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Antes de mais nada, ao encetar a construção de uma ciência, deve-se indicar o seu objeto, determinar o seu conteúdo, distinguindo os fenômenos que nela vão ser estudados. Assim se procede em relação a qualquer ciência e assim também se deve proceder quanto à ciência social – a sociologia.
É, porem, muito difícil determinar o objeto da ciência social, por ser difícil determinar a divisão e distinção dos fenômenos sociais.
De fato, cada fenômeno social tem de estar ligado aos esforços que forjam a sociedade, isto é, aos homens e os fenômenos sociais devem, portanto ser o resultado da atividade humana, que, como tal está relacionado com a consciência humana.
O fenômeno torna-se então psicológico. Ao mesmo tempo o fenômeno esta relacionado com todo o organismo humano, que, por sua vez está submetido a determinadas leis fisiológicas, químicas e físicas; o fenômeno social é, portanto, ao mesmo tempo um fenômeno geral da natureza. Torna-se por isso difícil a sua definição. Isso constitui mais um motivo para a complexidade dos fenômenos sociais, isto é, o fato de constituírem estes uma serie de vários e distintos momentos, dos quais é difícil distinguir o momento especificamente social, para com estes constituir o conjunto de fenômenos cuja relação se procura determinar e que é a mola da vida social.
Temos por exemplo, o suicídio, como um fenômeno da vida social. Que vemos? De um lado é um ato da vontade humana e, por conseguinte ligada ao ser psíquico, de outro, o resultado de um processo físico constituído pela lesão que ocasionou a morte. Temos aqui uma serie de momentos psicológicos, físicos, químicos, fisiológicos, e também sociais; e ao analisarmos o fenômeno do suicídio, temos que passar sobre os vários momentos não sociais para nos determos somente no momento social, que constitui o objeto de nossa investigação. Os atritos e movimentos do projétil, se a morte foi produzida por bala, o jorrar do sangue, a destruição das células e a morte como tal, não são ainda o momento social e por isso não os estudaremos em nosso trabalho.
Mas, o que há de social no ato de investigarmos? O ato do suicida foi executado por certos motivos que o determinaram, motivos essencialmente individuais: o homem, por exemplo, foi levado a esse gesto por uma desilusão, por pessimismo, ou porque se achava em estado anormal de consciência. Até aqui, poderá parecer que se trata de um momento psicológico puro, por nos parecerem exclusivamente individual as causas determinantes do ato. De fato, até aqui nada temos de social. Mas levamos mais adiante a nossa analise, e formulemos a seguinte pergunta: quais as causas que o levaram a desilusão, quais os motivos do seu pessimismo e, seremos forçados a responder que a causa da desilusão foi o não se terem realizado as suas esperanças na vida; porque o lugar por ele ocupado na sociedade, isto é, a sua posição social, não lhe permitiu alcançar aquilo que desejava, numa palavra, porque as condições existentes, nas quais se achava, não o podiam satisfazer, e nada o prendia á vida, ao contrario, tudo o compelia ao ato que praticou.
Aqui já temos alguma coisa de social.
Desde que tratamos de atos humanos, há de haver neles sempre algum sentido social. É este fundo social que teremos de destacar, investigar e analisar.
Preliminarmente devemos investigar se os atos humanos se realizam obedecendo a leis ou espontaneamente. Se obedecem a leis devemos procurar descobri-las, para se poder prever os fenômenos. Tomemos o mesmo fenômeno do suicídio. Sabemos pelas estatísticas, que em cada ano se dão um certo numero de suicídios e, quanto mais desenvolvida é a sociedade, maior é o seu numero. Já vemos por aí que o fenômeno do suicídio não é casual, e deve obedecer a leis, isto é, deve haver uma relação constante entre o fenômeno e as causas que o determinam. Como tal deve ser possível a sua previsão.
Ora, descoberto e determinado o objeto a ser estudado numa ciência, já se pode encetar a sua construção.
Em nosso curso teremos que lidar com fenômenos sociais já destacados e a nossa missão consistirá em verificar se existem determinadas leis que provocam esses fenômenos e os regulam, e se entre fenômenos sociais diversos, existem relações regulares e determinadas por leis.
Tomemos ainda o exemplo do suicídio e perguntemos: é o suicídio um fenômeno constante, cujo repetição pode ser prevista, ou é ao contrario meramente casual? Ora, ao investigarmos este fenômeno, veremos que em sociedades de igual nível de desenvolvimento, a percentagem anual de suicídios é a mesma e que o fenômeno, em geral, é regular.
O suicídio é, portanto um fenômeno constante, obedecendo a leis, que permitem a sua previsão; tem relações normais com outros fenômenos sociais e é provocado por estes últimos.
O mesmo se dá com outro fenômeno, o “casamento” – relações contratuais entre dois sexos, e mais claramente no fenômeno do “roubo”. Estes dois últimos são fenômenos sociais por excelência. São fenômenos constantes, provocados por causas certas, leis determinadas e podem ser, portanto investigados cientificamente.
Até aqui procuramos determinar o que seja um fenômeno social geral. Mas cada fenômeno social pode ter também, em certos casos um sentido histórico.
Tomemos mais uma vez o fenômeno do suicídio, mas agora o suicídio de um certo homem publico (ou o furto de importantes documentos diplomáticos); um tal fenômeno social pode ser transformado num acontecimento histórico. Por quê? Porque este fenômeno pode ter eco sobre uma serie de outros fenômenos. Assim, desde que um fenômeno social exerce grande influencia sobre o agrupamento de outros fenômenos sociais, provoca novos fenômenos que trazem certa modificação á vida social, e torna-se deste modo, ao mesmo tempo, um acontecimento histórico.
Alem dos fenômenos individuais com sentido social e histórico, existem igualmente fenômenos sociais de caráter coletivo, que também constituem acontecimentos históricos. Tomemos por exemplo a guerra. O fenômeno tem caráter coletivo; é desenvolvida entre coletividades distintas e, muitas vezes exerce grande influencia sobre a marcha posterior da vida social. É, portanto um acontecimento histórico. O mesmo se observa com o fenômeno “revolução” cujo sentido é a luta entre vários grupos sociais, graças á qual, em ultima analise, é modificada a forma da vida social.
Cada acontecimento histórico e a historia em geral; — o desenvolvimento da sociedade humana, a cadeia dos acontecimentos históricos concatenados – devem, da mesma forma que cada fenômeno social, ser estudados cientificamente.
Devemos, pois encontrar os métodos científicos para estudar os acontecimentos históricos.
Mas aqui surge uma questão importante: — a historia, tal como era escrita antes e ainda como esta sendo escrita até agora, pode ser objeto de investigação cientifica?
Tomemos a historia, tal como foi escrita pelos historiadores há 2000 anos, a historia que já se escreveu durante a idade media e nos tempos modernos, e a que foi escrita nos últimos tempos; qual dessas “historias” pode servir de objeto para a ciência?
A “historia”, simples narração dos fatos, é mesmo anterior á formação dos caracteres escritos. A questão porem é indagar como foi a historia escrita; o que era para os antigos historiadores o essencial nas suas investigações, e qual a historia que pode servir de objeto para uma investigação cientifica.
Por um lado, foi a historia, na sua infância, adulterada e incorretamente transmitida e por outro, não transmitia ela os fenômenos comuns da vida humana, mas somente os acontecimentos que atraiam a atenção dos “historiadores” de então.
Na historia antiga havia dois fatores que deixavam seu timbre no sentido e no próprio modo de escrever a historia: 1º- a narrativa de certas lendas que circulam entre o povo como fatos históricos; 2º- a atribuição dos acontecimentos históricos á vontade e influencia de grandes personalidades. A historia teve, portanto, o caráter biográfico dessas personalidades, entrelaçada de narrativas e louvores referentes aos seus atos.
Nessa historia não se encontram os fatos que indicam as causas desses acontecimentos, nem o papel que neles tomaram as massas.
Assim, a deturpação por motivos religiosos e a atribuição de todos os acontecimentos á atividade de certas individualidades, transformaram a historia em biografia dessas personalidades, a qual pelo seu conteúdo não pode se tornar uma ciência, pois a ciência só pode ser constituída como já vimos, pela constatação de fatos que tenham entre si uma relação constante.
Só casualmente, os historiadores gregos como Herodoto, Thucidides, Plutarco e outros, deparam com a força, influencia, atividade e interesses das massas e começam parcialmente a descrever momentos característicos da vida social, não tirando disso, entretanto, as conclusões correspondentes.
Mas, os quadros reais, descritos por eles, quer da vida social, quer da vida dos reis e chefes, dão-nos agora a possibilidade de determinar, após um estudo cientifico, os traços e formas mais importantes da vida de então. Tudo isso no entanto eram apenas descrições, “historias” e não uma historia cientifica.
Na idade media não se deram grandes modificações nesse sentido. Somente após a grande Revolução Francesa, começa a cristalizar-se a historia como ciência (indícios de um ponto de vista cientifico para os acontecimentos históricos, encontramo-los até, anteriormente, em Voltaire e Montesquieu).
Realmente, um acontecimento histórico tão importante como a Revolução Francesa, executou colossais reformas na vida social de então, reformas cujo conteúdo foram de tal forma salientes que já não foi possível atribuir tais acontecimentos á vontade de grandes personalidades ou a certas casualidades. A participação e o papel dos diversos grupos sociais na Revolução Francesa foi tão saliente, que os historiadores tiveram que considerá-los, mostrando as relações entre os grupos e a sua atitude em face dos acontecimentos, etc.
Vemos então, que a historia era até certo momento, escrita de tal maneira que jamais poderia ter sido objeto de investigação cientifica. Só no começo do século XIX, mais ou menos, principia-se a estudar a historia cientificamente.
Os acontecimentos históricos quer de caráter individual, quer de caráter coletivo, devem também ser estudados cientificamente. Devem ser determinadas as leis que provocam esses acontecimentos e que os colocam em relações constantes com outros fenômenos sociais.
Isso só se tornou possível quando os fenômenos sociais, em geral, se tornaram objeto de investigação cientifica, quando a ciência da sociedade, sua vida e desenvolvimento podem assentar numa base solida e concreta.
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Inclusão | 19/02/2010 |