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Fonte: Outros Tempos, vol. 11, n.17, 2014 p. 212-229. ISSN:1808-8031 — https://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/view/336
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Resumo: Neste artigo fazemos uma sistematização das principais características/causas da revolução portuguesa, argumentado que são as mudanças sociais que estão na origem das rupturas governativas e que a incapacidade de haver acordos institucionais prende-se com a impossibilidade de conjugação de projetos políticos, impossibilitados de realizarem-se pela dinâmica do movimento social, e não o seu inverso. Numa segunda parte do artigo analisamos o impacto do processo contrarrevolucionário — o pacto social — iniciado a partir de Novembro de 1975. Argumentamos que o pacto social nasceu em 1975 e ficou consagrado na Constituição de 1976, mantendo-se por causa da intensa conflituosidade herdada da revolução — 10 governos em 10 anos, entre 1976 e 1985.
No dia 25 de Abril de 1974 um golpe levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) põe fim à ditadura portuguesa. De imediato, e contra o apelo dos militares que dirigiram o golpe — que insistiam pela rádio para as pessoas ficarem em casa —, milhares de pessoas saíram de suas casas, e foi com as pessoas à porta, a gritar «morte ao fascismo», que no Quartel do Carmo, em Lisboa, o Governo foi cercado; as portas das prisões de Caxias e Peniche abriram-se para saírem todos os presos políticos; a PIDE, a polícia política, foi desmantelada, atacada a sede do jornal do regime A Época e a censura abolida.
Um ano depois, em 1975 o país era outro: o Governo vê-se obrigado a atualizar o salário mínimo (de 3300 escudos para 4000 escudos entre abril de 1974 e abril de 1975) e a aprovar medidas de contenção dos preços dos bens alimentares, isto depois de várias manifestações ao longo do mês de março de 1975 contra a «carestia de vida». Em muitas fábricas e empresas o Governo é obrigado a intervir (em mais de 300 ao todo) para evitar despedimentos e descapitalização, conseguindo os trabalhadores que a fábrica mantenha a produção e os postos de trabalho, mas em muitas outras conseguem aumentos salariais, generalização do contrato coletivo, 13.° mês, subsídio de Natal. Também foram conseguidas melhorias generalizadas ao nível da previdência, assistência na maternidade, doença e invalidez. É neste período que os trabalhadores conseguem o subsídio de desemprego, generalização do direito à reforma e à segurança social; acesso generalizado a cuidados de saúde; direito ao divórcio civil para casamentos católicos; habitação social, controle do preço das rendas e de bens alimentares essenciais; nacionalização da banca e das seguradoras nacionais, reforma agrária, democratização da gestão do ensino secundário e superior. É ainda neste período, é preciso recordá-lo, que um dos mais básicos direitos é conquistado: o direito à autodeterminação dos povos de África colonizados por Portugal. Entre julho de 1974 e novembro de 1975 é oficialmente reconhecida a independência da Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola.
As obras que até aqui têm marcado o debate recente em torno da revolução portuguesa, com perspetivas diferentes entre si, privilegiam o papel dos sujeitos representativos, partidos e MFA, centrando-se nos arquivos institucionais ou entrevistas atuais a quadros dirigentes da revolução, militares ou civis, nacionais ou internacionais.(1) Estas obras são hoje indispensáveis para compreender a revolução portuguesa, tendo historicizado acontecimentos tão fulcrais como o papel dos militares ou as influências externas na revolução portuguesa. Mas é notório o predomínio que obras centradas em direções políticas e tendo como fonte principal os próprios dirigentes políticos (com um boom de história oral feita com dirigentes do Estado, de partidos, de associações, de escolas, etc.) tem sobre os estudos que abordam as classes sociais.
Poder-se-ia atribuir o facto ao perene problema das fontes, que é sempre referido quanto se trata de analisar a história das classes trabalhadoras e populares. Carlo Ginzburg, por exemplo, inicia o seu O Queijo e os Vermes justamente lembrando que «A escassez de testemunhos sobre o comportamento e as atitudes das classes subalternas do passado é com certeza o primeiro — mas não o único — obstáculo contra o qual as pesquisas históricas do género se chocam».(2) Precisamente quando se trata de uma situação revolucionária, cuja característica primeira é a participação social de milhões de pessoas até aí afastadas da política, a escassez de fontes é um obstáculo tão ou mais difícil de ultrapassar. Mas não impossível. Leon Trotsky, na obra A História da Revolução Russa, refere justamente a obrigação que os historiadores têm de ultrapassar a escassez parcial de fontes:
As dificuldades encontradas quando se estudam as modificações da consciência das massas em época de revolução são totalmente evidentes. As classes oprimidas fazem a história nas fábricas, nos quartéis, nos campos, e, as da cidade, nas ruas. Não têm entretanto o hábito de anotar, por escrito, o que fazem.(3)
Apesar de tudo, é nos fragmentos, anotações “ao acaso”, fortuitas das massas, refere Trotsky, que os dirigentes políticos adaptam a sua tática. Assim, pergunta ele, porquê o que «era acessível a um político revolucionário no torvelinho da luta se tornaria impossível, retrospectivamente, para um historiador?»(4)
Hoje há mais fontes em Portugal para estudar a revolução do que havia a seguir à década de 70 do século XX, quando foram feitos os estudos do movimento operário português da revolução ou as obras que estudaram a revolução privilegiando a história das classes e das suas direções, como os ainda hoje imprescindíveis estudos de Chip Dows(5), Santos e outros(6), John Hammond(7), Loren Goldner(8), entre outros. A escolha da abordagem historiográfica que fazemos é central e não diz respeito só a um problema de fontes. Porque o problema central não é o das fontes, mas o de haver historiadores disponíveis para trabalhar determinado objeto, como escreveu Eric Hobsbawm no ensaio “A História de baixo para cima”:
Muitas fontes para a história dos movimentos populares apenas foram reconhecidas como tais porque alguém fez uma pergunta e depois sondou desesperadamente em busca de alguma maneira — qualquer maneira — de respondê-la. Não podemos ser positivistas, acreditando que as perguntas e as respostas surgem naturalmente do estudo material.(9)
Que perguntas podemos nós fazer para reiniciar um diálogo com as fontes que olhe a totalidade do processo? Por exemplo: até onde foi a força dos trabalhadores em 1974-1975? Exagera-se ou não o papel dos trabalhadores durante a revolução, ou por outras palavras, mitifica-se a classe operária e seus aliados? Qual o grau de espontaneidade das suas ações? Quais eram a organizações que tinham mais força junto dos trabalhadores? Em que fábricas e em que áreas geográficas as ações foram mais radicalizadas? Em quantas empresas e fábricas houve lutas, que tipo de lutas e que força tinham as organizações políticas e sindicais entre o Verão Quente e 25 de novembro de 1975? Qual o grau de autonomia do MFA face aos partidos e face aos trabalhadores? Porquê em 1974-75 a maioria da classe operária portuguesa aceitou ser dirigida por PCP, PS e MFA, confiando que o MFA dirigiria a mudança de regime, a «caminho do socialismo»? Qual é a real extensão das comissões de soldados e da ‘indisciplina’ nos quartéis? Qual a relação de forças dentro das Assembleias de Unidade? Qual é a extensão geral das ocupações de casas no País todo e o seu impacto na desvalorização da propriedade? Como se construiu a Intersindical? Porquê o 25 de novembro, depois de um processo tão radicalizado, desferiu um golpe na revolução com tão pouca resistência popular e operária? O que aconteceu ao Estado na revolução portuguesa? Ou até onde foram aos organismos de ‘poder popular’? Qual foi a real força das classes em Portugal naquele biénio e como atuaram as suas direções?
Uma abordagem historiográfica que privilegie as lutas sociais é indispensável para compreender uma situação revolucionária, um passo no sentido de nos fazer mudar, em primeiro lugar, as perguntas. É impossível compreender a totalidade do golpe de 11 de março de 1975 sem ter um levantamento das fábricas e empresas do País onde havia de facto em curso um processo de controlo operário — como propusemos.
É um facto, por exemplo, que é historicamente menos complexo atribuir a responsabilidade da nacionalização da banca ao Conselho da Revolução, porque essa documentação tem normalmente um acesso mais facilitado. Mas assim fazendo, e cremos que era para isso que alertava Hobsbawm, a história será reduzida a uma luta racional de direções políticas — partidos políticos, organizações sindicais, direções, elites dirigentes — que agem independentemente da sua base social e classe de origem. Investigar e compreender a revolução portuguesa a partir dos estudos de história social do movimento operário, a espinha dorsal da revolução, o esqueleto, nas palavras de Chris Harman(10), é uma opção que em si contém uma escolha: a admissão da autonomia relativa da teoria, ou seja, a assunção de que os documentos não «falam por si», como quiseram outrora os positivistas e como hoje de algum modo apontam as teorias pós-modernas, ao ocultarem-se numa indiferenciação das causas explicativas do processo histórico. Dito de outra forma, o historiador parte de uma teoria para a verificação de se se confirma ou não na realidade e procura explicar essa realidade hierarquizando, numa história em construção, os fatores que contribuíram para um dado acontecimento.
Revisionismo, como escreveu Eric Hobsbawm(11), não é todo e qualquer processo de escrita da história — como pretendem precisamente as teorias pós-modernas(12) —, mas almejar a construção de uma história sem dados da realidade que a confirmem, sem hierarquizar a importância dos acontecimentos ou ocultando dados fulcrais da análise.
A revolução portuguesa tem, destacámos noutros textos, quatro características determinantes que podem explicar o alcance da disrupção social:
É um processo que nasce de uma derrota militar de um Exército regular por movimentos revolucionários guerrilheiros apoiados nos camponeses da Guiné- Bissau, Angola e Moçambique;
Essa derrota combinou-se com a mais grave crise económica do capitalismo do pós-guerra, iniciada em 1973;
É marcada pelo protagonismo do movimento operário;
É marcada pelas especificidades desse mesmo movimento operário português, caracterizado pela sua juventude, desorganização política e sindical e a sua concentração na cintura industrial de Lisboa. A não existência livre de organizações de trabalhadores, um calcanhar de Aquiles do movimento operário português durante o Estado Novo, foi concomitantemente parte da radicalização da revolução porque a ausência destas organizações na maioria das fábricas e empresas do País determinou a abertura espontânea do espaço para surgirem as comissões de trabalhadores.
Abriu-se em Portugal, no biénio 1974-1975, a mais grave crise do Estado surgida no Portugal contemporâneo e deu-se início à última revolução da Europa Ocidental no pós- guerra a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção.
As tarefas reformistas/reformadoras, no sentido clássico do termo (nacionalizações, reforma agrária, melhoria dos salários), ganharam uma dimensão revolucionária porque foram conquistadas contra frações da burguesia, com métodos próprios do movimento operário (greves, ocupações de terras e fábricas) e, em muitos casos, através de organismos autónomos de trabalhadores, de assalariados agrícolas e, em certo momento, de soldados. Compreender a revolução, do ponto de vista historiográfico, implica recentrá-la na sua dimensão real, ou seja, recuperar, investigar, conhecer, catalogar os conflitos sociais. E relevar como protagonistas os sujeitos sociais (classes e suas frações), em alternativa a uma abordagem que olha a história pelo prisma dos sujeitos representativos (elites), procurando dessa forma eliminar do desenvolvimento social a noção de conflito coletivo.
Se a análise que fazemos é social e tem como eixo central a relação entre o poder operário e popular — organizado ou não — e o Estado, a periodização da revolução sofre algumas mudanças face à periodização clássica, que até aqui era proposta, centrada sobretudo nas mudanças de Governos provisórios e nos golpes de estado. É na relação de forças sociais que se explica a mudança de Governo, e esta mudança tem por sua vez um impacto significativo na definição de uma nova conjuntura social. A sucessão cronológica em história não é indiferente, porém, embora por vezes seja demasiado complexa ou intricada para ser definida com precisão.
Sugerimos como hipótese que o 11 de março não começou a revolução e ela não acabou com o fim do V Governo — teoria amplamente difundida pelo PCP, que agregava o conceito de revolução aos seus momentos de poder no aparelho de Estado. O 11 de março é ele fruto da radicalização da revolução com o controlo operário. E a queda do V Governo acelerou definitivamente a revolução nos quartéis. A revolução não se quebra com a perda do controlo do Estado, seja ele mais controlado pelo PCP ou pelo PS e pelas frações do MFA. O enfraquecimento do Estado e do MFA acelera a revolução, acelera a dualidade de poderes.
Cremos que são as mudanças sociais que estão na origem das ruturas governativas e a incapacidade de haver acordos institucionais prende-se com a impossibilidade de conjugação e projetos políticos, que se veem impossibilitados de realizar pela dinâmica do movimento social, e não o seu inverso.
Entre abril de 1974 e setembro de 1975 a revolução é marcada, depois do golpe inaugural, por um período onde são determinantes as lutas sociais, quer na metrópole quer nas colónias, por ações (greves) ou renúncias de agir (tropas nas colónias desmoralizadas para a guerra e oposição do MFA a continuar a guerra) e que levam finalmente à queda de Spínola em setembro de 1975 e a um reforço das estruturas frente-populistas (reforço do peso do PCP e do MFA para estabilizar o movimento reivindicativo) no Governo, a partir de 28 de setembro, com o III Governo Provisório. Este período é marcado, do ponto de vista social, pela conquista das liberdades democráticas — asseguradas logo ao fim de poucos dias do golpe — e pela permanência de uma mobilização social onde a greve é a forma de luta determinante, bem como o início da luta contra os despedimentos.
Entre setembro de 1974 e fevereiro de 1975, um segundo período marcado pela luta contra os despedimentos que leva à generalização da ocupação de empresas e ao reforço das comissões de trabalhadores como órgãos de poder paralelo ao do Estado. A ocupação de fábricas e empresas obriga o Estado a mobilizar capitais para manter a produção. Aprofunda-se a crise económica.
De fevereiro de 1975 a setembro de 1975 começa o período de controlo operário. O PS tentará, pela autogestão e pelo reforço da legitimidade eleitoral (eleições para sindicatos, autarquias, legitimidade da Constituinte), subverter o controlo operário; a extrema-esquerda, na sua maioria, apoiará o controlo operário; o PCP procurará conter o controlo operário pela nacionalização de empresas e pela tentativa de militarização do movimento popular com o Documento Guia Povo-MFA. Todos os partidos governamentais vão tentar pôr fim ao controlo operário pela política de batalha da produção. Não conseguem e em agosto formaliza-se a rutura governativa. O controlo operário será marcado pelo nascimento de estruturas embrionárias de coordenação nacional de órgãos de poder operário e popular, a partir de maio de 1975 (CRTSM, o Comité de Luta de Setúbal, Coordenadora das CTs da Metalomecânica, a CTCIL, a Coordenadora das Comissões de Trabalhadores). A coligação desmembra-se.
De setembro de 1975 a novembro de 1975, crise revolucionária, conhecida como «crise político-militar», ou seja, o período histórico nas revoluções em que há ou um deslocamento do Estado sob a égide dos trabalhadores ou um golpe põe fim à revolução; estes períodos são marcados pela recusa da burguesia em aceitar a expropriação que a levam a iniciar uma guerra civil. Neste período, o Estado não consegue governar, generaliza-se a dualidade de poderes a todos os níveis e todas as medidas do Estado são impossibilitadas por greves, manifestações, ocupações (Ponte 25 de Abril, cerco a São Bento, emissores de rádio etc.). Considerámos que a crise revolucionária só começa em setembro de 1975, na medida em que a crise do MFA, que começa no início do verão, só em setembro resulta na disseminação da dualidade de poderes nas Forças Armadas. O PS está com toda a direita e o Grupo dos Nove decidido a pôr fim ao processo por um golpe de estado; o PCP apoia-se na mobilização para garantir a reforma agrária e (possivelmente) a independência de Angola sob a égide do MPLA. A esquerda militar, apoiada numa situação de generalização da dualidade de poderes dentro dos quartéis, vai refletir a mobilização geral da sociedade, mas nem a esquerda militar tem um projeto político coerente nem os organismos de poder operário e popular estão centralizados a nível nacional naquilo que seria um «soviete» capaz de resistir ao golpe. A revolução é derrotada. As únicas estruturas com poder nacional recusam e não resistem, nomeadamente a Intersindical.
A revolução, essa aventura histórica de Portugal em 1974-1975, foi derrotada no seu momento insurrecional, o ‘assalto final’ ao poder do Estado, o que levou alguns a questionar se teria havido uma revolução — argumento teoricamente frágil, na medida em que a vitória ou derrota de um processo revolucionário não implica que esse processo não tenha existido(13). Curiosamente, foi muito mais uma revolução que ameaçou o poder económico do que o Estado.(14)
O golpe contrarrevolucionário de 25 de novembro de 1975 foi democrático, não veio pelas botas de uma ditadura militar, embora estivesse alicerçado também num setor dos militares. Esta tese — a da reação democrática —, defendida pelo historiador Valério Arcary, é a que encontra uma evidência empírica mais profunda, na nossa opinião. O golpe restaurou a disciplina nas forças armadas, assegurou a estabilização das instituições, mantendo um Estado de direito, um Parlamento, eleições livres, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Porém, ao contrário do que defendem Rosas e também (aqui citado por Arcary) Boaventura de Sousa Santos, a democracia representativa não foi a extensão da revolução, mas a rutura com a revolução e um regime assente na continuidade da modernização capitalista.
Todo processo revolucionário é uma refutação trágica das teses gradualistas que diminuem a importância da rutura, portanto, da insurreição, na estratégia de luta anticapitalista. Boaventura de Sousa Santos foi um dos defensores do balanço da revolução como um processo evolucionista: ‘A revolução socialista é o processo mais ou menos longo de transformação global de diferentes estruturas de poder da sociedade capitalista no sentido da democratização global da vida coletiva e individual. É a totalidade histórica em que culmina o conjunto das reformas sociais dispersas no tempo e nas diferentes práticas políticas. ’
A perspectiva de um longo processo de extensão da democracia, da acumulação de forças e direitos e de convencimento ou neutralização desarmada dos inimigos sociais sem a gravidade máxima do assalto ao poder não encontra uma fundamentação histórica consistente. Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças Armadas, o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo irreversível de estabilização de um regime democrático liberal. A oportunidade tinha sido perdida.(15)
Dois anos depois de novembro de 1975, Ramalho Eanes, o militar conservador que dirigiu as operações militares do 25 de novembro, afirmou, no seu discurso de celebração do 2.° aniversário do golpe, que este acontecimento foi indispensável para estabilizar o Estado e repor o processo de acumulação de capital:
Mudaram os desafios que se punham às instituições e órgãos de poder. Há um ano, os problemas a resolver de imediato consistiam na reconstrução do Estado, na autoridade do Governo, na convivência das forças políticas e sociais e no reforço da unidade da Nação. Hoje são diferentes as preocupações coletivas dominantes: os avanços indispensáveis deverão ser o restabelecimento duma base de trabalho e duma base económica que permitam aumentar fortemente a produção e criar aceleradamente riqueza. [...] Não basta já arbitrar conflitos. Será necessário introduzir no dia a dia coletivo a vivência das regras de comportamento económico e uma atuação política que permita e promova que se produza mais.(16)
Um pacto social é, geralmente, um:
Acordo à escala nacional, negociado, periodicamente ou a título excecional, entre o movimento sindical, as organizações patronais e, eventualmente, o Governo, com o objetivo de assegurar, durante determinado espaço de tempo ou em permanência, as condições de uma relativa paz social. O compromisso estabelece-se primordialmente em torno do controlo do movimento de salários e preços [...]. Significa, pois, a aceitação pelas partes de determinada programação económica e social, a cujos supostos benefícios se sacrificam certos interesses imediatos ou, possivelmente, até estratégicos.(17)
Pode ser escrito ou não, formal ou informal, existir de facto mesmo não estando consagrado — o que a nosso ver é a situação que existe entre 1975 e 1986, um pacto, com ganhos significativos para o trabalho, em troca da desistência, por parte das organizações sindicais e políticas representantes dos trabalhadores, da luta estratégica pelo poder, alterando a forma de propriedade.
Os pactos sociais surgem normalmente em épocas de conjunturas económicas de crise, embora a crise não seja variável suficiente para determinar um pacto social. Devem existir outras, entre elas, cremos, a real capacidade de cedência, neste caso, do elo mais forte, os empresários/patrões, ou seja, a capacidade de reformas dentro do sistema capitalista que signifiquem algum tipo de ganhos para o elo economicamente mais fraco desta relação, o trabalho. Poderão sempre existir pactos sociais impostos, mas nesse caso sê-lo-ão na forma e não no conteúdo, porque só será um pacto se as organizações de trabalhadores abdicarem de um conflito frontal em troca de algum tipo de conquista de direitos (ou garantia de não retrocesso de direitos).
Muitas das «conquistas de abril» só foram legalizadas nos anos vindouros, como referimos. É certo que depois do golpe de 25 de novembro de 1975, que põe fim à dualidade de poderes nas forças armadas, introduzem-se paulatinamente leis que são um recuo face à situação de facto do biénio 1974-1975, mas, traumatizadas por uma explosão social sem precedentes, um movimento operário forte, extremamente organizado, sindicatos grandes e influentes, as classes dirigentes vão de facto criar as condições legais para a institucionalização de muitos daqueles direitos.
Não há, a contrário do veiculado pelo senso comum, um decréscimo linear dos conflitos sociais com a institucionalização e estabilização do regime democrático representativo, mas estes vão adquirir, gradualmente, um caráter diferente, sobretudo no que toca às reivindicações, organização e suas direções. O número de greves, segundo dados oficiais, por exemplo, mantém-se muito elevado. Os dados apontam para um crescente número de greves que só diminuirá drasticamente no espaço de uma década, já depois da adesão de Portugal à então CEE, hoje União Europeia (UE). Entre 1976 e 1980 o número de greves situa-se entre as 270 e as 370 e em 1981, em pleno duplo mergulho da crise de 19811984, há um surto grevista que dispara para mais de 600 greves — e que corresponde à segunda intervenção do FMI em Portugal —, mantendo-se muito alto até 1984, com 525 greves registadas, decrescendo depois lentamente até ter uma diminuição significativa só em 1987, com 213 greves(18). Maria Luísa Cristovam(19) regista também um aumento do número médio de trabalhadores por greve (de 331 em 1977 para 885 em 1979) e um aumento do número médio de dias de trabalho perdidos por greve (de 1437 em 1977 para 1632 para 1979). É importante ainda destacar que neste período há crescimento económico e nalgumas empresas, entre elas a Lisnave(20), aumento significativo do número de trabalhadores.
A mudança no tipo de greves e na organização vem acompanhada, num aparente paradoxo, da liberalização da lei da greve, bastante menos restritiva que a lei que vigora no período revolucionário e que era uma lei claramente de resposta à onda de greves radicais desse período. Em 1977 entra em vigor a nova Lei da Greve: a singularidade é que proíbe o lock-out que era permitido na lei da greve aprovada por Vasco Gonçalves, o PCP e o PS; retira-se da lei a proibição de greves políticas e de solidariedade, bem como a proibição de ocupar a empresa ou «desorganizar o processo produtivo» e, de entre as empresas que estão obrigadas a serviços mínimos, desaparecem as instituições de crédito e industriais «indispensáveis para a defesa nacional», mantendo-se os hospitais, correios e telecomunicações, bombeiros, abastecimento de águas, energia.
Por outro lado, importa sublinhar, a situação social estava longe de estar estabilizada política e socialmente. Entre 1976 e 1983 o País vai ter nada mais, nada menos do que dez governos, dois dos quais interinos e três de iniciativa presidencial. Era o resultado institucional de um País fortemente radicalizado (recordemos os quase 800 mil votos em Otelo Saraiva de Carvalho em 1976!), saído de uma revolução parcialmente vitoriosa que fazia entrar agora no vocabulário as «conquistas de abril», «os direitos adquiridos», em referência aos direitos conquistados. De tal forma que a tentativa de impor a concertação social em 1977(21)— cujos princípios estavam contra o pacto social porque estabeleceu por decreto-lei o limite de 15% para os aumentos salariais e a fixação de um cabaz de compras, entre outras medidas — é um desaire e o I Governo Constitucional cai. Como salienta José Barreto:
as relações entre o patronato e os trabalhadores ficaram, como é óbvio, profundamente marcadas pelas lutas políticas de 1974-1975, que haviam restabelecido um novo desequilíbrio na relação de forças patronato/trabalhadores, desta vez em proveito dos segundos.(22)
Porém, esta instabilidade política é marcada pela progressiva estabilização de centrais sindicais muito próximas do modelo europeu. Depois do fim da revolução é revogada a lei da unicidade sindical e surge uma nova central sindical, a UGT (União Geral dos Trabalhadores), ligada ao Partido Socialista e ao Partido Popular Democrático, cuja força maior se encontra nos bancários. As duas centrais sindicais rivalizam entre si na disputa de influência junto dos trabalhadores, mas a CGTP, ligada ao Partido Comunista, continua a ser a maior, com influência no operariado industrial, no setor de serviços e nos funcionários públicos. Em final de 1977 a CGTP mantém na sua esfera de influência 287 dos 360 sindicatos existentes em Portugal, entre eles a maioria dos sindicatos da indústria.
Entre 1977 e 1981 o rendimento disponível real per capita registou um crescimento médio anual de 3,6% ao ano. Neste cálculo não entram só as remunerações do fator trabalho — que são mais elevadas em 1975 (70%) do que em 1979 (45,9%) —, mas também outra fonte de rendimentos: «as transferências correntes do Estado, maioritariamente constituídas pelas rubricas “prestações sociais”, com 13,3% do total»(23). Era o valor do salário social, pago em funções sociais do Estado.
A situação muda radicalmente com a crise do início da década de 80 e desta vez com a incapacidade de os trabalhadores responderem com sucesso às medidas contracíclicas, as medidas de «austeridade» que visavam reverter a queda da taxa média de lucro. Em 1980 a taxa de crescimento do PIB é de 4,81%, em 1981 é de 1,26%, em 1984 é de —1,82%.
Argumentamos que o pacto social nasceu em 1975 e ficou consagrado na Constituição de 1976. Manteve-se por causa da intensa conflituosidade herdada da revolução — 10 governos em 10 anos, entre 1976 e 1985.
No meio da crise económica de 1981-1984, também no âmbito de um empréstimo internacional agregado a um conjunto de medidas então também denominadas de “austeridade”, reduz-se o rendimento disponível do trabalho. A inflação terá nestes anos um papel destacado na desvalorização dos salários. Argumentámos noutros trabalhos(24) que para esse processo se ter dado tiveram que reunir-se cinco condições, que procurámos sistematizar, num contributo para uma análise em curso, e que estão na base da erosão do pacto social (que outros autores classificam de emergência do período neoliberal):
Ligação estreita entre um sindicalismo fortemente apoiado na negociação e não no confronto — embora mais ou menos pactuante, consoante seja protagonizado pela UGT ou pela CGTP — e, tendo este sindicalismo fortes ligações ao regime democrático, feitas a partir do elemento Estado, visto não como um opositor, mas como um árbitro para o qual as propostas eram direcionadas, em vez de para as empresas, como foi característico do período da revolução(25). Os principais sindicatos de então, aceitando a necessidade de sair da crise mantendo o mesmo modelo de acumulação, aceitaram que a “saída da crise” fosse realizada por ajudas diretas maciças às empresas, por um lado, e por outro, por ajudas indiretas pela via da transferência para o Estado de parte dos custos da força de trabalho (casos das reformas antecipadas ou das isenções de contribuições para a segurança social). O papel do Estado como moderador, em sede de concertação social, foi visto como uma forma de corporativismo, rejeitado pela CGTP, mas só durante um ano, findo o qual esta aderiu também ao Conselho da Concertação Social, embora não tenha assinado todos os acordos(26). Discutimos a hipótese de que o pacto social só se manteve, num aparente paradoxo, quando não existiu pacto firmado, isto é durante a revolução e a instabilidade dos dez anos seguintes e que a existência jurídica do pacto — plasmada na concertação social — foi significando o fim desse mesmo pacto social. Ou seja, pactos sociais não dependem de acordos, mas da inexistência deles: mantêm-se enquanto há conflitualidade social.
Melhoria de vida e dos níveis de consumo das classes médias e trabalhadoras.
Mudanças no sistema internacional de Estados, na sequência da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS. Não é, cremos, o fim da URSS que determina a erosão dos direitos sociais — argumento usado frequentemente — porque essa erosão passou por difíceis negociações sindicais a montante. Mas parece ser um argumento com rigor que o fim da URSS foi visto com desesperança para quem, sobretudo em países como Portugal, onde havia fortes partidos comunistas, acreditava que havia «algures a leste» uma sociedade mais igualitária(27). Não era, como sabemos, uma sociedade igualitária e, num aparente paradoxo, porque se prende com a política de coexistência pacífica, a gestão da precariedade foi negociada também com os mesmos sindicatos(28), de inspiração comunista, que viam na URSS um exemplo e que advogaram, numa construção de memória que não tem sido alvo de uma visão crítica, que o fim da URSS significara o fim das «conquistas adquiridas» no Ocidente.
Um quinto fator que é a utilização do fundo da segurança social para gerir a precariedade e o desemprego, criando um colchão social, seguindo as orientações do Banco Mundial, que evitasse disrupções sociais fruto da extrema pobreza, desigualdade ou regressão social. Essa utilização foi negociada caso a caso e na maioria dos casos aceite pelos sindicatos, sob a forma de reformas antecipadas — banca, seguros, grandes empresas metalomecânicas (só na Lisnave quase 5000 trabalhadores vão até 10 anos para a reforma antecipada com a totalidade dos salários(29)), estivadores e trabalhadores portuários (o número é reduzido de 7000 para os atuais 700 em todo o País(30)), setor das empresas de telecomunicações, eletricidade, para citar alguns exemplos. Em troca conservam-se os ‘direitos adquiridos’ para os que já os tinham e ou não entram novos trabalhadores, ou os que entram ficam já sob um regime de precariedade, o que implica uma redução substancial das contribuições para a segurança social. O que se verifica é uma estreita ligação entre gestão da força de trabalho empregada, os fundos da segurança social e a criação crescente de medidas assistencialistas para atenuar os efeitos da conflitualidade social decorrentes de uma situação de desemprego que se afirma cíclica mas crescente (subsídios de desemprego, apoio a lay-off, formação profissional, rendimento mínimo, rendimento social de inserção, subsídio social de desemprego, subsídio parcial de desemprego).
Derrota do setor mais importante do movimento operário organizado como exemplo para todos os outros setores das classes trabalhadoras e setores médios — três anos de salários em atraso na Lisnave levaram à derrota destes trabalhadores que assinaram o primeiro compromisso de empresa alguma vez feito em Portugal naqueles termos (de “paz social”), e que teve um efeito de arrastamento simbólico sobre os outros setores, à semelhança, como assinalam Stoleroff(31) e Strath(32) , entre outros, do que acontece com a derrota dos mineiros com Margaret Thatcher em Inglaterra, dos controladores aéreos nos EUA, dos operários da Fiat em Turim, e, mais tarde, dos trabalhadores do petróleo no Brasil.
A Lisnave jogará neste contexto um papel determinante, na nossa opinião. Desenvolve-se um conflito na empresa que vai durar anos, sendo o período mais crítico os anos entre 1982 e 1986. Trata-se de um conflito de características defensivas que visa em primeiro lugar a conservação dos postos de trabalho. Lima afirma que:
Na Lisnave, as estratégias de gestão social da mão de obra procuram responder às condições específicas da crise económica: cerca de 2700 reformas antecipadas, tentativa de suspensão dos contratos de trabalho, propostas de mais de 2000 rescisões voluntárias de contrato de trabalho, despedimento coletivo de perto de 600 trabalhadores [. ].(33)
O golpe mais duro sobre estes operários vai ser a política de salários em atraso que a administração inicia para desmoralizar os trabalhadores. Fernando Figueira, operário da Lisnave nesta altura, conta-nos em entrevista «que havia casos de famílias que mandaram as crianças para casa dos avós por já não terem como sustentar a educação e mesmo a sobrevivência dos filhos»(34).
Os trabalhadores vão responder com diferentes ações e vai-se desenrolar neste período uma acirrada disputa sindical dentro da Lisnave que opõe a tendência dirigida pela UDP, que propugna a ação direta e a permanência do modelo basista de discussão e ação entre os trabalhadores, uma tendência próxima do PCP, que defendia o controlo da discussão e da informação, para realizar negociações com a administração, e finalmente uma tendência da UGT, que progressivamente vai ganhando espaço, de acordo com Marinús Pires de Lima, porque os trabalhadores viam nela uma maior proximidade com o poder e por outro lado porque a militância real dos trabalhadores tende a diminuir neste período, acompanhando uma diminuição geral da mobilização dos trabalhadores no período pós-revolucionário.
Os trabalhadores da Lisnave ainda protagonizarão medidas radicais de luta como o sequestro de diretores e administradores (setembro e outubro de 1982), bloqueio de navios, medidas que terão como resposta a ocupação policial do estaleiro em 1983. Lutava-se contra a redução dos postos de trabalho e pelo pagamento dos salários em atraso, mas a sua capacidade de responder às medidas anticrise da administração tende a diminuir. Neste contexto, com grande surpresa face à anterior história de radicalidade da Lisnave, a UGT vai ganhar a maioria para a comissão de trabalhadores em 1986, pela primeira vez na história da Lisnave. Longe, porém, de ter garantido a viabilidade da Lisnave, a reestruturação e finalmente o quase desaparecimento da empresa dão-se a partir desta data de forma irreversível.
Será sob a negociação da comissão de trabalhadores dirigida pela UGT que se assinará, em 1986, o único acordo de empresa celebrado até aí em Portugal que previa uma cláusula de paz social. Em troca de a administração regularizar os salários em atraso, são assinados os «contratos sociais», em que os trabalhadores se comprometiam a não fazer greves, renunciar às férias, em troca da construção de um superpetroleiro, construção que no fim acabou por ser cancelada. A seguir ao acordo são feitas de imediato 700 rescisões voluntárias com indemnização. A partir desse ano não houve mais greves na Lisnave.
Em 1984, surge o Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS), um organismo tripartido onde estavam representados o Governo, confederações patronais e sindicais, que visa arbitrar a luta de classes. A ideia era domesticar a força de trabalho, numa época de crise que tinha sido acompanhada de agudização das tensões sociais. O Governo, que joga aqui um papel de até duvidosa legalidade constitucional, aparece como força neutra, com sérios riscos de corporativismo. Ao CPCS aderiu imediatamente a UGT, afeta aos social democratas e liberais. A CGTP, dirigida pelo PCP, começa por considerar o Conselho uma entidade «proto-fascista», mas irá rapidamente recuar nesta posição e aderir a este em 1987(35). De acordo com o sociólogo Hermes Augusto Costa(36), a derrota dos operários da Lisnave, que se saldou no acordo de empresa, foi fundamental, do ponto de vista político, para instituir o Pacto Social em Portugal e levar a CGTP, depois da derrota da Lisnave, a aderir ao CP.
A partir do final da década de 80 somam-se derrotas e perdas estruturais quer na legislação laboral — flexibilizada pondo fim de facto ao direito ao trabalho — quer nos «direitos» conquistados. A 28 de março de 1988 é convocada a primeira greve geral contra as «políticas neoliberais». Foi durante o I Governo constitucional de Mário Soares que se introduziram os contratos a prazo, mas é a partir dos Governos de Cavaco Silva que se generaliza a precariedade do emprego. Esta greve geral é convocada contra o “Pacote Laboral” que visava generalizar o trabalho precário. Desta vez as duas principais centrais sindicais, CGTP e UGT, convocam a greve. Passar-se-ão 14 anos até que uma nova greve geral seja convocada.
Durante este período de otimismo consolidaram-se os processos de flexibilização laboral: contratos a prazo, part-time, outsourcing, estágios não remunerados e a generalização dos chamados «recibos verdes» (em referência à cor do recibo que os trabalhadores ‘independentes’ passam), em que os trabalhadores são de facto trabalhadores por conta de outrem que exercem uma profissão permanente, mas são pagos como se fossem tarefeiros, o que significa que pagam eles próprios a segurança social, só recebem à tarefa e não têm subsídios de férias, de Natal, de desemprego, de maternidade ou outro qualquer.
Há uma generalização crescente da precarização do trabalho. Os números não são unânimes, mas Garcia Pereira, em 2007, falava em mais de 2 milhões para a força de trabalho contratada a prazo e destes, mais de meio milhão a recibo verde(37).
Na revisão constitucional de 1989 foi eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações — não será mera coincidência a implosão do Bloco de Leste nesta altura —, concedendo ao Governo poderes para reprivatizar as empresas nacionalizadas e abrir à internacionalização do capital, quer estrangeiro em Portugal, quer participações, ainda que menores, do capital português na banca e em fundos estrangeiros. Foi eliminada a referência constitucional à reforma agrária. Foi eliminada a socialização dos meios de produção. Foi eliminado o princípio da gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde, que passou a ser «tendencialmente gratuito». Ainda em 1989 foi aprovada a Lei de Bases do Ensino,(38) que estabelece o quadro de referência da reforma do sistema educativo.(39)
Efetivamente, a partir de meados da década de 80 do século XX, a força de trabalho no País foi progressivamente sendo dividida. Entre, de um lado, uma força de trabalho em geral mais velha, com mais direitos, mais sindicalizada, menos formada, ainda sob a égide do pacto social nascido da revolução de 1974-1975, mais predisposta a mediações, e por outro lado um país precário, uma mão de obra do modelo just in time, ou seja, um trabalhador “na hora” que é chamado a trabalhar quando as empresas precisam e devolvido ao desemprego quando baixa a produção, em geral mais qualificado(40) mas com menos capacidade reivindicativa e organizativa. Este quadro configura um modelo tendencial com muitas exceções, mas que é demonstrativo da dinâmica da formação atual do mercado de trabalho.
Notas de rodapé:
(1) REZOLA, Maria Inácia. Os militares na Revolução de Abril: o conselho da revolução e a transição para a democracia em Portugal. Lisboa: Campo da Comunicação, 2006. Ver também MOREIRA DE SÁ, Tiago. Carlucci vs. Kissinger. Lisboa: D. Quixote, 2008. (retornar ao texto)
(2) GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 11. (retornar ao texto)
(3) TROTSKY, Leon. História da revolução russa. Lisboa: Versus, 1988, v.1, p. 15 (retornar ao texto)
(4) Ibid., p. 15 (retornar ao texto)
(5) DOWS, Chip. Os moradores à conquista da cidade. Lisboa: Armazém das Letras, 1978 (retornar ao texto)
(6) SANTOS, Maria de Lurdes; LIMA, Marinús Pires de; FERREIRA, Vítor Matias. O 25 de abril e as lutas sociais nas empresas. Porto: Afrontamento, 1976. (retornar ao texto)
(7) HAMMOND, John. Worker control in Portugal: the revolution and today. In: Economic and industrial democracy. London: Sage Publications, 1981, p. 413-453. (retornar ao texto)
(8) GOLDNER, Loren. Ubu saved from drowning: class struggle and statist containment in Portugal and Spain, 1974-1977. Cambridge MA: Queequeg Publications, 2000. (retornar ao texto)
(9) HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 220. (retornar ao texto)
(10) HARMAN, Chris. A people’s history of the world. London-Sidney: Bookmarks, 2002, p. 4. (retornar ao texto)
(11) HOBSBAWM, Eric. Ecos da marselhesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. (retornar ao texto)
(12) Para uma análise da relação entre pós-modernismo e história ver WOOD, Ellen. Em defesa da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. (retornar ao texto)
(13) ARCARY, Valério. As esquinas perigosas da história: situações revolucionárias em perspetiva marxista. São Paulo: Xamã, 2004. (retornar ao texto)
(14) Id. Quando o futuro era agora: trinta anos da revolução portuguesa. Revista Outubro, n. 11, São Paulo: Xamã, 2004, p. 71-92. (retornar ao texto)
(15) ARCARY, op. cit., p. 92. (retornar ao texto)
(16) EANES, Ramalho. No 2.° aniversário do 25 de novembro. Discurso proferido em Tancos. Secretaria de Estado da Comunicação Social, 1978, p. 13-14. (retornar ao texto)
(17) BARRETO, José. Modalidades, condições e perspetivas de um pacto social. In: Análise Social, v. 14, n. 53, p. 81. 1978. (retornar ao texto)
(18) Anuário Estatístico de Portugal, Instituto Nacional de Estatística, vários anos; CGTP, Greves sectoriais, 19892008; DGEEP, Direção Geral de Estudos Estatísticas e Planeamento, Greves, 1986-2007, Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social; Direção Geral da Administração Pública. Greves Gerais da Administração Pública 2007-2008. (retornar ao texto)
(19) CRISTOVAM, Maria Luísa. Conflitos de trabalho em 1979: breve análise sociológica. Lisboa: Ministério do Trabalho, 1982. (retornar ao texto)
(20) VARELA, Raquel. A persistência do conflito industrial organizado. Greves em Portugal entre 1960 e 2008. Mundos do Trabalho, GT Mundos do Trabalho da Associação Nacional de História, v. 3, n. 6, segundo semestre de 2011. (retornar ao texto)
(21) Na mesma altura que em Espanha se negociavam os Pactos de Moncloa, com o apoio dos socialistas e comunistas (PSOE e PCE). (retornar ao texto)
(22) BARRETO, op. cit., p. 94. (retornar ao texto)
(23) LIMA, Ana Valadas de. O rendimento em Portugal ao longo da última década. Análise social, v. 21, 1985, p. 506-508. (retornar ao texto)
(24) VARELA, Raquel. A “eugenização da força de trabalho” e o fim do pacto social: notas para a História do Trabalho, da Segurança Social e do Estado em Portugal. In: ____. A segurança social é sustentável: trabalho, estado e segurança social em Portugal. Lisboa: Bertrand, 2013 e ____. Rutura e Pacto Social em Portugal: um olhar sobre as crises económicas, conflitos políticos e direitos sociais em Portugal (1973-1975, 1981-1986). In: _____. Quem Paga o Estado Social em Portugal?. Lisboa: Bertrand, 2012. (retornar ao texto)
(25) LIMA, Marinús Pires de. Transformações das relações de trabalho e ação operária nas indústrias navais (19741984). Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 18-19-20, fev. 1986, p. 541 Ver STOLEROFF, Alan. Sindicalismo e relações industriais em Portugal. Sociologia, n. 4, 1988, p. 160. (retornar ao texto)
(26) A CGTP assinou sete destes acordos. (retornar ao texto)
(27) Ver a entrevista a Valério Arcary em VARELA, Raquel. A segurança social é sustentável. Lisboa: Bertrand, 2013, p. 365-430. (retornar ao texto)
(28) A esmagadora maioria dos sindicatos em Portugal negociou e aceitou os acordos que previam reformas antecipadas. (retornar ao texto)
(29) Ver sobre este tema, Paulo Jorge Martins Fernandes, Dissertação «As Relações Sociais de Trabalho na Lisnave, Crise ou Redefinição do Papel dos Sindicatos?. Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, junho de 1999, orientada por Marinús Pires de Lima. (retornar ao texto)
(30) Sobre as reformas antecipadas no trabalho portuário ver Decreto-Lei n.° 483/99, de 9 de novembro. (retornar ao texto)
(31) STOLEROFF, Alan. All’s fair in love and (class) war. 26 de outubro de 2012. Disponível em: <http://www.snesup.pt/htmls/_dlds/All_is_fair_in_love_and_class_war_Stoleroff.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2013. (retornar ao texto)
(32) STRATH, Bo. La politica de desindustrializacion: la contraccion de la industria de la construccion naval en Europa Occidental. Madrid: Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1989. (retornar ao texto)
(33) LIMA, op. cit., p. 541. (retornar ao texto)
(34) Entrevista realizada com Fernando Figueira, trabalhador da Lisnave Margueira, janeiro de 2009. (retornar ao texto)
(35) STOLEROFF, Alan D. O Sindicalismo e o Estado pós-1974: o neo-corporativismo e a luta de classes. In AAVV, A sociologia e a sociedade portuguesa na viragem do século. Fragmentos, 1990, p. 138. (retornar ao texto)
(36) COSTA, Hermes Augusto. A construção do pacto social em Portugal. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 39, maio1934, p. 119-146. (retornar ao texto)
(37) PEREIRA, Garcia. O assédio: causas e condicionantes. Disponível em: <http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/publicacoes/wp/WP3.2008.pdf. > Acesso em: 14 abr. 2011, p. 5. (retornar ao texto)
(38) DUARTE, Sandra, VARELA, Raquel, ob. cit. (retornar ao texto)
(39) Mas neste caso a reação social, liderada pelos estudantes, foi imensa. Estas medidas, apesar de aprovadas, chocavam com a resistência nas escolas e nas populações. A contestação começa contra a reestruturação dos cursos (que dividia os cursos superiores em ramo educativo e ramo científico), passa para a refutação da Prova Geral de Acesso ao ensino superior, com manifestações de milhares de estudantes liceais nas ruas, e finalmente explode na resistência às propinas: três ministros da Educação são obrigados a demitir-se, sem força social para governarem. (retornar ao texto)
(40) ALVES, Giovanni. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. Londrina: Editorial Praxis, 2007. (retornar ao texto)