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Observação: António Barata é trabalhador gráfico. Militou na UDP e no PCP(R) entre 1976 e 1984, tendo participado na cisão encabeçada por Francisco Martins Rodrigues que levou à criação da Organização Comunista Política Operária, fazendo desde então parte do colectivo redactorial do jornal Política Operária. Tem integrado e participado em movimentos de defesa de presos políticos, anti-racistas e anticoloniais, antimilitaristas, contra a celebração do 5º centenário da “descoberta” da América, contra as guerras imperialistas, de defesa dos direitos dos imigrantes, pelo direito à habitação, de solidariedade com a Palestina etc.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O incêndio da embaixada de Espanha em 1975 não é nem vergonha nem provocação da CIA, mas uma acção exemplar dos revolucionários. Se caiu mal ao PCP e ao MFA, foi porque comprometeu aos olhos da burguesia a imagem ordeira da “revolução dos cravos”
Na madrugada de 27 de Setembro de 1975 – faz agora 18 anos – a agonizante ditadura franquista executava cinco militantes revolucionários, insensível aos apelos que por todo o mundo exigiam a comutação das penas de morte. No dia seguinte explodiam os protestos em todas as capitais europeias. Em Lisboa, perante as frouxas tomadas de posição do PS e do PCP – atitude a que não eram estranhas as opções revolucionárias e guerrilheiristas dos cinco antifranquistas – a UDP organizou a contestação. Em pouca horas concentraram-se milhares de pessoas indignadas que assaltaram e incendiaram o consulado espanhol. Depois dirigem-se à embaixada, que tem o mesmo destino.
Mais tarde, quando tudo parecia terminado e muitos dos manifestantes já se haviam retirado, um grupo de “comandos” irrompe na Praça de Espanha aos tiros. Revoltados, algumas centenas de manifestantes dirigem-se a Santa Apolónia onde pintam slogans antifranquistas nos comboios internacionais e se confrontam com a polícia.
Este processo inédito no nosso país desde então é motivo de grande polémica. Nos últimos anos passou a ser apontado, quase sem contestação, como um estigma para nossa esquerda portuguesa, uma vergonha nacional que custou ao país milhões de contos e exemplo máximo do “desvario e irresponsabilidade anarcopopulistas”. E a verdade é que também a esquerda acabou por o silenciar, como um tabu.
Entre os mais severos críticos da destruição das instalações diplomáticas franquistas encontra-se o PCP, que desde o primeiro momento a qualificou de “provocação esquerdista ao serviço da CIA e da reacção”. Esta teoria da provocação esquerdista, particularmente da instrumentalização das organizações maoistas pela CIA, largamente defendida entre 1974 e 1977 pelos cunhalistas, é tida como boa, mesmo por pessoas que não são seus seguidores incondicionais.
Dizem essas pessoas: as desordens de 28 de Setembro permitiram que se acusasse o MFA de não dominar a situação, deram argumentos aos partidos de direita para agitar o papão da “anarquia”, agravaram as dissensões entre os militares, poderiam ter servido de pretexto para uma inte4rvenção imperialista contra o regime democrático… Mas, se pensarmos um pouco, veremos que por detrás da aparente sensatez destes argumentos está a recusa a qualquer movimento revolucionário.
Que seria preferível fazer? Que Lisboa não tivesse explodido em indignação perante um crime tão hediondo e se limitasse a aprovar moções de repúdio? A direita agitou o papão da anarquia – mas não conta mais o facto de ela ter visto que o povo era capaz de passar ao contra-ataque? A energia da manifestação terá feito recuar alguns democratas vacilantes – mas não conta mais a disposição de luta que transmitiu a milhares de outros? E porquê um pânico tão grande perante o assalto à embaixada de um regime fascista desacreditado no mundo inteiro? Não será que a afronta aos símbolos do franquismo em Lisboa ajudou a luta do povo espanhol pela sua libertação? Etc., etc.
O problema é que para os dirigentes do PCP, as acções de massas não são o motor que abre caminho e cria as condições para a mudança; eles receiam as acções que não sejam devidamente programadas e enquadradas, porque podem vir perturbar os seus planos de transição gradual.
Assim, se a “via socialista” proclamada pelo gonçalvismo não passou de uma miragem, deitam-se as culpas a Otelo “que teve tudo na mão e só fez burrada”. Se veio o 6º Governo provisório, a culpa foi dos esquerdistas e da sua mania do “já, já, já” com que empurravam a burguesia vacilante e os camponeses do Norte e Centro para os braços do PS e do PSD. Se veio o 25 de Novembro, a culpa foi dos operários da construção civil que sequestraram os parlamentares, do populismo do COPCON, dos tribunais populares, da descelagem das instalações da Rádio Renascença, do assalto à embaixada, dos para-quedistas amotinados, etc., que impossibilitaram qualquer entendimento com o PS e o empurrara, e ao Grupo dos Nove, para o lado do PPD e dos fascistas.
A lógica veiculada pelo cunhalismo, de que tudo o que passe mais além das suas manobras tácticas é “provocação esquerdista inspirada pela CIA”, não resulta só da vontade consciente de evitar um debate incómodo. Ela resulta principalmente da impossibilidade dos revisionistas conceberem uma política e uma prática comunista à sua esquerda. Tentando equilibrar-se com um pé na classe operária e outro na burguesia, ansiosos por conciliar os pontos de vista do capitalismo e os dos trabalhadores, a sua aspiração é a de se substituírem como dirigentes políticos e gestores competentes aos “maus” capitalistas vende-pátrias e serem aceites como defensores desinteressados do “interesse nacional”.
Entregues à tarefa de conterem a impaciência dos trabalhadores enquanto não convencem a burguesia das vantagens do socialismo, é lógico que privilegiem os arranjos de gabinete à imposição da vontade das massas a partir das ruas. Na sua óptica, a função das lutas populares é a de servirem como força de apoio à sua política. E, como a sua política é por definição revolucionária, tudo o que esteja para além dela não pode ser mais nada que obra da contra-revolução. Logo, se há partidos que acusam o PCP de reformismo, estes não podem ser revolucionários e muito menos comunistas. Daí a surgirem como agentes da reacção e cobertura perfeita para provocadores é um pequeno passo. Assim, de sofisma em sofisma se constrói uma visão reacionária dos acontecimentos.
O que nessa altura separava a esquerda revolucionária da ala esquerda do reformismo liderada pelo PCP era uma opção muito concreta: dar uma saída revolucionária à grande convulsão social posta em marcha pelo golpe militar de 25 de Abril; ou manter essa agitação dentro dos limites tolerados pela burguesia democrática e em apoio da democratização do Estado.
Preocupado em evitar a todo o custo uma ruptura com a burguesia democrática, o papel do PCP não foi o de vanguarda das transformações democráticas avançadas, mas o de as ir adoptando à medida que o movimento operário e popular as ia impondo. À cabeça das suas preocupações não estava a desagregação do poder de Estado burguês, mas a “consolidação da jovem democracia” burguesa. Razão pela qual consideravam que fazer greve e lutar contra o desemprego era reacionário; exigir o saneamento dos fascistas, bufos e legionários das administrações “um objectivo secundário”; responder à violência policial ou hostilizar os corpos repressivos, “prejudicar o reforço da aliança entre o movimento popular de massas e o MFA”.
A história desses meses pode ser reescrita ao gosto de cada um mas os factos são bem claros. Sempre preocupado em não dar argumentos nem pretextos à reacção – como se ela precisasse deles para agir – o espantalho da “provocação ou impaciência esquerdista” foi usado pelo PCP para desencorajar as primeiras ocupações espontâneas de casas nas cidades e de terras alentejanas; contra as manifestações onde se gritava “Nem mais um soldado para as colónias”; contra o boicote popular ao primeiro congresso do CDS, no Porto; contra as lutas e manifestações da TAP, Jornal do Comércio, CTT, Rádio Renascença, Lisnave, Siderurgia onde se exigia o saneamento de administradores ligados à PIDE/DGS ou o fim do desemprego.
Em contrapartida o “Avante” de 6 de Setembro de 1974 incluía “entre as medidas tomadas pelo Governo Provisório no sentido de instituir as liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos”… o aparecimento da primeira lei anti-greve, que foi, aliás, pura e simplesmente ignorada pelo movimento operário. E em Agosto de 1975 apoiava calorosamente a lei dos despedimentos promulgada pelo 5º governo, de Vasco Gonçalves, onde se podia ler como justa causa para o despedimento “o desinteresse repetido pelo cumprimento das obrigações internas ao exercício do cargo ou posto de trabalho, com a diligência devida”.
Quando os revolucionários já denunciavam o reacionarismo de Spínola, ainda o PCP convocava uma manifestação em seu apoio, em Julho de 1974. Depois, na sequência do 28 de Setembro, quando a esquerda exigiu o julgamento popular de Spínola, os revisionistas limitaram-se a dizer que “o papel positivo” do general tinha acabado; enquanto os revolucionários exigiam a extinsão da PSP e da GNR, o PCP fazia-lhes sessões de esclarecimento; enquanto os revolucionários organizavam protestos contra as manobras intimidatórias da NATO na costa portuguesa, em Fevereiro de 1975, “o PC exorta a população a interessá-los [aos 11 mil marinheiros da NATO] no apoio ao povo português e dar-lhes o mesmo recordações alusivas ao novo Portugal democrático”; enquanto os revolucionários exigiam a extinção dos partidos fascistas CDS e PDC, então no Governo Provisório, recusou-se a fazê-lo por considerar que na “democracia pluralista” eles tinham direito a existir; enquanto o PCP festejava a fugaz reconciliação com o PS, após o 11 de Março, os revolucionários procuravam esmagar os fascistas assaltando a sede do PDC e a casa de Spínola.
Parte da credibilidade da teoria da provocação esquerdista, principalmente junto de muitas pessoas de esquerda, vem das práticas e do alinhamento político que os grupos maoistas de direita fizeram com o PS e o PPD, do seu histerismo “anti-social-fascista” que os levou a fazer coro e a servir de tropa de choque da direita. Referimo-nos concretamente ao PCP(m-l)/AOC, ao MRPP e, a certa altura, à OCMLP, curiosamente também partidários da teoria dos espiões, vendo por todo o lado os homens do KGB.
Simplesmente, a história do maoismo no nosso país não é só a desses grupos, nem eles sequer constituíram a sua parcela mais importante e influente. A história do maoismo foi feita pela UDP e pelos grupos que a ela aderiram, nos anos de 1974 a 1977, quando encabeçou importantes lutas de massas e avançou as propostas mais radicalmente anticapitalistas da altura, facto que lhe grangeou grande apoio popular e o ódio de toda a burguesia.
A responsabilidade dos acontecimentos de há 18 anos cabe por inteiro à UDP da altura. Paricipei neles e não tenho qualquer autocrítica a fazer.