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Primeira Edição: Revista Outubro, nº 11, 2004, pág. 71-92
Observação: Doutor em História pela USP. Foi militante estudantil (trotskista) durante a Revolução Portuguesa
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
“À sombra de uma azinheira, que já não sabia a idade, Jurei ter por companheira, Grândola, tua vontade”.
Zeca Afonso, cantor popular português.
Em maio de 1926, um golpe de Estado protofascista derrubou a primeira república portuguesa e os militares convidaram Antônio de Oliveira Salazar, um professor de Coimbra, para ser ministro das Finanças. Assumiu a posição de primeiro-ministro em 1932. Conhecido como Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta, quando o capitalismo europeu insuflou o discurso nacionalista exaltado e recorreu em larga escala, mesmo em países mais desenvolvidos, aos métodos da contrarrevolução para evitar novas revoluções de Outubro.
O fascismo “defensivo” deste império desproporcional e semi-autárquico sobreviveu a Salazar, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia deste pequeno país, herdeira de um imenso império ultramarino, resistiu à vaga de descolonização do pós-guerra e enfrentou uma guerra de guerrilhas na África a partir de 1960. As reformas, tantas vezes esperadas não vieram, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. Já se disse que as revoluções adiadas são as mais radicais. O salazarismo obsoleto acabou abrindo o caminho para o mais profundo processo revolucionário na Europa, depois da Guerra Civil Espanhola.
Quarenta anos depois, em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro Portugal e o futuro. Pela primeira vez, uma voz do alto comando das Forças Armadas — ex-comandante em chefe do Exército na Guiné-Bissau desafiava o principal tabu da ditadura admitindo que era impossível uma solução militar para a guerra. O governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes: “O autor defende com muita lógica uma solução equilibrada, que podemos situar a meio caminho de duas soluções extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração em um todo homogêneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas de direita (...) estas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda por ser inexequível”.(1)
A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, ainda semi-urbanizado e acentuadamente defasado da prosperidade europeia dos anos 1960, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana.
O serviço militar obrigatório era de espantosos quatro anos, dos quais dois eram cumpridos no ultramar. Milhares de mortos, sem contar os feridos e mutilados. Foi do interior desse Exército de recrutas que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o Movimento das Forças Armadas (MFA). Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e esgotada com a obtusidade da ditadura, essa oficialidade estava cansada de uma guerra sem solução militar e rompeu com o regime.
A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente industrializada, estruturava-se no interior da divisão internacional do trabalho em dois “nichos” ou pilares empresariais do regime: a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80% dos serviços bancários, 50% dos seguros, oito das dez maiores indústrias, cinco das sete maiores exportadoras. Os monopólios comandavam, mas não havia dinâmica de crescimento. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia europeia vivia o boom do pós-guerra. A ordem salazarista manteve-se depois da morte do ditador, com um implacável braço armado — a Polícia Internacional de Defesa do Estado (Pide) — 20 mil informantes, mais de dois mil agentes, e o apoio de 80 mil membros da Legião Portuguesa, a correspondente da Falange em Portugal.
Os dias de Caetano estavam contados. Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na manhã de 25 de abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante militar do Movimento das Forças Armadas (MFA), uma multidão de milhares de pessoas saiu às ruas e se dirigiu à Baixa de Lisboa, cercando o Quartel da Guarda Nacional Republicana (GNR) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano havia se refugiado, exigindo a presença de Spínola. Algumas centenas de membros da Pide entrincheirados na sede dispararam sobre a massa popular deixando quatro mortos. E foi só isso a força de resistência da ditadura.
Toda revolução tem o seu pitoresco. Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, as floristas do Parque Mayer perguntaram o que estava acontecendo; e os soldados diziam que vinham derrubar a ditadura. Elas, exaltadamente felizes, lhes ofereceram cravos vermelhos e, assim, sem o saber, batizaram a revolução com o nome de uma flor.
Recordemos que uma revolução não deve ser confundida com o triunfo de um levante militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular. O Vinte e Cinco de Abril foi uma operação militar que se transformou em uma revolução política; um Fevereiro, por analogia com a Revolução Russa. A insurreição é um dos tempos da revolução. O que existiu de extraordinário na Revolução dos Cravos não foi o colapso da ditadura — embora este tenha sido espetacular — mas a entrada em cena de milhões de trabalhadores na condição de sujeitos de uma revolução anticapitalista. A História está cheia de exemplos de quarteladas e golpes palacianos que triunfaram apesar da indiferença e da apatia popular, assim como, inversamente, de autênticas revoluções populares que foram derrotadas antes de terem reunido forças para a insurreição.
Mas, sendo diferentes, estão às vezes associadas. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido. Em Portugal, o processo da revolução política transbordou, como na Rússia de 1917, porque o exército tinha sido derrotado na guerra e a luta de classes penetrou em suas fileiras: “Um levantamento sociológico revelou que os membros do Movimento dos Capitães eram, do ponto de vista sociológico, filhos da pequena burguesia e das classes médias (alguns da classe operária). Nascidos nos anos 1940 (portanto, jovens na faixa dos trinta anos). Uma maioria relativa (39,4%) provinha de famílias de servidores públicos (...) Em 1974 havia 4.165 oficiais permanentes no Exército; desse total, 703 participaram do golpe (16,9%)... e 80,8% eram capitães e majores”.(2)
Estas pressões sociais explicam os limites políticos do próprio MFA e ajudam a compreender porque depois de derrubar Caetano entregaram o poder a Spínola. A partir de 11 de março de 1975, o próprio Otelo defendeu o projeto de transformar o MFA em Movimento de Libertação Nacional — a tentação do substitucionismo das massas à maneira de movimentos mili- tares em países da periferia — como no Peru. E fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no ‘bom* caminho, nos perseguiria até o final, com as funestas consequências já conhecidas. Este obstáculo voltaria a surgir mais tarde, revelando-se de difícil solução (...). Alguns excelentes oficiais se sentiam, contudo, desamparados fora de sua limitada esfera de ação profissional, exigindo o recurso à figura paternalista de alguém com mais condecorações, homem de experiência, que entendesse seriamente dessas coisas da política.”(3)
Assim como muitos capitães inclinavam-se a depositar confiança nos generais, uma parte da extrema-esquerda entregava aos capitães a liderança do processo. Spínola era pomposo, com poses de general germanófilo, com seu excêntrico monóculo. Desse MFA, surgiram as lideranças de Salgueiro Maia e Dinis de Almeida, dois “Antonovs Ovsenkos”, mas sem educação marxista; de Otelo Saraiva de Carvalho, o chefe do Comando Operacional do Continente (Copcon), entre um Chavez “sem instinto de poder” e a audácia de um Capitão Lamarca, entre o heroísmo da organização do levante, e as desconcertantes relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, menos arrepiante que Kerensky, menos retórico que Largo Caballero e menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, por suposto, que surgiu o Bonaparte, o sinistro Ramalho Eanes, o homem da reconstrução da ordem.
Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo. Revoluções, em especial as derrotadas, não podem ser analisadas somente pelos seus resultados. Estes explicam comumente mais a contrarrevolução do que propriamente a revolução. O conteúdo social do processo que veio depois foi determinado pelos seus sujeitos sociais e pelas tarefas pendentes — fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos, elevação dos salários, moradia, acesso ao ensino público — que não se resumiam à derrubada da ditadura. Trotsky estudou este movimento na história das revoluções: “As distintas etapas do processo revolucionário, consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros cada vez mais radicais, expressam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que o impulso adquirido pelo movimento tropeça em obstáculos objetivos. Então começa a reação: decepção de certos setores da classe revolucionária, difusão do indiferentismo”.(4)
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular incomparavelmente mais profunda — uma situação revolucionária — em que foram sendo construídas as experiências de auto- organização. Podemos dividir o processo em três conjunturas sempre mais radicalizadas à esquerda:
de abril de 1974 até 11 de março de 1975: Abriu-se uma situação revolucionária semelhante à do Fevereiro russo(5) em que se garantiram as liberdades democráticas e o cessar-fogo em África derrotando dois golpes e o projeto spinolista de consolidação de um regime presidencialista;
entre 11 de março e julho de 1975: Verificamos uma situação revolucionária semelhante à que precedeu o Outubro russo, com a grande fuga burguesa, a nacionalização de parte das maiores empresas, o reconhecimento das independências — menos Angola — e a generalização da auto-organização de massas, sobretudo no Exército, mas sem que o duplo poder encontrasse centralização;
finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização anticapitalista, desgarramentos de bases de massas da influência do Partido Socialista (PS) e do Partido Comunista Português (PCP), formação dos Soldados Unidos Venceremos (SUV), auto-organização de soldados e marinheiros, e manifestações armadas, uma antessala de uma revolução social na qual, ou o deslocamento do Estado ou um golpe contrarrevolucionário tornavam-se inadiáveis.(6)
A primeira tentativa de golpe fracassou em 28 de setembro, um chamado público de Spínola à “maioria silenciosa”. Cento e cinquenta conspiradores foram presos durante o dia. Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência para o general Costa Gomes. Este assumiu o III Governo Provisório, mas Vasco Gonçalves permaneceu primeiro-ministro. As energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa” não tinham, todavia, se esgotado. Buscariam novamente o putsch “korniloviano” em 11 de março, com a tentativa de bombardeio de Lisboa.
Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. No dia seguinte, diante do pânico burguês, a estatização dos principais bancos. O segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e contou com a participação da Guarda Nacional Republicana (GNR), equivalente às PMs no Brasil. O Regimento de Artilharia Ligeira (Rali) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de pára-quedistas. Um soldado morreu, mas o golpe foi desbaratado.
Spínola e outros oficiais cúmplices fugiram para Espanha, onde Franco os protegeu. Muitos vieram, depois, para o Brasil, onde Geisel os hospedou. Na sequência, os trabalhadores bancários entraram em greve política, e assumiram o controle do sistema financeiro. O MFA criou o Conselho da Revolução e decretou a nacionalização dos sete grupos bancários portugueses mais importantes. Outras vieram, nos seguros, siderurgia, cimentos, etc... Muitas empresas foram ocupadas pelos trabalhadores. Grande parte da burguesia entrou em pânico e, diante do imponderável, abandonou o país.
O IV Governo Provisório instalou-se em 26 de março. A África estava perdida. A burguesia passou a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se, apressadamente, para o projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política, atrair a maioria das classes médias e derrotar os trabalhadores.
Não tendo mais Spínola como carta na manga — e debilitados o Partido Popular Democrático (PPD) e Centro Democrático Social (CDS) pelas ligações com Spínola -, a burguesia não tinha instrumentos diretos — a não ser parte da imprensa e o peso sobre a alta hierarquia das Forças Armadas — e precisava recorrer à pressão da burguesia europeia e estadunidense sobre a social-democracia e sobre a União Soviética para que enquadrassem o Partido Socialista (PS) e, sobretudo, o Partido Comunista Português (PCP).
Depois de 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa era a capital mais livre do mundo. Os trabalhadores exigiam a independência das colônias, o retorno dos soldados, as liberdades nas empresas, salários, trabalho, terra, educação, saúde, previdência. Aprendiam no calor da luta que sem expropriações não poderiam conquistá-las. Começava a etapa do que foi denunciado como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes.
Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as grandes e médias corporações como a Companhia União Fabril (CUF) — só ela, 186 fábricas — a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais influentes da burguesia reagiu declarando “os operários são atualmente demasiado livres”.(7)
O muralismo político — painéis à mexicana, grafites à americana, “dazibaos” à chinesa, além de simples pichações — fazia das ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse “universo diverso’ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais irreverente. A porta do cemitério, o impagável, "Abaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha”. Nas grandes avenidas, o dramático, “Nem mais um só soldado para as colônias". Na região das Avenidas novas — bairros privilegiados — “Os ricos que paguem pela crise”, assinado pela União Democrático Popular (UDP) e, ao lado,“A UDP que pague pela crise”, assinado “Os ricos”.
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa, as Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas ao salazarismo – quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito do regime a Igreja encontrava-se flagrantemente desautorizada, em especial no Sul do País, diante de amplos setores sociais. As ocupações estendiam-se aos meios de comunicação. No dia 27 de maio, os trabalhadores da Rádio Renascença ocuparam os estúdios e o centro transmissor. Foi abandonada a designação de “Emissora Católica”. A emissora passou a transmitir uma programação de apoio às lutas dos trabalhadores.
Os operários da Lisnave deram o exemplo — foram a “Putilov” da revolução portuguesa — organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na Amadora — a “Vyborg” ou o “ABC” de Lisboa, uma das grandes concentrações operárias -, a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país entrou em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A onda de auto-organização — formação nas empresas de comissões de trabalhadores – que aprofundou a dinâmica revolucionária da situação, produziu reações. “Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: ‘Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro, passam à ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a cogestão sem estarem preparados para isso”’.(8)
Ainda quando o PCP depositava toda a sua imensa autoridade no intuito de frear as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizaram, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; os “saneamentos” — o eufemismo para expulsão dos fascistas — realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha assembleias deliberativas. Toda a antiga ordem parecia desabar. “A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55 mil operários; 700 empresas entram em autogestão, com 30 mil operários”.(9)
Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política inclinou-se para a extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político — o descompasso entre as palavras e os atos — fez o discurso dos partidos eleitorais tornar-se irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o Partido Popular Monárquico (PPM), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a retórica da Constituição que até hoje produz espanto.
A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores e mais perigosos desafios. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das pressões, o PS e o PCR as únicas forças políticas — e, de longe, majoritárias — com autoridade na direção dos Governos Provisórios — além do MFA dividiram-se e provocaram uma cisão irremediável entre os trabalhadores.
Um ano depois do Vinte e Cinco de Abril, as eleições para a Constituinte surpreenderam. O PS foi o grande vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%. Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a eleitoral. O PPD de Sá Carneiro, um líder liberal dentro das estruturas do regime salazarista, ficou em segundo lugar com 26,38%. O CDS (na extrema-direita, dirigido por Freitas do Amaral), o Movimento Democrático Português (MDP) — uma colateral do PCP que vinha do tempo das eleições sob Caetano — e a UDP de inspiração “albanesa”, conseguiram, também, representação parlamentar.
Três projetos e três legitimidades entraram em conflito. Essa divisão atravessou, também, o MFA. Surgiram três campos: o do governo de Vasco Gonçalves com o PCP, que se apoiava na maioria do MFA; o de Soares, que reivindicava a autoridade da votação nas umas e tinha o apoio dos Estados Unidos e da Europa; e o mais frágil, subjetivamente, porém, o mais temido, porque anticapitalista, aquele que nascia dos embriões de poder popular.
O PCP foi um dos primeiros partidos comunistas a participar em um governo na Europa Ocidental no pós-guerra. O partido de Álvaro Cunhal foi a única organização que atravessou toda a resistência à ditadura de Salazar. Mas era, também, um dos partidos mais organicamente integrados com Moscou, e com uma direção muito mais homogênea que o partido de Santiago Carrillo no Estado Espanhol. A maior parte de seus quadros viveu longas estadias na União Soviética, ou no Leste. Cunhal não se preparou para ser nem um Tito, nem um Mao. Não iria além dos limites negociados por Brejnev. O PCP tinha resistido intacto às rupturas pró-Pequim e às pressões castristas. Considerando as condições de estrita clandestinidade, realizou a façanha de chegar ao Vinte e Cinco de Abril com uma estrutura de alguns milhares de quadros. Um ano depois, à frente de uma estrutura organizada em torno de 100 mil militantes, era uma máquina política de uma eficiência prodigiosa. Foi majoritário nas grandes concentrações da classe operária, nos trabalhadores rurais do Alentejo e, também, na população plebeia do sul do País.
Chegou a ter uma importante influência no interior do MFA e que se expressava, sobretudo, por meio da Quinta Divisão. Participou dos Governos provisórios desde o princípio. Durante o V Governo Provisório – depois da ruptura do PS, quando já não havia representantes diretos da burguesia – defendeu Vasco Gonçalves até o último dia.
Embora a União Soviética estivesse preocupada com uma revolução anticapitalista — inaceitável para os Estados Unidos — em um pequeno país da Europa Ocidental, Moscou possuía também interesses na África. Sem a perspectiva da relação com Angola, Guiné e Moçambique seria impossível analisar a estratégia do partido de Cunhal. A questão africana estava no centro das prioridades diplomáticas da União Soviética no Sistema Mundial de Estados: “O PCP lança-se numa corrida contra o relógio que lhe permita criar as condições para uma descolonização rápida, que possa pôr de parte quaisquer veleidades de intervenção por parte de outras potências, e favorecer a transmissão de poderes nas colônias para as mãos dos movimentos que à partida estão, de fato, em melhor situação: a Frelimo, o PAIGC e o MPLA”.(10)
A Guiné-Bissau tomou-se independente em 26 de agosto de 1974; a independência de Moçambique foi reconhecida em 25 de junho de 1975, e a de Cabo Verde em 5 de julho. A independência de Angola, declarada unilateralmente pelo MPLA, veio no 11 de novembro, quando já estava no poder o VI Governo Provisório, tendo à sua frente Pinheiro de Azevedo — que assumiu em 19 de setembro — mas, questionado por fortes mobilizações — como a greve da construção civil que cercou a Assembleia da República.
O PCP tinha um discurso assombroso. Procurava convencer as massas em luta que “o poder político já tinha sido conquistado”. Só faltava, supostamente, o poder econômico, mas a “democracia nacional” — o regime de tutela do MFA sobre os governos provisórios, em aliança com as “forças progressistas” — permitiria avançar “rumo à vitória”. A situação era, na verdade, bem mais próxima do oposto: grande parte do capital já tinha sido expropriada, mas a burguesia, politicamente, ainda estava no poder, porque detinha posições chaves nas Forças Armadas. O PCP argumentava que o socialismo não estava na ordem do dia. Em resumo, uma fórmula ao mesmo tempo etapista e escapista, que difundia ilusões a respeito do mais importante: a luta pelo poder. Destacou-se na campanha pela “batalha da produção” contra o que considerava um “grevismo” aventureiro: “Numa fase inicial do processo, beneficiando da sua longa existência, de sua organização, de sua disciplina e da sua experiência — trunfos que lhe garantem à partida uma capacidade de manobra, de ataque e resposta, de avanço e recuo, infinitamente superiores às de qualquer outro partido — é o PCP quem segue à frente. É por seguir à frente, por se sentir em certa medida confundido com o Poder — o Poder de fato — que o PCP se toma o principal adversário do movimento grevista”.(11)
Segundo Cunhal, uma revolução social não era possível e se tratava de recuperar uma economia capitalista decadente o que exigia algumas nacionalizações e a acomodação das reivindicações populares. O PCP lançou-se a uma política de “guerra de posições”, mas não entre as classes e sim entre os partidos: disputa de influência no MFA, ocupação de cargos e controle monolítico de espaços por dentro e por fora do Estado. Em seu afã, alimentava uma sistemática política aparelhista que semeava a divisão e, portanto, a desconfiança entre os trabalhadores.
Apoiava a corrente de opinião majoritária entre os oficiais que compunham o Conselho da Revolução, o organismo mais alto do MFA que exercia, de fato, uma tutela sobre o Governo — diminuindo o papel das relações políticas entre partidos na Constituinte — depois de 11 de março. O PCP era consequente com a estratégia da “aliança do povo com as Forças Armadas”, e propunha o respeito à hierarquia da cadeia de comando que passava pela disciplina ao MFA: “Dentro das Forças Armadas não serão permitidas quais- quer organizações de caráter político-militar, partidárias ou não, estranhas ao MFA, devendo progressivamente, todos os militares serem integrados no seu próprio movimento”.(12)
Afirmava a necessidade de um projeto nacionalista semi-autárquico, a “democracia nacional”, porque pretendia reconhecer a independência das colônias, mas salvaguardando os interesses portugueses, que não eram poucos, e preservando a condição de sub-metrópole intermediadora entre a África e a Europa. O mito de que poderia acontecer um “golpe comunista” – uma invenção que servia para a mobilização contrarrevolucionária — era bombardeado por Soares, e por toda a imprensa de direita, e os tambores da extrema-direita, histéricos, rufavam: “Toda a ficção acerca dos intuitos do PCP de conquistar o poder, a análise da iminência de ‘um golpe de Praga’, que teve grande importância neste ano I da revolução portuguesa, não passavam de elementos de uma ofensiva ideológica com o objetivo de estimular a divisão do movimento operário. Não têm um átomo de verdade. O que, em contrapartida, os revolucionários devem denunciar em um balanço rigoroso, é justamente a adaptação do PCP ao poder constituído que procurava preservar as relações de produção, num contexto em que o partido procurava ganhar margens de manobra, postos de controle, instrumentos de influência. (...) Um testemunho conclusivo é o de Costa Gomes que conta que Brejnev lhe confidenciara as suas preocupações com a evolução portuguesa e a necessidade de o país manter-se no quadro da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte)”.(13)
A influência do PCP nos IV e V governos explica o flerte com o movimento dos não-alinhados, uma via intermediária entre um alinhamento incondicional com a Europa que queriam pelo menos adiar e uma ruptura que desejavam impedir. Afinal, como defender a propriedade dos cúmplices golpistas de Spínola?
O imperialismo americano, mais ativo que o europeu durante a revolução portuguesa, era muito consciente do fato segundo o qual a questão africana também estava sendo disputada em Lisboa. Não foi à toa que a esquadra da Otan estacionou no Tejo em 1975. Pressionou, primeiro, para que a revolução fosse controlada pelo MFA, mesmo se aliado ao PCP e, depois, quando ficou claro que o governo de Vasco Gonçalves era incapaz de conter as bases sociais por meio das quais se sustentava, aliou-se à oposição de direita.
Coube ao Partido Socialista, liderado por Mário Soares — homem de confiança da Europa — o papel chave na disputa política pela estabilização, diante da fragilidade estrutural dos partidos burgueses. Seu plano era derrubar o V Governo pela divisão do MFA e, na sequência, afogar a revolução nas urnas.
O PS foi o partido dos trabalhadores de serviços e dos operários mais moderados, mas, também, da maioria das classes médias, sobretudo no centro e no norte do país, que conquistou o apoio da burguesia, da Igreja, e da oficialidade reacionária das Forças Armadas. Queriam consolidar um regime democrático liberal estável e enterrar o mais rápido possível a experiência de dualidade de poderes que se disseminava. O PS esteve presente em todos os governos provisórios até julho de 1975, quando rompeu com Vasco Gonçalves. A partir daí, Soares lançou-se em uma campanha duríssima contra o V Governo, operando a divisão do MFA — fomentou o Grupo dos Nove, liderado por Melo Antunes e Vasco Lourenço — e construindo uma mobilização que levou centenas de milhares de pessoas à Alameda da Fonte Luminosa em Lisboa. Uma campanha deste porte, contudo, não seria possível somente com a base social da contrarrevolução. Muitos milhares de trabalhadores que repudiavam as limitações às liberdades democráticas que vinham sendo ensaiadas responderam ao chamado do PS. A divisão das forças populares estava consumada.
Soares usou como bandeira a defesa das liberdades democráticas e, como exemplo, o episódio do jornal República. Uma ocupação pelos operários gráficos do jornal de Raul Rego, membro da Executiva do PS — uma ação que dividiu os trabalhadores e as classes médias porque, embora apoiada na legitimidade da reivindicação de direitos, sequestrava o jornal diário da social-democracia foi o pretexto para iniciar uma campanha de mobilização para derrubar o V Governo. Nas palavras do próprio Mário Soares: “Nossa revolução está em perigo na medida em que se põem em causa as instituições democráticas que são o seu primeiro fundamento e justificação. (...) Existe uma crise geral de autoridade do Estado, corroído pela demagogia, pela irresponsabilidade e pelo anarco-populismo”.(14)
Temiam que a dinâmica anticapitalista se alastrasse para a Espanha, ainda sobre a ditadura franquista — mas em uma situação muito instável que poderia rapidamente evoluir num sentido revolucionário — e radicalizasse as massas jovens e trabalhadoras em todo o sul do Mediterrâneo, poucos anos depois da maré de 1968. A carta da integração na Comunidade Europeia e a promessa de estender para os portugueses um padrão de vida semelhante ao dos europeus que uma parte significativa da população conhecia pela importância econômica dos emigrantes na frágil economia do país era seu trunfo mais importante.
Em 18 e 19 de julho, primeiro no Porto e depois em Lisboa, o PS foi às ruas para medir forças e apresentou uma demonstração inequívoca da sua capacidade de enfrentar o PCP num terreno em que, até então, o partido de Cunhal detinha incomparável superioridade. Reuniu centenas de milhares em comícios “monstros”, os maiores depois de 1º. de maio de 1974. Soares ameaçava parar o país e parecia ser capaz de fazê-lo. No dia 20 de julho começaram os assaltos, no norte e centro do país, contra as sedes do PCR MES, MDP/CDE. Durante quinze dias, saques e incêndios — com a participação, às vezes, de padres que iam à frente, como se encabeçassem procissões — até contra sedes de sindicatos.
A Igreja Católica somou-se a esta frente que tinha em Soares a voz, na força de aparato do PPD (hoje PSD, partido burguês que reunia, em sua maioria, os quadros do salazarismo reciclado) e do CDS (hoje, PP a extrema-direita ideologicamente mais dura)seus músculos, e nos cardeais e bispos a sua autoridade moral. Não faltou também o dinheiro. Muitos milhões de dólares articulados pela embaixada — dirigida pelo tristemente célebre Frank Carlucci — não acidentalmente, depois, o homem de Reagan na Nicarágua e, hoje, grande investidor imobiliário em Portugal — para lançar jornais, manipular as rádios, e convocar às ruas os segmentos de classe média mais atrasados dispostos a proteger o país do perigo da “comunização totalitária”.
Por trás do discurso legalista estava a sórdida realidade da divisão operária, do confronto aberto, instrumentos das políticas tanto do PS, quanto do PCP Um jornalista próximo de Soares e de Mitterand, Jean Daniel, do Nouvel Observateur, chegava a este ponto na justificação da política soarista: “Se o PC perseverar diabolicamente numa lógica que implica a eliminação dos outros partidos operários, que outro caminho fica senão combatê-lo tornando-se um aliado objetivo dos reacionários, dos clericais, dos fascistas que ainda ontem reinavam em Portugal?” A resposta foi o que se viu: piedosas manifestações destruindo sedes, atentados à bomba de vários calibres e, por detrás das cortinas de fumo das ideologias, a preparação do bloco político que organizou civil e militarmente o 25 de novembro.(15)
Depois de derrubado o V Governo, o plano revelou-se completamente arrasador. Dispersar sumariamente os soldados e marinheiros ganhos pela revolução e convocar novos soldados; institucionalizar o MFA e restabelecer a hierarquia das Forças Armadas; destruir o duplo poder, acabando com o assembleísmo, o direito dos trabalhadores de se reunir dentro dos locais de trabalho; “liberar” a Assembleia Constituinte da tutela do MFA; realizar o mais rápido possível eleições presidenciais; e chantagear as massas nas eleições com a promessa de que o dinheiro da Europa e dos Estados Unidos só viriam se os extremistas fossem derrotados.
O terceiro campo — as forças à esquerda do V governo — era o único que defendia, em tese, a necessidade da revolução socialista. O mínimo que se pode dizer para descrevê-lo é que era acéfalo. Não conseguiu sequer se afirmar como oposição a Vasco Gonçalves.
O impacto de suas iniciativas políticas, no entanto, foi significativo. Tinha influência, embora minoritária, entre os jovens operários e estudantes. Não possuía direção homogênea, mas contava com a simpatia de uma parcela grande da base socialista e comunista que, sem romper com seus dirigentes, estava pressionada pelo entusiasmo da participação nos organismos de democracia direta. No dia 17 de julho, por exemplo, sob a convocação do Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias (PRP/BR), que influenciava os Conselhos Revolucionários de Trabalhadores, Soldados e Marinheiros, realizou-se em Lisboa uma manifestação armada, que recebeu a adesão do Ralis — principal quartel da cidade — saindo às ruas com os blindados.
No dia 25 de setembro, ocorreu a manifestação dos SUV em Lisboa, com milhares de soldados com o rosto coberto e carregando armas e, com adesão popular, desviaram dezenas de ônibus para o quartel da Trafaria, do outro lado do Tejo, onde conseguiram a libertação de dois soldados ativistas que estavam presos. O capitão Fernandes assaltou um quartel em 30 de setembro e desviou um número considerável de armas, passando-as à clandestinidade e afirmando que as armas seriamo usadas para defender as lutas do povo. Otelo Saraiva de Carvalho, comandante do Copcon, uma força militar de intervenção importante, declarou, quando desafiado pela mídia que: “se as armas estão com o povo, então, estão em boas mãos”.
A iniciativa despojada dessa militância “à esquerda da esquerda” esteve no estopim de uma parte significativa de episódios heróicos da revolução. O balanço político mais geral foi, porém, desolador. A extrema esquerda cedia às pressões dos dois aparelhos mais poderosos, o PS e o PCR e não parece injusto dizer que foi aprisionada pela força de gravitação, ou do estalinismo ou da social-democracia. Ela se dividiu, grosso modo, em três posições.
A primeira, e mais influente — em especial no MFA e na intelectualidade – articulava o Movimento de Esquerda Socialista (MES), onde militava uma parcela da esquerda de origem católica, dentre eles o atual presidente Jorge Sampaio, a Liga de Unidade e Ação Revolucionária (Luar) de Palma Inácio, e o PRP de Isabel do Carmo, na origem de inspiração castrista, defendia um bloco das organizações revolucionárias com o MFA.
Mantendo uma independência um pouco maior, a UDP acompanhava. A UDP foi a forma pública de uma unificação de várias organizações, o Partido Comunista Português (reconstruído) — PCP(r) depois dissolvido. A UDP foi a principal organização com origem na ruptura pró-China do PCP — liderada por Chico Martins, no início dos anos 1960 — tinha evoluído para uma posição pró-albanesa e conseguido realizar uma fusão de quatro organizações (URML, OCMLP, CCR-ML, e CMLP) com a orientação de Diógenes Arruda, histórico dirigente do Partido Comunista do Brasil, que gozou em Lisboa de grande respeito. Maior partido à esquerda do PCR superando os 2 mil militantes, mantinha maior autonomia em relação ao MFA e distância do substitucionismo dos militares “revolucionários”.
Constituíram, primeiro, a FUP (Frente de Unidade Popular) — respondendo a um chamado de Cunhal — em apoio direto a Vasco Gonçalves, e depois a Frente de Unidade Revolucionária (FUR), quando o PCP rompeu, até com a adesão da UDP e da LCI, com uma posição mais ambígua. A liderança carismática de alguns oficiais do exército, como Otelo Saraiva de Carvalho, aparecia como um ponto de apoio e exercia um fascínio: “A extrema-esquerda começou por desenvolver a estratégia da insurreição em aliança com o MFA e o PCP, que consistiria, na realidade, na potencialização da relação de forças militar estabelecida pelo Copcon. A “aliança povo-MFA” decorria logicamente daí — e viu-se como entravou a luta dos trabalhadores e facilitou o reagrupamento dos seus adversários. A partir da altura em que uma premissa deste esquema começa a ruir, com as divisões e paralisia do MFA, operam uma pequena variação tática (...) A FUR vem ainda no prolongamento deste tipo de atitudes”.(16)
Alguns consideravam, também, que o perigo de um golpe fascista seria iminente e um regime de dominação democrático-burguesa, senão impossível, pelo menos improvável. Segundo César Oliveira, um dos seus líderes: “As classes dominantes em Portugal só têm uma saída: um regime autoritário, centralizado e fortemente repressivo, capaz de garantir a estabilidade política e uma ‘paz social1 que lhe permita reconverter uma estrutura econômica dependente da exploração colonial, da divisão internacional do trabalho, da própria existência de fascismo”.(17)
A conclusão ingênua de que a revolução só poderia ser derrotada por uma contrarrevolução fascista era, então, muito influente em função do golpe de Pinochet no Chile. Afinal, Spínola não tinha formado desde seu exílio um sinistro Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP)? O próprio Vasco Gonçalves considerava que a burguesia portuguesa só poderia governar se protegida pela repressão das baionetas — uma insensatez em um personagem em geral moderado — e insistia que a social- democracia era a antessala do fascismo.
A política da maioria da extrema-esquerda foi, portanto, errática no momento decisivo da crise revolucionária. Oscilou do apoio ao V Governo à aventura da madrugada do levante dos pára-quedistas. Enquanto isso, o PCP recuava, preocupado em preservar posições e até a legalidade. Negociava a sua permanência no IV Governo. Melo Antunes, o principal arquiteto da frente militar forjada para entregar a espada de Bonaparte para Eanes, admitiu, mas somente em 1998, que a célebre reunião clandestina com Cunhal antes do 25 de novembro tinha acontecido, de fato, embora não tenha revelado a substância da discussão. Cunhal, no entanto, não a reconhece até hoje.
A segunda posição era defendida pelo maoismo pró-Pequim e tinha duas organizações, o Partido Comunista Português (marxista-leninista) — PCP(m-l) — e o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP). Do MRPP saiu o atual primeiro-ministro Durão Barroso, Eram grupos estudantis, um pouco estrambóticos, mas o MRPP chegou a ter influência em alguns setores operários e pode ter superado os mil militantes. Aderiam à bizarra versão chinesa da teoria dos campos. Interpretavam que existia um Primeiro Mundo, no qual o imperialismo americano e o social-imperialismo soviético, cada um com seus aliados, lutavam pela supremacia mundial. Em um Segundo Mundo, estariam os países socialistas, e o Terceiro Mundo, a maioria, era composto pelas nações da periferia. A conclusão extravagante era que depois da ruptura do PS de Mário Soares com o V Governo, o maior perigo era o social-imperialismo russo, em função do peso do PCI? acusado de ser social- fascista. A estratégia lunática justificou uma aliança com Soares e o apoio ao golpe de Ramalho Eanes em 25 de novembro.
A terceira posição era composta por lideranças inexperientes e, politicamente, quase imberbes. As três organizações que reivindicavam a Quarta Internacional eram muito pequenas. Duas delas tinham uma intervenção independente — Liga Comunista Intemacionalista (LCI) e Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) — e a terceira, articulada com a Organização Comunista Intemacionalista (OCI) francesa, se expressava dentro do PS. A imaturidade cobrava seu preço.
A LCI, vinculada às posições do Secretariado Unificado dirigido por Ernest Mandel, chegou a organizar 500 ativistas, alguns com um papel decisivo na iniciativa de formação dos SUV e posições em algumas grandes empresas; já o PRT, um grupo de jovens articulado com as posições da seção Argentina, dirigida por Nahuel Moreno, com 200 militantes em seu melhor momento, foi codireção do movimento secundarista de Lisboa, e tinha influência nos metalúrgicos de Aveiro, permanecendo uma organização politicamente marginal. A terceira corrente obteve alguma evidência, embora fugaz. Atuava dentro do PS e elegeu dois deputados à Constituinte de 1975: Carmelinda Pereira, professora, e Aires Rodrigues, operário da Marinha Grande. Depois de expulsos, formaram o Partido Operário de Unidade Socialista (Pous). Enquanto a LCI assinou a plataforma da FUR — ainda que sob uma intensa luta interna que levou, em 1976, a uma autocrítica — e os militantes alinhados com a OCI francesa participavam das manifestações convocadas por Soares, o PRT manteve uma orientação mais independente.
Em 25 de novembro de 1975, a primeira derrota séria. Na sua origem, uma provocação. Uma ordem do estado maior desmobilizava alguns regimentos. Em resposta, um levante militar de pára-quedistas tinha se iniciado durante a madrugada. Chegaram a tomar o controle da televisão e iniciar uma emissão. Entretanto, uma ala da oficialidade deu um contragolpe fulminante e assumiu o poder dentro das Forças Armadas, destruindo a democracia direta nos quartéis. O MFA cedeu e o PC também, argumentando que o país não teria como suportar uma guerra civil. As liberdades democráticas não foram destruídas, mas todas as conquistas sociais ficaram ameaçadas. Costa Gomes decretou o estado de sítio parcial na região de Lisboa. As tropas rebeldes que ocupavam Monsanto se renderam. Na ocupação do Regimento da Polícia Militar morreram dois comandos e um PM. Nos dias seguintes foram detidos dezenas de oficiais, passados mandatos de captura, encerrados diversos jornais, dissolvido o Copcon e substituídas as altas patentes do Exército. Nos seis meses seguintes uma parcela muito significativa da tropa foi desmobilizada.
A força da resistência operária popular, apesar das divisões, ainda permanecia viva, mas a aliança com os soldados, marinheiros e oficiais mais radicalizados tinha se rompido com a recuperação da disciplina interna do Exército. Um depoimento de greve, um mês depois de 25 de novembro, é revelador: “Decidiu-se formar piquetes na entrada da fábrica para fiscalizar entradas e saídas. Os operários da Cambournac continuam a sua luta ocupando a fábrica no fim de semana. Os 800 trabalhadores não irão para a rua, haja falência ou não. Estamos dispostos a lutar pela posse daquilo que sempre nos foi roubado e não estamos passivos à espera do Governo, pois só a classe operária pode libertar-se.”(18)
Na sequência, faltava o mais difícil, derrotar os trabalhadores. Como não podia se arriscar a um confronto direto, como nos quartéis, a solução improvisada foi política. Ramalho Eanes, o general de 25 de novembro, foi eleito presidente da república nas eleições presidenciais de 1976. O PS e todos os partidos burgueses o caucionaram. Contou, também, com o apoio delirante do MRPR.
Mário Soares recebeu seu prêmio. Foi eleito primeiro ministro, depois das eleições legislativas em 1977, e o MFA foi dissolvido. A partir de então, ao longo de três anos, apesar da resistência nos setores mais organizados, a revolução foi agonizando.
Aquele que escreve viveu os seis meses mais intensos e emocionantes de sua vida. Eramos tão jovens que acreditávamos que a vida nos daria uma segunda chance, na próxima esquina perigosa da história. Estávamos errados. As derrotas históricas exigem, no mínimo, o intervalo de uma geração para que suas sequelas possam ser superadas. Todo processo revolucionário é uma refutação trágica das teses gradualistas que diminuem a importância da ruptura, portanto, da insurreição, na estratégia de luta anticapitalista. Boaventura de Sousa Santos foi um dos defensores do balanço da revolução como um processo evolucionista: “A revolução socialista é o processo mais
ou menos longo de transformação global de diferentes estruturas de poder da sociedade capitalista no sentido da democratização global da vida coletiva e individual. E a totalidade histórica em que culmina o conjunto das reformas sociais dispersas no tempo e nas diferentes práticas políticas”.(19)
A perspectiva de um longo processo de extensão da democracia, de acumulação de forças e direitos e de convencimento ou neutralização desarmada dos inimigos sociais sem a gravidade máxima do assalto ao poder não encontrou uma fundamentação histórica consistente. Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo, irreversível, de estabilização de um regime democrático liberal. A oportunidade tinha sido perdida.
A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. O que a revolução fez em dezoito meses, a contrarrevolução precisou de dezoito anos para desmontar. A integração posterior na Comunidade Econômica Europeia com o acesso aos fundos estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a infraestrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do regime nos anos 1980 e 1990.5 A discussão dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força pode ser encontrada em meu livro As esquinas perigosas da História. Situações revolucionárias em perspectiva marxista. São Paulo: Xamã, 2004.
Notas de rodapé:
(1) Marcelo Caetano. Depoimento. Rio de Janeiro: Record, 1974, p. 194. (retornar ao texto)
(2) A. Afonso, B. Costa apud Lincoln Secco. A Revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004, p. I 57 (retornar ao texto)
(3) Otelo Saraiva de Carvalho. Memórias de abril. Los preparativos y el estallido de Ia revolución portuguesi vistos por su principal protagonista. Barcelona: El ViejoTopo, s/d, p. 163. (retornar ao texto)
(4) Leon Trotsky. Historia de la Revolucion Russa. Bogotá: Pluma, 1982, v. I, p. 8. (retornar ao texto)
(5) As discussões dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força pode ser encontrada em meu livro "As esquinas perigosas da História. Situações revolucionárias em perspectiva marxista". São Paulo: Xamã, 2004. (retornar ao texto)
(6) Uma fascinante tese sobre o Vinte e Cinco de Abril com inspiração na sugestão braudeliana sobre as longas durações atribui às pressões de uma situação internacional interpretada como adversa e ao atraso material, cultural e político do país, a explicação para seus resultados: "Portugal não revolucionou as estruturas profundas de sua organização socioeconômica (...). A democracia liberal que Portugal nunca havia conhecido de fato, esta sim se instalou, e o liberalismo e o republicanismo do século XIX precisaram, paradoxalmente, da retórica socialista para se implantarem.” Lincoln Secco. Op. c/t., p. 153. (retornar ao texto)
(7) Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa, 25 jun. 1974, apud Francisco Louçã. 25 de abril, dez anos de lições. Ensaio para uma revolução. Lisboa: Cadernos Marxistas, 1984, p. 36. (retornar ao texto)
(8) Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24 jun. 1974, apud Francisco Louçã. Op. c/t., p. 36. (retornar ao texto)
(9) Francisco Louçã. Op. c/t, p. 35. (retornar ao texto)
(10) José Antonio Saraiva e Vicente Jorge Silva. O 25 de Abril visto da História. Lisboa: Bertrand, 1976, p. 172. (retornar ao texto)
(11) José Antonio Saraiva e Vicente Jorge Silva. Op. cit., p. 169. (retornar ao texto)
(12) Plano de ação política do MFA que o identifica como Movimento de Libertação Nacional. In Francisco Louçã. Op. cit., p. 43. (retornar ao texto)
(13) Francisco Louçã. Op. cit., p. 30. (retornar ao texto)
(14) Mário Soares, Carta de demissão entregue ao presidente Costa Gomes em 10 de julho de 1975, apud Francisco Louçã. Op. c/t, p. 49. (retornar ao texto)
(15) Francisco Louçã. Op. c/t, p. 49. (retornar ao texto)
(16) Francisco Louçã. Op. cit., p. 78. (retornar ao texto)
(17) César Oliveira. MFA e revolução socialista. Lisboa: Diabril, 1975, p. 14. (retornar ao texto)
(18) Comunicado dos trabalhadores da Cambournac, dez. 1975. In Francisco Martins Rodrigues Martins. O futuro era agora. Lisboa: Dinossauro, 1994. O título deste artigo retoma o deste extraordinário livro com a autorização do autor. (retornar ao texto)
(19) Boaventura de Sousa Santos. A questão do socialismo. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 6, mai. 1981, p. 170. (retornar ao texto)