MIA> Biblioteca> Temática > Novidades
Fonte: Bandeira Vermelha - https://bandeiravermelhablog1.wordpress.com/2017/11/
Observação: António Barata é trabalhador gráfico. Militou na UDP e no PCP(R) entre 1976 e 1984, tendo participado na cisão encabeçada por Francisco Martins Rodrigues que levou à criação da Organização Comunista Política Operária, fazendo desde então parte do colectivo redactorial do jornal Política Operária. Tem integrado e participado em movimentos de defesa de presos políticos, anti-racistas e anticoloniais, antimilitaristas, contra a celebração do 5º centenário da “descoberta” da América, contra as guerras imperialistas, de defesa dos direitos dos imigrantes, pelo direito à habitação, de solidariedade com a Palestina etc.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Um golpe militar como coroamento da “normalização” à bomba da sociedade portuguesa – tal é a pouco apresentável certidão de nascimento da nossa democracia. Será de estranhar o estado de senilidade em que esta se encontra?
Passaram 42 anos sobre o golpe de estado realizado pelo conjunto de forças que na altura ia da extrema-direita à social-democracia (ou seja dos saudosos do fascismo ao PS, igreja católica incluída). Pela primeira vez, a data passou despercebida – a Assembleia da República ignorou a data, não se realizaram os costumeiros desfiles militares, a Associação 25 de Abril nada disse, a comunicação social nem uma nota de rodapé lhe dedicou. É como se nada se tivesse passado em 25 de Novembro de 1975, data até há muito pouco exaltada, como grande triunfo da democracia sobre o “totalitarismo” de esquerda e o “anarco-populismo”, pela direita portuguesa e os partidos do “centrão” (PS, e PSD).
Ao contrário de há 20 anos, o 25 de Novembro já não motiva acaloradas discussões. Para quê lembrar um tempo em que os de baixo, os trabalhadores explorados pelo capital, tinham algo a dizer e metiam em respeito patrões, banqueiros e políticos?
No entanto é bom recorda que na década de 90 do século passado, 20 anos passados sobre o chamado PREC (Processo Revolucionário em Curso), os pactos de silêncio que envolviam o 25 de Novembro foram-se esfarrapando. Com o tempo, o poder novembrista havia-se consolidado e legitimado, sobre uma revolução que o não soube ser. Perante uma esquerda e um movimento popular de rastos, os comparsas foram perdendo o medo. Já não precisavam de falar daqueles acontecimentos só por difusas alusões “patrióticas”: podiam entrar no relato dos factos.
Primeiro foram os bombistas do ELP/MDLP que (ainda no final dos anos oitenta) ao ver-se “apanhados” nas disputas e represálias entre o PS e o PSD ou acusados nos processos da morte do padre Max, de Ferreira Torres, etc, começaram a fazer insinuações, a levantar a ponta do véu e a revelar algo do que sabiam. A seguir, também vozes autorizadas da área do PS, do PSD e do eanismo acharam já ser possível falar daqueles acontecimentos com algum “distanciamento” e “de forma desapaixonada”.
Até que passado algum tempo todos começara a reivindicar a sua quota-parte na “normalização e democratização” à bomba da sociedade portuguesa. Confessaram ter havido distribuição de armas a civis reaccionários; confirmaram a ingerência determinante do imperialismo, nomeadamente do embaixador da CIA Frank Carlucci, assim como dos serviços de informação alemães, franceses e ingleses no pós-25 de Abril e no fomento do separatismo insular; afirmam ter sido encarado o recurso à intervenção dos exércitos franquistas e ingleses no nosso país, caso o bloco contra-revolucionário liderado pelo PS não conseguisse dar conta do recado, etc.
A catadupa de “revelações” foi tal que os aparentemente ingénuos militares do “Grupo dos Nove”, a quem dói a ingratidão dos poderes instituídos e o regresso das múmias do antigamente aos mais altos cargos das FA´s a que se achavam com direito, começaram a interrogar-se sobre a sua instrumentalização e a desculpar-se do apoio e cobertura que deram à reacção naquele período.
A título de exemplo, veja-se o depoimento de Vasco Lourenço à revista História, de Novembro de 1995:
“Tenho algumas suspeitas e dúvidas. Desde logo, quantos 25 de Novembro existiram? Que ligações espúrias tinha o chamado “Grupo Militar”, que compromissos e que consequências teve na evolução pós-25 de Novembro? Nomeadamente, quais as relações com o MDLP, qual a utilização abusiva do nome do Grupo dos Nove? Contrariamente à decisão dos Nove, o Grupo Militar elaborou ou não um plano de operações ofensivo? Se sim, que havia de verdade nas acusações que os revolucionários então fizeram, quanto ao chamado ‘golpe dos coronéis’? E se sim, até que ponto a hipótese do lançamento de um golpe de direita esteve eminente? Porquê a distribuição de armas a civis, sob a responsabilidade do Posto de Comando da Amadora, e porquê a sua ocultação perante mim, de quem esse posto de comando dependia directamente? Quantas traições então praticadas serão ainda do meu desconhecimento?
Em resultado de tudo isto, a tese oficial de que o 25 de Novembro teria sido a resposta das forças democráticas a uma tentativa de golpe do PCP e esquerdistas, tornou-se um mito insustentável, desmontado pelos próprios que a fabricaram. Tanto o na altura presidente Costa Gomes como os militares do Grupo dos Nove confessam que tinham o golpe em preparação há muito tempo, tal como a provocação que o iria justificar.
“Pacificada” a sociedade portuguesa, como é da moda agora dizer-se, direita e social-democracia rivalizam sobre quem detém o verdadeiro espírito da jornada novembrista, um pouco à semelhança do que se passa entre os militares quanto à paternidade do 25 de Abril. Enquanto a direita acusa o “meloantunismo” de ter bloqueado o golpe a meio para “proteger os comunas” (Melo Antunes havia obtido o compromisso do PCP de que não agiria contra o golpe em troca da sua não ilegalização), os social-democratas regozijam-se por terem sido capazes de varrer a esquerda e conter a extrema-direita.
Distinguir o bom do mau 25 de Novembro tem sido útil para o PS e o Grupo dos Nove, como forma de legitimar com cores democráticas o actual sistema político e o golpe de força sobre que se ergueu; para branquear a liança por si apadrinhada contra a “bagunça esquerdista” e, convencer-nos, pelas provas dadas, serem eles a melhor garantia de estabilidade governativa e tolerância política face à arrogância laranja e ao nacionalismo xenófobo do CDS.
Há, nesta demarcação, um grande cinismo dos líderes do PS e dos Nove. Todos eles sabiam com o que lidavam; todos comungavam da mesma determinação reacionária de acabar, custasse o que custasse, com a “indisciplina” nos quartéis e nas fábricas, o “desrespeito pela propriedade”, as ocupações “selvagens”, a Reforma Agrária, o “controlo operário”, os saneamentos, etc. Não é segredo nenhum que militares com Vítor Alves, Melo Antunes ou Sousa e Castro, ou seja, a generalidade dos que compunham os Grupo dos Nove, tinham contactos com as redes bombistas, forneciam-lhes armas e cobertura. Mais, todos eles se afirmaram orgulhosos do golpe, e reafirmaram a determinação de, na altura, ir para a guerra civil caso houvesse resposta popular ao golpe por eles desencadeado. Por isso mesmo, não se cansaram de elogiar o “sentido de responsabilidade” do PCP, por, a pedido deles, ter desmobilizado tanto as unidades militares que influenciava como os seus militantes, assegurando assim que o golpe não encontraria resistência.
A facilidade com que os golpistas de Novembro dominaram a esquerda é uma questão que deixa muita gente perplexa. Uns culpam a indecisão de Otelo, outros a cobardia do PCP, outros ao “aventureirismo” dos esquerdistas que teriam precipitado uma situação para que não estavam preparados.
Ora, a derrota da esquerda começou muito antes. Primeiro, com a aceitação das eleições para a Constituinte em Abril de 1975, quando o desmantelamento do aparelho de poder fascista apenas começara; as eleições precipitadas serviram para legitimar o PS e dar ânimo à direita, contra um movimento popular revolucionário que mal dava os primeiros passos. Nos meses seguintes, a esquerda continuou a perder pontos pela sua incapacidade para ultrapassar o PCP junto das grandes massas, responder com eficácia ao terrorismo dos bombistas e da Igreja Católica e se desatrelar dos militares progressistas, transformados numa espécie de guarda-chuva da “revolução”.
Esta tutela exercida pelos militares “avançados” viria a revelar-se desastrosa, sobretudo a partir do 11 de Março. Permitiu à esquerda um protagonismo que não emanava directamente da sua capacidade para impor na rua as suas soluções, criou-lhe uma vertigem do êxito, pela facilidade com que conseguia conquistas, mas despreparou-a para enfrentar a batalha real que se aproximava. Com o afastamento desses militares pelos Nove, na reunião de Tancos, a esquerda ficou desarmada.
Assim, as tentativas que já em desespero de causa se lançaram à última hora para armar trabalhadores e activistas populares, além de tardias, foram feitas sem grande convicção, mais por um sentimento de autodefesa que de ofensiva. Retrato exemplar desta situação foi a palavra de ordem da UDP, “Não à guerra civil”, sob o pretexto de que uma resposta pela força à direita iria dividir o povo e colocar trabalhadores contra trabalhadores. E esta palavra de ordem derrotista é lançada precisamente pela mais influente organização revolucionária da altura, que se destacava pelo entusiasmo na luta contra a reacção e o reformismo!
Em resumo: se os vencedores do 25 de Novembro podem hoje vangloriar-se de não ter feito uma carnificina, o mérito não lhes pertence. O golpe só foi pacífico porque encontrou o movimento operário e popular já degradado pela actuação do PCP, que, desde os primeiros dias após o 25 de Abril, encaminhou os conflitos políticos e sociais para a tutela do MFA – Movimento das Forças Armadas fazendo dele tudo depender. Em última análise, a responsabilidade cabe aos revolucionários, que não foram capazes de, no decurso do PREC, forjar uma direcção política que reduzisse a influência do PCP, explorasse as potencialidades excepcionais do movimento popular e desse um golpe decisivo no poder da burguesia.