Marques, de Administração Militar, em casa de quem se fez até uma reunião muito importante e o Vasco Gonçalves que, oito dias depois da eleição da Comissão Coordenadora do Movimento em Óbidos, presidia à primeira reunião dessa Comissão na Costa da Caparica. O coronel Vasco Gonçalves teve desde sempre e ainda mais depois de aderir ao Movimento o profundo respeito de todos nós, até porque muitos o conheciam já de tradição como professor na Academia Militar. Durante o processo do Movimento ele tomou atitudes frontais, perfeitamente definidas, contra superiores, em defesa do MFA e dos seus ideais, o que nos levou a considerá-lo como um coronel com que podíamos contar a cem por cento. Com ideais democráticos perfeitamente claros passou a ser um dos nossos melhores conselheiros. Não tenho dúvida nenhumas em considerar, no seu idealismo, na sua pureza de intenções, na sua honestidade, na sua extraordinária rectidão de carácter (todo ele transpira verdade por todos os poros), o brigadeiro Vasco Gonçalves é um homem profundamente admirado por todos nós. Claro que as forças reaccionárias não o têm poupado a toda a espécie de críticas, levantando contra ele aleivosias e boatos dos mais torpes, com que pretendem difamá-lo. mas tudo isso é natural e faz parte das armas habituais usadas pela reacção.
CADERNOS POR1UGÁLIA — E o General Galvão de Melo?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Eu só conheci o general Galvão de Melo em 25 de Abril, quando a Junta Nacional, antes de ir para a RTP, se reuniu na Pontinha. Como já é sabido, os elementos da Junta foram escolhidos pelo« elementos do respectivo ramo das Forças Armadas: os do Exército pelos oficiais do Movimento do Exército, os da Marinha pelos da Marinha e os da Força Aérea pelos da Força Aérea. Dois dias antes do 25 de Abril foi-me dito pelos camaradas da Força Aérea que os elementos por eles escolhidos eram o general Diogo Neto que se encontrava em Moçambique como Comandante da Região Aérea e o coronel Galvão de Melo que estava na reserva. Não conhecia pessoalmente nenhum deles; tinha ouvido falar muito no general Diogo Neto por acções de heroísmo, como piloto, praticadas em Angola. Quanto a Galvão de Melo, disseram-me os camaradas da Força Aérea que o haviam escolhido, porque ao longo de toda a sua vida sempre fora um homem com atitudes extraordinariamente firmes de carácter, atitudes frontais para com superiores em relação a assuntos de que ele discordava na sua profissão. Nunca fora homem para se encolher e, por isso, fora prejudicado e punido por ter tomado atitudes que, aparentemente, raiavam até pela indisciplina. Fora esse conjunto de posições que o levara a pedir a passagem à reserva, pois considerara que não poderia introduzir na Força Aérea as medidas que julgava mais correctas, ficando impedido de ascender ao generalato, o que, devido à sua folha de serviço como piloto, teria sido fácil. Era um homem, portanto, definido pelo seu carácter e pela sua firmeza. Isso veio, afinal, a revelar-se não ser impeditivo para que ele assumisse as mesmas posições e com a mesma firmeza na defesa de um conjunto de ideias que, evidentemente, não interessavam ao processo progressista desencadeado em 25 de Abril, tendo tomado uma série de atitudes que se revelaram profundamente negativas para todo o processo, desde e afirmações publicamente feitas até posições de inteira adesão a todo o leque do centro à extrema-direita que, de resto, o considerava muito e para quem ele era a grande esperança, em potencial, para a Presidência da República.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Sabe-se que o general Galvão de Melo está intimamente ligado a alta finança...
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Sim, ele pertence a uma família bastante rica. Faz parte dos corpos administrativos da Petrangol e tem, juntamente com os irmãos, grandes interesses numa empresa de madeiras que julgo que lhes foi legada pelo pai e que se abastece das madeiras de Cabinda.
CADERNOS PORTUGÁLIA — A sua opinião sobre o general Fabião?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — O general Fabião é um homem com um extraordinário prestígio entre os postos intermédios dos oficiais do Exército. Foi promovido por distinção a major e teve 12 ou 13 anos de permanência na Guiné, pelo que é, sem dúvida, dos oficiais que melhor conheceu aquele país. Devido às suas excepcionais qualidades como comandante de tropas em combate, à profunda humanidade do seu trato com toda a gente, à sua inteligência e cultura, o general Fabião conseguiu obter não só a admiração dos camaradas do Exército como também uma grande simpatia por parte das populações da Guiné. Além disso, é um homem de grande sensibilidade poética. Teve contra ele, se assim me posso exprimir, o facto de ter feito parte do círculo fechado do general Spínola na Guiné, para o qual foi levado pelo tenente-coronel Almeida Bruno que nutre por ele uma profunda admiração, Daí que, para muita gente, o general Fabião tenha sido considerado um «spinolista», embora realmente não o seja, pois é antes uma pessoa declaradamente independente que, sendo antes e continuando a ser agora amigo do general Spínola, manteve sempre uma linha de extrema independência. Aliás, isso confirmou-se em absoluto em face da acção por ele desenvolvida na Guiné de Maio para cá, período durante o qual não raras vezes teve de manter lutas frontais com o general Spínola, precisamente porque o seu modo de encarar a descolonização na Guiné, e que era o nosso, diferia da opinião do general Spínola.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Aliás, quer-nos parecer que a demissão do general Spínola não é só ditada por imperativos políticos imediatos, mas porque a descolonização terá seguido rumos e ritmos que não eram propriamente os que ele defendia...
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Sim, na verdade, o seu livro «Portugal e o Futuro» foi uma desilusão muito grande quanto à teoria apresentada face à descolonização efectiva que se pretendia. O general Spínola empregou a palavra «Portugalidade» para todo o conjunto de uma Federação que ele julgava possível realizar. Nesse aspecto, o general Spínola foi muito influenciado por Leopold Senghor que é um homem todo virado para o Ocidente e muito amigo do nosso País. Ora o general Spínola é um homem contumaz e quando define uma determinada ideia procura ir com ela até ao fim e não admite qualquer desvio. Portanto quando ele se apercebeu que a sua ideia já não era exequível, porque aquilo que se pensa é uma coisa e a realidade pode ser outra, entrou em luta consigo próprio. Mas, de facto, era já tarde demais e as circunstâncias não admitiam que a sua ideia federativa pudesse ir para a frente.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Essa seria a justificação para que nas primeiras negociações os negociadores políticos fossem sempre acompanhados por negociadores militares. No seu caso, por exemplo, quando foi a Lusaca...
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Exactamente. Comigo, no entanto, o general Spínola ficou bastante desiludido. Em Lusaca, eu vi desde logo que a única solução era a que se veio a efectivar — não havia outra possível. O dr. Mário Soares, muito cauteloso e com elevado espírito diplomático, durante as negociações não se comprometeu de modo nenhum, falou sempre com firmeza mas com «sentido político». Eu expus as minhas ideias numa linguagem aberta sem rodeios. Senti, claro, que diplomaticamente estava, como costuma dizer-se, a «espalhar-me», mas como não era capaz de falar doutra maneira, a partir de certa altura calei-me. O resultado foi que o Samora Machel e os homens da Frelimo ficaram um bocado desconfiados com o dr. Mário Soares e a mim adoraram-me... Quando chegámos a Lisboa, o dr. Mário Soares pediu-me que fosse com ele a Belém dar contas ao general Spínola do que se passara. Mário Soares expôs o mais cautelosamente possível o problema ao general e, depois, passou-me a palavra. Eu disse claramente quais as condições da descolonização e referi a posição da Frelimo que me parecia ser a única correcta e possível. O general Spínola «atirou-se ao ar». «Tem de haver outras soluções, não é nada disso», gritava o general, «não quero ouvir mais nada; você, o melhor que tem a fazer é calar-se». Limitei-me a reforçar as minhas afirmações, insistindo em que a realidade levava-nos a ter de aceitar outro tipo de descolonização que não o previsto pelo general, até porque as nossas tropas (e isso eu sabia-o bem) não estavam dispostas a continuar na mesma situação — atingira-se um tal ponto de saturação que o 25 de Abril surgia como o fim de um pesadelo. De facto, se queríamos sair de Moçambique de cabeça levantada, tínhamos de ser nós a tomar a iniciativa. Caso contrário corríamos o risco de ter de lá sair com uma derrota vergonhosa às costas. De resto, só concordando com a Frelimo tínhamos hipóteses de evitar que se cavasse um fosso total entre nós e o futuro Moçambique. «Não senhor, não pode ser assim — dizia o general Spínola — porque se for preciso, eu, ao meu nível, falo com o Nixon e ele manda tropas americanas para lá». Chamei-lhe a atenção para o risco de uma vietnamização do conflito em Moçambique que, com certeza, nem ao próprio Nixon interessaria. «Mas se não for o Nixon, a África do Sul dá-nos tropas!» — continuava o general Spínola que procurava o máximo de argumentos para evitar a solução preconizada, ou seja, uma solução política (pela qual de resto o Exército português lutava há dez anos) que teria de se encontrar através de um partido que fosse o mais representativo do povo moçambicano e esse partido era a Frelimo que, embora não represente todo o povo era, sem dúvida, aquele que havia lutado pela independência da sua terra, que sofrera na carne todos os horrores de uma guerra de dez anos. O nosso interlocutor válido era a Frelimo, não só pela sua grande representatividade como também pelo facto de ter sido o partido que lutou demoradamente pela independência, e uma vez que ela estava disposta a assumir a responsabilidade de encetar a árdua caminhada para a construção do seu novo país, era a ela e com ela que teríamos de chegar a acordo.
CADERNOS PORTUGÁLIA — Digamos que o caso da Guiné está resolvido e o de Moçambique, com todas as dificuldades que sabemos, caminha também para uma solução. Angola, porém, encontra-se muito longe ainda de um rumo. As conversações do general Spínola com Mobutu foram devidas a quê?
OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Bom, aí reside outro dos aspectos relativos à concepção do general sobre a descolonização e a política. Havia que encontrar também em Angola um interlocutor válido. Mas lá, três movimento possuem forças respeitáveis: a FNLA, o MPLA e a UNITA.
Claro, o general Spínola ouvira dizer que o dr. Agostinho Neto, leader do MPLA, é comunista e, portanto, não o escolheu como primeiro interlocutor e preferiu-lhe a FNLA que, como se sabe, é apoiada por Mobutu, o qual, por sua vez, como se supõe, se apoia nos Estados Unidos. Essa a razão, o que não quer dizer que não se viesse a falar com o MPLA. Simplesmente, como é natural, o general Spínola escolheu Mobutu e a FNLA. Ora, as negociações devem fazer-se com todos e, por isso, o general Fontes Pereira de Melo, em representação do general Costa Gomes, prosseguiu esses contactos com a FNLA e conseguiu o cessar-fogo, vindo mais tarde a obter-se o mesmo com o MPLA. Dado que a UNITA já tinha sido o primeiro partido a cessar as acções de combate, parece tudo se poder encaminhar, finalmente, em Angola, para se sentarem a uma mesa os dirigentes dos três partidos, que já contam com a adesão, conforme o estrato social e a ideologia política, dos brancos de Angola, e poderem finalmente discutir o futuro do seu País e formar um Governo de transição até à declaração da independência.
Inclusão | 06/06/2019 |