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Com nenhum de seus vizinhos, a Rússia viveu em tão grande amizade. como com a Alemanha, não obstante a fronteira comum às duas nações ser muito extensa antes da Polônia se tornar independente. Por quinhentos anos, nenhum russo atirara contra um alemão. A única exceção foi uma guerra contra a Prússia, e então o Tzar estava aliado à Áustria. Os russos estiveram aliados à Áustria em três grandes guerras, não obstante se baterem seis vezes contra os turcos e outras tantas contra outros vizinhos. Portanto, os russos não eram odiados em parte alguma da Alemanha — quando mais não fosse pelo motivo dos dois povos não se conhecerem um ao outro. Ao passo que toda a paixão de domínio da Alemanha tinha sido dirigida contra o Oeste por mil anos contra a França, e a ambição nacional se exauria sempre em novos campos de batalha, não houve guerras nem conflitos no Leste contra a Rússia. Os Romanovs mantiveram essa política pacifista por trezentos anos, até que, finalmente, lutaram contra a Alemanha na Guerra Mundial e foram derrotados.
A tentativa de continuar a guerra durante a primeira fase da revolução em 1917 fracassou imediatamente; porque os soldados nas trincheiras já começavam a confraternizar nessa frente.
O sentimento de amizade aumentou depois que os bolchevistas apareceram em cena. No segundo dia, depois que assumiu o poder, Trotsky irradiou sua famosa mensagem ao mundo, e especialmente à Alemanha. Essa foi uma das primeiras vezes que o rádio foi empregado na transmissão de discursos para países distantes. O apelo, começando com estas palavras: "A todos!" causou uma profunda impressão depois de três anos de guerra. E o mundo que escutava ouviu estas palavras:
"Propomos que todas as nações e governos em guerra entrem em imediatas negociações para a realização de uma paz democrática e justa sem anexações nem reparações."
Durante os quatro anos que se seguiram, as relações entre a Rússia e a Alemanha foram regularizadas em volta de três mesas verdes de conferências: primeiro como entre vencedor e vencido, depois como entre neutros e, por fim, em forma de uma aliança.
A primeira dessas mesas provavelmente não foi verdadeira, mas sim uma tosca peça de mobília na estalagem dilapidada de uma cidade meio demolida: Brest-Litowsky. Aí, os generais alemães vitoriosos encontraram-se com os bolchevistas derrotados, no Natal de 1917. Uma cena imortal! Os alemães, já sob a impressão do pressentimento do desastre futuro, mas ainda apresentando-se como vitoriosos com as suas resplendentes medalhas, espadas e esporas retinindo, as vozes ressonantes, encontraram-se aí com meia dúzia de comunistas, operários e literatos de casacos surrados, porém rostos determinados, prontos a acertar a conta do mau governo tzarista que acabavam de destruir. Ali, aqueles generais prussianos, cujo poder externo ainda era reconhecido em metade da Europa, aqueles herdeiros da casta privilegiada através dos séculos, olharam com olhos altivos e frios para as caras inteligentes e apaixonadas de revolucionários que eram proletários e idealistas, lutadores e fanáticos. Pasmos, os brilhantes generais viram mesmo uma ou duas mulheres entre os delegados e mal puderam conter o riso. Ambos os grupos desprezavam-se reciprocamente; mas os arrogantes vencedores, cujos líderes davam murros na mesa nos momentos críticos, sabiam que seu declínio estava próximo.
Ninguém reconheceu a precariedade da situação alemã mais depressa do que Lenine.
"Quanto mais os alemães avançam" disse ele, "mais claro se torna para todos, mesmo para muitos cidadãos germânicos, que a guerra não oferece uma saída. Quanto mais suas tropas avançam, tanto mais perigosa se torna a situação do exército que despoja gente indefesa como um bando de salteadores, roubando-lhes o último bocado que têm para comer, apesar de sua surda resistência."
Hoje, depois de vinte, e quatro anos, o sucessor de Lenine, Stalin, podia predizer à mesma coisa ao sucessor do Kaiser, palavra por palavra. Mais tarde, Lenine resumiu a campanha alemã no seu magnífico estilo:
"A princípio, o balão encheu-se até cobrir três quartos da Europa. Depois estourou e não deixou ficar senão o mau cheiro."
Um ano depois, na Primavera de 1919, os delegados alemães estavam sentados no teatro de Weimar deliberando sobre o tratado de Versalhes a que tinham sido submetidos. Aí, contudo, não estavam nem generais alemães nem revolucionários russos. Os primeiros tinham fugido depois da derrota, os segundos não tinham sido convidados para aquele conselho. A esse tempo, o destino submetia aos alemães uma proposta que punha à prova seu caráter, mais profundamente do que qualquer outra jamais apresentada pela história: era-lhes oferecida a escolha entre a liberdade e o direito à propriedade. Tinha acontecido o milagre do grande exército russo, eliminado no meio da guerra, estar agora pronto para bater-se do lado alemão. Os poderosos vencedores em Paris tremiam. Informações secretas desse tempo, que só agora se tornaram acessíveis, falam na assustadora possibilidade das duas potências derrotadas, a Rússia e a Alemanha, se unirem da noite para o dia e forçarem os exércitos aliados, exaustos, a novas batalhas.
Mas o salvador russo, que podia ter livrado os alemães da situação desesperada em que se achavam, era um bolchevista. Os burgueses alemães — inclusive os socialistas, que aderiram ao dogma mas não aos métodos dos russos — não temiam nada mais do que essa palavra diabólica. Embora os bolchevistas quisessem marchar com e não contra a Alemanha, e a guerra russo-germana de libertação em 1813 pudesse ter-se repetido, os alemães preferiram a segurança à libertação e assinaram o tratado.
Num dos maravilhosos palácios da Renascença, em Gênova, os líderes da Europa estavam novamente sentados três anos depois, na Primavera de 1923, a uma enorme mesa em forma de U; vencedores todos eles, mas com as fisionomias refletindo tanto cansaço que pareciam vencidos. Os aliados de ontem desconfiavam uns dos outros e odiavam-se reciprocamente; havia discórdia entre as nações, e mesmo entre estadistas dessas mesmas nações. Sobretudo, estavam mal humorados porque o interesse do mundo não estava centralizado neles, mas nos representantes de duas grandes nações vencidas: Rússia e Alemanha.
O representante alemão era mais alto do que a maior parte dos outros. Um homem de sociedade com maneiras polidas, um linguista perfeito falando mais línguas do que qualquer outro ali, era o homem mais culto que já encontrei entre os meus contemporâneos. Era o mesmo Walther Rathenau que desenvolvera a idéia da economia dirigida de uma forma assimilável, ensinando assim aos russos uma parte de sua própria técnica. Pelos últimos poucos meses vinha sendo ministro dos Estrangeiros da República Alemã. O outro homem era baixo, parecendo-se em alguns pontos com Lenine. Ele também era um homem de grande cultura, proficiente em diversas línguas e familiarizado com os problemas da Europa: Tschitscherin, ministro dos Estrangeiros da Rússia Soviética, que pouco depois passou a ser a União dos Soviets. Era auxiliado por Krassin, um comerciante astuto que sabia como falar de negócios com Rathenau.
A conferência olhava para esses dois delegados com a mesma desconfiança que a sociedade conservadora inglesa olharia para duas donzelas atraentes e de virtude duvidosa, introduzidas sub-repticiamente no seu meio. Depois de três anos de boicotagem, tinham finalmente sido admitidos naquele círculo altamente moral. O mundo inteiro esperava que se portariam mal.
E portaram-se. Reconhecendo que os vencedores tencionavam lográ-los, fizeram uma contra-marcha sobre eles e concluíram uma inesperada aliança. A explosão foi terrível e quase fez ir pelos ares a conferência. Já no fim desse momentoso dia de Páscoa, Rathenau disse-me:
— Recebi a Alemanha tal como estava. Herr Ludendorf perdera a guerra. A Rússia é a nossa única aliada possível. Eu não podia ter concluído o pacto antes. Depois teria sido tarde demais. Hoje era o único momento.
Por meio desse ousado pacto de Rapallo, Rathenau deu prova de uma capacidade de estadista desconhecida na Alemanha desde o tempo de Bismarck. Como retribuição deram-lhe a morte: foi assassinado pouco depois por esses mesmos nazistas, que concluíram o mesmo pacto com Moscou dezessete anos depois.
Depois desse pacto, as duas nações recentemente aliadas foram arrastadas para políticas inteiramente diferentes pelos seus sistemas e circunstâncias, Os russos, ocupados com a reconstrução interna, não pensavam em conquistas. Os alemães, opondo-se ao novo sistema político e boicotando a República numa maioria esmagadora, não pensavam senão em vingança e em recuperar suas perdas.
Os herdeiros do Tzar, convencidos de sua culpabilidade e da justiça da derrota russa, recusaram pagar as dívidas do antigo regime e preferiram começar algo novo. Os herdeiros do Kaiser queixavam-se continuamente de que estavam sendo logrados pelos vencedores — e também por uma parte de seus compatriotas — e pagaram uma fortuna ao soberano que fugira.
Contudo, duas forças na Alemanha tentaram reforçar a aliança com a Rússia: os grandes trustes, especialmente as companhias de eletricidade, viam a esse tempo — antes do Plano Quinquenal, — oportunidades para grande negócios com a Rússia; o estado maior teve visões de uma combinação militar russo-germânica. Ambos eram atraídos pelas imensas quantidades de matérias primas e homens de que a Rússia dispunha, ao passo que os russos admiravam a precisão alemã e a superioridade do produto estrangeiro que não podiam igualar então. Os generais alemães admiraram — primeiro secreta, depois abertamente — as vitórias do Exército Vermelho sobre as tropas intervencionistas. Ambos os lados, embora impelidos por diferentes razões, eram contrários à paz de Versalhes.
Suas desconfianças originais desapareceram diante da admirável correção dos seus aliados. Os bolchevistas honravam pontualmente os saques dos alemães. O dito de Lenine de que "o velho carro russo seria atrelado ao moderno dínamo alemão" parecia prometer grandes lucros. O estado maior alemão, ajudando a organização do exército russo, ia descobrindo certas informações valiosas, imaginando que os russos não se davam conta de seus ardis. O líder dessa política era o general von Seeckt que criara um pequeno exército alemão pouco depois de Trotsky ter criado um russo, grande.
Seeckt representa uma das figuras excepcionais produzidas pelo estado maior prussiano rejuvenescido pela admissão do filho de um oficial pertencente à nova nobreza. Um homem de elevada cultura, com uma inclinação filosófica e mesmo estética, era um dos mais interessantes oficiais do exército alemão desde os dias de general von Schliefen. Em todos os sentidos, apresentava um vivo contraste com o marechal von Hindenburg a quem ele desprezava e o qual, por sua vez, se vingou demitindo-o.
A principal diferença entre os dois novos exércitos estava na mentalidade dos soldados. Para os alemães desempregados, ser soldado era um modo de vida com o qual podiam ganhar o pão de cada dia. Muito poucos pensavam em vingança. Essa idéia estava muito mais firmemente arraigada na velha burguesia alemã do que no novo exército. Por outro lado, os russos assemelhavam-se ao "Exército de Santos" de Cromwell que nem sempre se portara santamente. Ambas as nações fizeram uma virtude da necessidade.
Além dos industriais e do estado maior, os primeiros nazistas também estavam interessados na aliança russa e gostavam de ser chamados bolchevistas Nacionais em lugar de Socialistas Nacionais. Roehm, como Goebbels e Himmler, por esse tempo jovens aventureiros, intrometiam-se na política russa muito antes de subirem ao poder. Seu lema: "Juntos seremos invencíveis" era correto. Mas esqueceram-se de acrescentar: "Se adotarmos o mesmo sistema econômico."
Esta amizade germano-russa era simbolizada nos anos seguintes por dois estadistas que costumavam encontrar-se, em Moscou, a certas horas e em certos lugares não comuns. Tschetscherin, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, e o Conde Brockdorff-Rantzau, o embaixador alemão, ambos gostavam de levantar-se à tarde, beber ao anoitecer e trabalhar durante a noite. Esta particularidade conservou Rantzau afastado de sua própria embaixada, onde só apareceu uma vez durante o tempo em que esteve em Moscou. Ambos homens cultos da sociedade, independentes e bem dotados, tinham recebido um violento choque com o desmembramento de seus respectivos impérios, embora ambos reconhecessem as fraquezas de ambos os soberanos e suas cortes e o russo tivesse passado para o novo Partido algum tempo antes. O conde Rantzau invariavelmente chamava Guilherme "o imperial desertor.".
Por esse tempo, dois eminentes americanos diagnosticaram corretamente o mais importante problema da época. Bullit. o falecido embaixador, já predissera a estabilidade do regime dos Soviets em 1919, depois de uma curta excursão à Rússia. Infelizmente, o relatório que fez ao Presidente Wilson durante a conferência de Versalhes não mereceu atenção. Dez anos depois, o secretário de Estado Stimson, numa exposição de motivos clássica, preveniu o governo britânico para não fornecer material bélico ao Japão, porque esse procedimento abalaria a força moral da Liga das Nações. Que trágico e irônico espetáculo ver esse preciente homem combater o Japão, hoje, com a espada em vez da pena!
Desde o começo da ditadura de Stalin, seu Estado não foi ameaçado por ninguém tanto como pelos alemães. Não obstante, como ele me afirmou, a lembrança das cordiais relações de outrora entre as duas nações ainda estava no seu coração:
"Se há uma nação para a qual nos sentimos atraídos — para todo o seu povo ou pelo menos para a maioria — é a alemã"
E como eu lhe perguntasse por que, respondeu-me: "É um fato". Tinha uma visão correta da mistura alemã de obediência e brutalidade, ambas esperando pela voz de comando. E contou-me a este respeito a seguinte anedota:
— Quando eu estava em Berlim, em 1907, tínhamos arranjado que os socialistas de toda a parte se reunissem num grande meeting. Cerca de duzentos tinham vindo dos subúrbios. Quando chegaram à saída da plataforma onde deviam ser entregues os bilhetes, o recebedor não estava lá. Nós, os russos, que estávamos entre eles, insistimos que passassem pela grade aberta, uma vez que todos tinham seus bilhetes; mas não se moveram, e parecia que esperariam ali por horas inteiras se o coletor não tivesse aparecido. Quando estive em Dresden, notei que a lei era tratada com o mesmo respeito que a geada ou o trovão, ou qualquer outra força natural contra a qual o homem não tem poder. Quando estive em Viena, em 1912, fui com meus amigos russos ao parque de Schonbrunn; notamos por toda a parte o aviso: Verboten, mas não estávamos acostumados a isso e tivemos que pagar uma multa de um Krone, por vinte vezes, pelo prazer de violarmos a lei. Nossos amigos alemães riam-se de nós pelo prazer que encontrávamos nesse divertimento. Era assim naquele tempo.
"Mas hoje? Onde está o senso alemão de ordem? Onde está o seu respeito à lei? Os nazistas violam a lei sempre que a encontram no seu caminho. Atiram e golpeiam à direita e à esquerda."
Todos os Planos Quinquenais tinham sido concebidos antecipando o ataque alemão. A mesma antecipação levou Stalin a procurar aliados no Oeste. O que está acontecendo hoje foi preparado por ele por muito tempo, embora por um caminho tortuoso e com sorte vária.
Stalin tentou por quinze anos ganhar a confiança da Inglaterra. Quando os britânicos reconheceram os Soviets em 1924, sete anos depois de sua fundação, fizeram-no com muita relutância e só porque estavam com ciúmes da concorrência alemã que conquistara o mercado russo. A influência dos grandes anti-socialistas era tão grande que, em 1926, a guerra só foi evitada devido à intervenção do grande estadista, Lord Balfour. Uma carta falsificada tornou possível o rompimento de relações por três anos. Então Stalin declarou a Inglaterra decadente — um termo aplicado por todos os revolucionários aos Estados antigos e por jovens de mentalidades modernas aos velhos. De 1924 a 1934, Stalin não podia contar com uma aliança com os ingleses contra a Alemanha. Quando Chamberlain, que considerava Hitler um escudo contra os Soviets, foi feito primeiro ministro, Stalin desistiu completamente. Viu como a Inglaterra fornecia material bélico ao Japão, depois de ter seguido uma política na Espanha que, na opinião do Deão de Canterbury, equivalia a assassinar o governo legal espanhol.
As tentativas de Stalin para ganhar as simpatias da França — o ponto onde começou o comunismo — foram mais dramáticas. A única bandeira estrangeira na Rússia Soviética é um antigo estandarte communard da Comuna de Paris em 1871, cobrindo o ataúde de Lenine. E a aliança tzarista, unindo a Rússia e a França por vinte anos contra a Alemanha, nunca fora esquecida. Em Paris, tudo parecia possível, porque a oposição interna lá era mais apaixonada do que na Inglaterra. Apesar do poder dos banqueiros de Paris, que queriam o reembolso dos seus empréstimos e exigiam um "cordon sanitaire" em volta da União dos Soviets, parecer crescer, Stalin previu com prazer que a corrupção eventualmente mataria o capitalismo francês. Então Herriot foi a Moscou e depois escreveu um livro brilhante a favor dos Soviets. As relações com a Tchecoslováquia eram ainda mais propícias.
Com a Itália, dogmaticamente o arqui-inimigo do bolchevismo, Stalin concluiu um pacto de amizade em 1933, a despeito do Papa e do Rei serem contra os Soviets ateus. Os interesses em conflito acentuaram-se por tal forma com a violenta comoção na Espanha, que Mussolini não ousou proclamar por esse tempo a nova amizade com Hitler.
Stalin teve que ser leniente com o Japão enquanto suas armas ainda estavam fracas e chegou mesmo a sacrificar a estrada de ferro do leste da China. Fez isso também para aumentar o atrito entre o Japão e os Estados Unidos. A mudança nas suas respectivas posições mostra-a o fato de que em 1932 os japoneses recusaram um pacto proposto por Stalin, enquanto que em 1940 Stalin podia recusar um pacto proposto pelo Japão. A reconstrução da Ásia Central para fins de guerra e de paz proporciona a Stalin, no Oriente, a proteção sem a qual ele hoje não poderia lutar contra a Alemanha. No entanto, deu-se a prova de força no Verão de 1938, conhecida pelo "Incidente de Chang-Ku-Feng". Essa foi uma verdadeira batalha com armas modernas "no meio de paz profunda", na qual se diz que morreram 18.000 japoneses — um número que excede o dos guerreiros que tombaram nas mais famosas batalhas da antiguidade.
Enquanto, por todos os lados, diplomatas corruptos deixavam-se levar, ora num sentido, ora noutro, pelos acontecimentos ameaçadores, Stalin fez duas coisas: entrou para a Liga das Nações e duplicou seu armamento. Assim, num só fôlego, confessou e negou um ideal — como a Liga das Nações fizera pelos últimos quinze anos. Essas reviravoltas provam o valor de um estadista. A Liga das Nações, chamada por Lenine uma reunião de ladrões e olhada por Stalin e toda a Rússia da mesma forma por oito anos, parecia agora o instrumento apropriado para dirigir-se às nações da tribuna de Genebra. Queria falar aos povos por cima das cabeças dos seus governos, como Trotsky fizera ao tempo das negociações de paz com a Alemanha. Assim esperava conseguir uma mudança nos sentimentos prevalecentes e possivelmente derribar os governos pró-nazistas de Paris e Londres.
Quando o primeiro russo apareceu em Genebra, em 1928, todos os diplomatas burgueses ficaram mortalmente assustados. Isso não foi porque um sombrio bolchevista de ascendência meio asiática ameaçava com a guerra e a revolução, mas porque um homem nada sombrio, de cultura ocidental, desapontou a todos propondo nada menos do que um desarmamento geral. Esse homem era Maxim Litvinov. Poucos anos mais velho do que Stalin, fugira de seu lar burguês aos vinte e dois anos, tornara-se revolucionário, tinha sido exilado pelo Tzar cinco vezes para a Sibéria, fugira novamente, tinha sido expulso de Paris e fizera-se professor de línguas em Amsterdã, estudara a vida e a política inglesas e casara com a filha revolucionária de uma respeitável família burguesa inglesa. Estava assim familiarizado com a cultura ocidental, mas separado de suas formas políticas. Por doze anos, conduziu virtualmente a política estrangeira de Stalin, em parte inspirando-a, frequentemente dirigindo-a. Se Stalin confia num colaborador — o que acontece raramente — não lhe regateia nem a glória nem a apreciação.
Não foi numa sessão formal da Liga e sim no meio da Conferência de Desarmamento- que Maxim Litvinov lançou seu discurso de estréia cheio de trovões, relâmpagos e ironia: uma surpresa e uma obra prima. A esse tempo a difamação do bolchevismo e a prevenção do mundo inteiro estavam no seu auge. Embora seja costume um novo membro do Parlamento conservar-se por alguns anos na penumbra escutando os outros, este intruso perturbador explodiu logo no primeiro dia com um discurso:
"Senhores, para que discutirmos mais? Trinta sessões já trataram do desarmamento, catorze comitês já se reuniram vinte vezes; já foram tomadas cento e onze resoluções. Mas que se realizou com todo esse trabalho e todas essas folhas de papel? Nada, absolutamente nada. Estamos exatamente onde estávamos antes. Porém isso precisa ter um fim."
Consternação geral. O grande Pridtjof Nansen, que ocasionalmente levara a Liga à altura que ela jamais aspirara por si própria, tinha sido o único a falar assim àqueles cautelosos diplomatas. Mas Nansen estava só. Agora, aquele russo mostrava subitamente suas cartas e propunha o desarmamento completo:
"O Governo Soviético está pronto a abolir todas as armas, caso os outros Estados tomem a mesma resolução. Portanto, perguntamos se estão dispostos a isso. Queremos uma resposta imediata, sem comitês. Nossa proposta é perfeitamente clara."
Isso foi uma maravilhosa propaganda para os proletários de todas as nações, e um choque terrível para os fabricantes de armamentos de todos os países. Quando o delegado britânico respondeu que os russos estavam fomentando a guerra civil por toda a parte, sua voz baixou até um murmúrio. Alguns anos depois Lord Londonderry estava ainda indignado com essa exigência imoral dos russos. Assim como os antigos reis gostavam de acentuar que o povo não deve ser privado de sua religião, o delegado britânico acentuava que o povo não deve ser privado de suas bombas.
Nos anos que se seguiram, Maxim Litvinov, como representante de Stalin, tornou-se cada vez mais agressivo. Ao seu lado batia-se Titulescu, fundador da Pequena Entente e uma das figuras mais ilustres do período entre as duas guerras, ajudado por seu amigo e aliado, Benes, da Tchecoslováquia. Estes dois provavam que as nações mais pequenas podiam produzir os maiores homens. Como Nansen e Briand estavam mortos, Maxim Litvinov era o homem mais poderoso entre aqueles com um desígnio moral. Mesmo em 1932, quando a Alemanha já estava se preparando para o ataque, o russo pedia a abolição de todas as armas mais destruidoras. A lista que apresentou há dez anos espanta nossa imaginação hoje; proibia: tanques, artilharia pesada, canhões de marinha de mais de doze polegadas, porta-aviões, couraçados de mais de 10.000 toneladas, bombardeiros pesados, toda a espécie de bombas aéreas, guerra química, armas aéreas de qualquer espécie.
Litvinov, embora não alcançasse resultados positivos, conquistou uma vitoria moral, para os Soviets em Genebra. Mas, se alguém supõe que seria fácil queimar esses fogos de vista que estavam destinados a estourar no ar, porque outras nações não apresentaram propostas semelhantes? Porque todas elas eram controladas pelos interesses particulares dos fabricantes de armamentos. Maxim Litvinov não recorreu a frases bíblicas patéticas, nem mencionou o cristianismo. Naquela mesa verde, sem se deixar prender pela deferência devida a todas as cortes da Europa, pronunciava livremente seus discursos num tom acre e muitas vezes mordaz.
"Os japoneses" disse ele "continuarão no mesmo rumo. Os signatários do pacto Keiiog desrespeitarão seus compromissos. A imprensa é subserviente a diversos interesses em diferentes países e também serve a grupos de capitalistas e a indivíduos em particular. Nossa concepção de garantias difere da dos outros que só falam em garantias quando são atacados. Os Soviets querem acabar com a guerra porque ela arruína ambas as partes: os vencedores e os vencidos. Depois de dez anos de discussões, ainda não começaram a compreender o que os Soviets querem."
Pouco tempo depois disse:
"Será este o momento para os delegados voltarem para suas casas convencidos de que cumpriram todo o seu dever? Agora, que uma guerra sangrenta, ou uma série de guerras sangrentas, ameaça todos os continentes e o mundo inteiro? Qual a nação que pode ter a certeza de ficar isenta? Algumas podem ser arrastadas mais cedo, outras mais tarde; mas nenhuma escapa. As nações imperialistas, visando conquistas e aumento do seu poder, invariavelmente começam por atacar um único objetivo. Mas, uma vez saciado seu apetite nessa direção, voltam-se para outros objetivos e geralmente para todos eles."
Palavras proféticas, que ninguém queria acreditar em Genebra, em 1934.
Quando Hitler deixou a Liga, no primeiro ano do seu governo, todo o povo o aclamou. Os alemães tinham-se sentido tão incomodados lá, como uma geração antes no Tribunal de Haia. Stressemann, que sacrificara a saúde para levar a Alemanha à Liga, tinha sido um conservador honesto; mas, mesmo os seus mais chegados conselheiros, pertenciam a uma classe diferente. Se a entrada da Alemanha na Liga tinha sido uma farsa, sua saída foi recebida com sincero pesar. Qualquer instituição, não reconhecendo a religião da violência, é suspeita para os alemães. O autor deste livro, que escreveu a favor da Liga já mesmo em 1917, sabe sobre o que fala.
Então, no inverno de 1933-1934, a Casa dos Delegados em Genebra involuntariamente se tornou a Casa de Deus por um momento: tornou-se o templo de Janus, no qual uma porta aberta significava guerra e uma fechada paz. Hitler saiu por uma, Stalin entrou pela outra. Esta sincronização virtual é o mais perfeito símbolo do profundo abismo entre os nazistas e os Soviets. Quando os russos entraram para a Liga, Maxim Litvinov pronunciou um dos seus clássicos discursos nem com lágrimas de alegria nem de graças:
"Um novo Estado, com um novo sistema, sempre foi sujeito a hostilidades. O velho mundo, atirando-se contra os Soviets, tentou sufocar-nos. Muitos imaginaram que a paz eterna estaria à mão se somente fosse possível livrarem-se de nós. A Liga das Nações não nos impressiona, muito especialmente porque nós próprios já somos uma Liga de 200 nações. Paz entre tantas raças dentro de uma nação é uma novidade na história, e só possível porque os Soviets não estão interessados em idéias de nacionalismo ou raciais. Que é essa tão altamente louvada organização de paz a que aspira a Liga? Slogans políticos envelhecem muito depressa. Se já têm sido repetidos por vezes demais sem se terem realizado, precisam que se lhes dê nova vida, que sejam rejuvenescidos".
Quando a questão das dívidas dos Soviets entrou na ordem do dia para uma das sessões, sugeriram que fosse eleito um "imparcial" para presidir essa reunião. Maxim Litvinov respondeu:
"Só os anjos são imparciais. Aqui estão dois mundos: o capitalista e o soviético. Poderá haver um terceiro no céu, entre os anjos. Mas receio que nenhum destes esteja ao alcance da Liga."
Começando com ironias, os russos passaram a trabalho produtivo. Litvinov criou a fórmula "paz indivisível", lutou pelas garantias coletivas, e continuamente atacava os japoneses do outro lado da mesa. Foi ele quem definiu a palavra "agressor" e obteve, conjuntamente com Titulescu, a assinatura da maioria das nações que garantiram lutar contra dito agressor. Os seguintes atos eram definidos como sendo agressões: Declaração de guerra; invasão; ataque por terra, mar ou ar; bloqueio; auxílio a bandos armados operando em países estrangeiros; recusa de ordenar o regresso desses bandos. Um ataque não podia ser justificado sob os seguintes pretextos: estrutura social ou política do Estado; simulação de má situação econômica; perturbações devidas a greves, revoluções, guerra civil; violação dos direitos de uma nação estrangeira; violação de fronteiras. Uma lista completa dos pretextos sob os quais Hitler justificou suas conquistas, seis anos depois, perante o povo alemão.
A esse tempo, cerca de 1933, o chamado período pós-guerra estava-se transformando em período pré-guerra por todo o mundo. A Liga, abandonada pelos alemães e de que a Rússia passou a participar, foi finalmente reconhecida pelos Estados Unidos, que assim fizeram uma simbólica reparação de sua primitiva defecção. Maxim Litvinov, o construtor da ponte entre a Rússia e Genebra, foi igualmente bem sucedido em Washington, onde os russos, não tendo sido reconhecidos por 16 anos, tinham estado sob um banimento moral. Hoje, dez anos depois, pôde unificar novamente os desígnios de guerra da maior potência capitalista e da maior potência anticapitalista.
Ao passo que os discursos de alguns estadistas parecem tão vazios para quem os lê hoje, que seu êxito inicial parece inconcebível, os de outros ganham, como os vinhos finos, corpo e aroma com os anos. Os discursos de Maxim Litvinov em Genebra eram menos surpreendentes alguns anos atrás, do que o são hoje.
"O governo soviético", disse ele em 1935, "opõe-se a todo o sistema de colônias, esferas de influência, ou concepções imperialistas de qualquer espécie. A Liga não '"deve ser senão uma Conferencia permanente de paz e uma advertência a todo o agressor".
Ou em outra ocasião:
"A passividade da Liga foi a causa do ataque à Abissínia. A tolerância para com este agressor animou outros para a experiência espanhola; a falta de auxílio à Espanha levou ao ataque à China; três casos em cinco anos. A intervenção resoluta num caso nos teria poupado todo o trabalho subsequente; todos teriam visto que um ataque não vale a pena."
Quando os Soviets propuseram, em 1938, acordar numa ação coletiva contra toda agressão, a Inglaterra recusou-se a assinar. E, quando os russos auxiliaram os tchecos a esse tempo, Lord Londonderry propôs que, em caso de guerra, a Inglaterra em lugar de marchar com os tchecos ficasse com Hitler. Finalmente, a última tentativa dos Soviets, em março de 1939, para evitar a guerra convocando uma conferência, foi frustrada pela Inglaterra que considerou uma tal reunião "prematura".
Prematuras aos olhos dos tories britânicos, que também determinavam a política francesa, foram todas as outras resoluções aprovadas contra Hitler ao tempo em que ele estava pronto para começar. A história tornará o governo de Chamberlain — a não ser que se queira retrogradar até seu predecessor, Baldwin — responsável pelo adiamento da atual aliança russo-britânica de 1939 para 1941. O ódio desses dois conservadores, homens de negócios, que tinham ambos entrado na política de barbas grisalhas; a natural aversão desses inveterados capitalistas — que enriqueceram com esse sistema — contra tudo que tivesse o sabor socialista, eram tão grandes que eles julgaram mal Hitler e consideraram-no o campeão na guerra contra o radicalismo.
Como num drama, esses homens de mentalidade acanhada, homens de ontem, foram eclipsados por um homem de hoje, que pode tornar-se o homem de amanhã. Por oito anos, Churchill, um membro do seu próprio partido, lutara contra esses dois líderes da política britânica com os seus discursos catonianos. Ele, que usara sua espada contra os Soviets quando os outros dois ainda estavam profundamente absortos no comércio da lã e do aço, tinha aprendido a compreender a era presente. Embora mantivesse suas idéias conservadoras — ou antes voltasse a elas —- reconheceu que, dos dois movimentos aparentemente fazendo perigar o mundo, só o alemão poderia causar um desastre geral. Por isso, Churchill, rejuvenescendo-se, trabalhou para uma aliança com a Rússia. Foi em vão que seus adversários a isso se opuseram.
Da mesma maneira nítida, os homens de mentalidade socialista em Paris separaram-se dos de mentalidade mercantilista. Mas havia duas pessoas como Bonnet e Laval — um, na sena, o outro por trás dela — que lutavam contra Blum e seu círculo. A única diferença era que os franceses iam atrás do dinheiro e os ingleses eram honestos.
As tentativas de Chamberlain para aproximar-se de Hitler, à custa dos tchecos e da paz mundial — por demais recentes e conhecidos para serem recapitulados aqui — provocaram necessariamente a acerba crítica dos Soviets.
Embora todos os espectadores compreendessem que a Inglaterra, desaparelhada como estava, tinha que ceder, era igualmente óbvio que os governos de Chamberlain e de Baldwin eram os responsáveis por esse estado de coisas e pelo fracasso da aliança russa. Baldwin chegou a ponto de não levar em conta os armamentos de Hitler. Depois, disse à Câmara que tinha sido obrigado a falar assim porque as eleições estavam próximas e de outra forma seu Partido poderia ser derrotado. No fundo, os atos desses dois homens eram motivados pelas suas idéias capitalistas. Churchill pôde adaptar seus princípios conservadores às concepções de uma esfera mais elevada. Sua visão, ao contrário da de seus dois predecessores, não era limitada por considerações de dinheiro.
O cortês rei da pequena Albânia quase resumiu o problema europeu:
"Há dois loucos na Europa que estão pondo todos malucos. Além disso, há dois "grandes idiotas, Chamberlain e Daladier, que estão dormindo."
Mas não estavam dormindo. O rumo que as coisas tomaram em Munique causaram a queda de Maxim Litvinov. Demitido por Stalin, foi posto em reserva para o futuro. Europa, Liga das Nações, guerra contra agressão, todo este programa havia fracassado e estava sendo substituído pelo que os russos denominaram "a aliança de Munique entre os fascistas e a claque imperialista de Londres e Paris". Os Estados Balcânicos também degringolaram e tiveram que se encostar mais ou menos aos fascistas vitoriosos. A Polônia, que flertou por tempo demais com Hitler, tinha um delíquio após outro. Os tchecos foram os únicos que ficaram ao lado dos russos. Stalin sentiu que estava sendo cercado pelo Japão e pela Alemanha, talvez também pela Polônia. Já três anos antes, Hitler gritara publicamente em Nuremberg:
"Se eu tivesse os Urais, a Sibéria e a Ucrânia, com seus tesouros em metais preciosos, cereais e florestas, poderíamos nadar em riqueza. Venceremos sob a suástica!" (Era uma de suas hábeis tricas omitir a palavra "os" antes de "venceremos").
Finalmente, a conquista alemã de Praga, que assustou até mesmo o Primeiro Ministro britânico, pareceu aplainar o caminho para urna aliança com a Rússia, Não só o conservador Churchill, como também Lloyd George, o velho liberal, insistiram por esse pacto, não obstante ambos esses homens terem sido inimigos dos Soviets. Foi um desesperado apelo de socorro o de Lloyd George:
"Uma aliança, um acordo, um pacto, não importa como se chame, com a Rússia, criará uma força esmagadora que a Alemanha com o seu exército não poderá enfrentar.".
Mas Chamberlain começou as negociações, a que tinha sido forçado, sem grande entusiasmo e com uma consciência pesada. Evidentemente, não desejava obter resultados. Em lugar de voar para Stalin como fizera por três vezes para Hitler, mandou um subordinado num vapor ronceiro. A viagem, que poderia ter sido feita em doze horas, levou duas semanas. Lord Halifax era também um gentleman por demais fino para levar seu chapéu alto para a terra dos bonés. As propostas britânicas, cujos detalhes nunca foram publicados, provavelmente pediam a Stalin para garantir a Polônia oriental. Então, respondeu Stalin, os nazistas marchariam contra os Estados bálticos, que não estavam protegidos por garantias inglesas. Por consequência, esses tinham de ser garantidos contra ataques alemães. As negociações se processaram tão lentamente, que Lloyd George ridicularizou publicamente a demora.
Stalin fez nova advertência em Junho por intermédio de Molotov:
"Embora estejamos negociando com o Oeste, nunca deixamos de tratar com a Alemanha e a Itália".
Bluff, disseram em Londres. Não tinha Hitler, não havia muito, chamado aos Soviets um bando de porcos sanguinários e escória do mundo? Não era o grande plano de Chamberlain desviar a Alemanha dos seus sonhos coloniais e engodá-la com a idéia da presa russa?
De repente, Stalin, o arqui-inimigo da cultura, começou a ser cortejado por ambos os lados. Por esse tempo, a gigantesca máquina de guerra alemã já tinha ressaltado aos olhos de todos. Estava ali rodando devagar, sem ruído, como um carro cujo motor foi posto em movimento e está só esperando que se ligue a marcha para partir. A Inglaterra, diante dessa máquina ameaçadora, esqueceu, finalmente, suas velhas prevenções.
"Nossos interesses naturais", disse Churchill, "unem-nos à Rússia, a Romênia, a Polônia e os Estados bálticos se sentirão mais seguros se a Rússia estiver por trás deles."
E Lloyd George acrescentou:
"Os russos serão os únicos que poderão ajudar os polacos se nós os ajudarmos ao mesmo tempo".
Palavras semelhantes foram ouvidas em Moscou. Ainda a 1 de Agosto de 1939, um jornal oficial escrevia:
"Faz 25 anos que os alemães resolveram destruir seus inimigos de um só golpe. Venceram três quartos da Europa; depois o balão esvaziou-se. Hoje, sua posição é pior. A Alemanha entra na guerra em condições econômicas precárias e será apontada por todo o mundo como a agressora".
No entanto, os nazistas, nesse ínterim, moderavam os seus vitupérios contra a Rússia, cessando-os, por fim, inteiramente. Molotov tinha estado em Berlim, tendo sido tratado cortesmente pelo arqui-inimigo. Diz-se que, depois que voltou para Moscou, o embaixador alemão entregou-lhe um presente para Stalin: discos para fonógrafo, gravados secretamente, das conversações na conferência de Munique e reproduzindo a voz de Chamberlain no momento em que incitava Hitler a atacar a Rússia. O mesmo governo britânico, que ofendera Stalin pessoalmente pelo modo como conduzira as negociações de Moscou, ofereceu ao agente alemão Woltat um empréstimo de quatro bilhões de dólares para que Hitler.pudesse armar-se um pouco mais contra a Inglaterra. Já em Maio de 1939, Chamberlain recomendou na Câmara dos Comuns um pacto com Hitler, em quem seu olhar astuto reconhecera um gentleman nos três dias de conferenciai. No dia cinco recusou um pacto com a Rússia.
Num país mais apaixonável, Chamberlain seria tratado de outro modo. O apelo para poupar um homem morto não pode ser atendido por quem quiser escrever história; todos de quem trata estão mortos. Baldwin e Chamberlain que auxiliaram Hitler — seu campeão contra os Soviets — por oito anos, são os responsáveis pelo fato de milhões de jovens americanos terem de bater-se hoje.
Stalin esteve, durante essas semanas, na situação de um solteirão de uma certa idade continuamente ameaçado por uma mulher perigosa da vizinhança que quer casar com ele e dominá-lo. Quando ele, por fim, quer ver-se livre dela, casando com outra, a noiva eleita, jactando-se de suas virtudes, em contraste com o escuro passado do pretendente, dá subitamente o fora. Este, então, convencido de que no fim será o vencedor, é forçado nesse momento crítico a cair nos braços da noiva indesejável para regularizar a situação de uma vez para sempre por meio dum casamento temporário.
Considerações de ordem prática foram um incentivo adicionai. Como poderiam os ingleses, que sempre se recusaram a fazer planos para uma campanha em conjunto, mandar tropas para a Polônia? Não teria ele, Stalin, de lutar ele próprio pelos poloneses? E por que havia de proteger a Polônia, que sempre o tratara com hostilidade? Por que haveria de fazer um pacto com a Inglaterra que o odiava e ofendia continuadamente? Por outro lado, um pacto com Hitler poderia talvez proporcionar-lhe uma paz temporária, durante a qual poderia aumentar seu armamento e fortalecer suas fronteiras. Se Hitler estivesse ocupado no Oeste, ele, como seu aliado, poderia possivelmente avançar e restaurar, sem luta, as velhas fronteiras perdidas pela Rússia na guerra mundial.
Talvez se desse o milagre de Stalin poder conservar seu país recentemente reconstruído fora da guerra, enquanto as nações capitalistas se ensanguentavam.
A 25 de Agosto de 1939, foi assinado o pacto entre Hitler e Stalin, em Moscou; não era uma aliança e sim um pacto de não-agressão. Na fotografia feita por ocasião da assinatura, Stalin está de pé, no fundo, revelando, num sorriso asiático, sua opinião sobre essa amizade. Há fotografias de casamentos em que o noivo sorri dessa maneira.
A lua de mel foi a maior farsa que a história moderna conhece. O idílio não durou só algumas semanas e sim dois anos.
"Se tiver de dar-se uma ruptura" escreveu Max Werner no seu livro profético A Batalha pelo Mundo "ambas as partes poderão escolher o momento oportuno."
Hitler aproveitou tanto com esse arranjo temporário quanto Stalin. Como os dois tinham concordado nesse pacto com a intenção de enganar um ao outro, foi basicamente um contrato honesto.
Hitler, ao passo que desprezava as lições positivas de Bismarck, guardava só uma coisa negativa do seu grande predecessor: o medo de uma guerra em duas frentes. Guardará também o preceito de não combater a Inglaterra em hipótese alguma, o que confirmou no seu livro. (Não se deve acreditar na história de que esse livro foi escrito por outra pessoa; nenhum outro alemão poderia ter assassinado assim sua língua.) Portanto, Hitler, concluindo esse pacto, estava no caminho certo e podia ter vencido se o mantivesse. A única desvantagem foi ter deixado de ser S. Jorge matando o dragão bolchevista em proveito de todos os homens decentes.
No curto período que durou esse idílio, os recém-casados cumularam-se reciprocamente de presentes. Hitler que, de súbito, queria impressionar o mundo com o poder desses mesmos Soviets, que amesquinhara pouco antes, anunciou que a chegada de certos abastecimentos mandados por mar de Leningrado para Kiel, queriam dizer mais "do que uma batalha vitoriosa; queriam dizer vitória". Stalin por sua, vez aproveitou ainda mais quando invadiu a Polônia e dilatou suas fronteiras para o oeste, quase sem lutar. Depois das atrocidades nazistas, foi fácil aos Vermelhos assumirem o papel de salvadores. Por toda a parte: no Bug, no San, Stalin melhorou suas fronteiras para melhor resistir ao seu amigo no futuro.
Mas o grande benefício resultante para o mundo e para a vitória aliada, do pacto de Stalin, foi divulgado pelo próprio Hitler. Mais tarde, nos seus discursos de 23 de Junho de 1941, Hitler e Ribbentrop disseram que foi Stalin quem evitou um ataque à Inglaterra no Outono de 1940: os perversos russos, gritou Hitler no seu costumado modo choramingão, tinham ocupado a Bessarábia, levantando assim os Bálcãs contra a Alemanha. Sim, o próprio Hitler confessou, na sua declaração de guerra, que não podia atacar a Inglaterra, estando ameaçado pela retaguarda pelos exércitos russos. Só isto seria suficiente para justificar os agradecimentos de todos os adversários de Hitler — em outras palavras, da maioria da humanidade — a Stalin.
Presumivelmente, tanto Stalin como Hitler leram os relatórios dos seus Estados Maiores sobre os preparativos nas zonas das novas fronteiras conquistadas pelos seus respectivos países com frígidos e obstinados sorrisos. Se Hitler tinha feito reparar as vias férreas na Polônia, Stalin compreendeu que seu inimigo-amigo preparava-as para usá-las no futuro contra ele. Se Stalin pedia mais terras nos montes Carpatos, ou simplesmente as tomava, Hitler compreendia que essas anexações visavam impedir seu futuro ataque. Possivelmente, ambos empalideceram olhando para o novo mapa: agora, pela primeira vez, esses dois gigantes exércitos e nações estavam diante um do outro — sem um pára-choque de permeio — do Báltico ao Mar Negro. Pareciam dois equilibristas de corda que, atirando e apanhando bolas, avançassem um para o outro pela mesma corda sem saber, qual dos dois sairia do caminho. Os únicos que ousavam sorrir nessa situação eram os cinco jornalistas alemães que apareceram em Moscou depois de, por dez anos, terem recebido ordem do seu Fuehrer para maltratar a Rússia mais eficazmente cuspindo-lhe em cima.
Mas as leis da ditadura impelem mais e mais para a frente os vencedores, mesmo para mais longe do que querem ir. A ilimitada ambição de Hitler impeliu-o — num momento em que não estava sendo ameaçado por Stalin — a atacar o outro. Ninguém o forçou a isso, e menos do que todos o povo alemão. Nisto está o seu único ponto de semelhança com Napoleão, com quem não se pode comparar em nenhum outro aspecto de caráter, vida e atividades. A única coisa que ambos têm de comum é essa necessidade fatal. Em 1812, também o Imperador podia ter ficado quieto em casa e governado em paz, se a ambição demoníaca original, que considera a paz como um equivalente à derrota, não o tivesse impelido. Nem a fome, nem uma ameaça ou exigência do povo impeliram Hitler contra a Rússia. Foi só esse demônio. Embora frisando no seu livro o enorme perigo de uma guerra em duas frentes, empreendeu deliberadamente a campanha que iria ser a causa do seu colapso.
As razões que garantem a vitória de Stalin consistem, na sua maioria, em fatores morais.
O aproveitamento recente dos recursos naturais do país é responsável só pela metade do seu êxito; a outra metade deve ser levada a crédito do novo Estado. Stalin não poderia ter erigido suas fábricas de tanques e aviões, não poderia ter produzido seus oficiais competentes, não poderia ter tido nenhum êxito moral nem material sem a cooperação entusiástica de uma mocidade liberada. Se excetuarmos os bombardeios de Londres, não encontraremos um exemplo igual de união do exército e do povo nos nossos tempos. Uma comparação com os alemães torna isso muito claro.
Os alemães marcharam para conquistar aquilo de que não precisam; os russos querem salvar aquilo de que precisam. Os alemães marcharam para ganhar o domínio do mundo para uma raça de cuja superioridade duvidam no seu íntimo; os russos querem manter um sistema de governo em que acreditam. Os alemães marcharam visando uma vitória pelo mesmo sistema autoritário que os levou à derrota há vinte e cinco anos. Os russos querem ratificar para eles e para o mundo uma nova forma de governo. Os alemães, para quem a obediência é uma paixão, são um povo antigo de guerreiros que marcha cegamente para onde quer que seus líderes ordenem; os russos estão protegendo seu solo natal que eles próprios só recentemente conquistaram.
Os alemães batem-se com exércitos regulares em climas e solos estrangeiros; os russos, guerrilheiros e regulares igualmente, lutam num terreno que lhes é familiar e sob condições que lhes são igualmente familiares. Os alemães mantêm-se unidos pela disciplina e só pela disciplina, porque nunca foram inimigos da Rússia; os russos têm estado preparando-se com a máxima dedicação. Os alemães obedecem como seus pais obedeceram e seus generais de hoje terão os mesmos nomes aristocratas que os Junkers que chefiaram os exércitos imperiais; os russos são comandados por homens que são todos filhos de operários e camponeses.
O líder russo é um general que recebeu a mais alta condecoração militar de Lenine em 1919, com o seguinte testemunho:
"Num momento de grande perigo, perto de Krassnaja, Joseph Stalin, com a sua incansável energia, salvou o vacilante Exército Vermelho. Batendo-se ele próprio na primeira linha, inspirou os soldados com o seu exemplo".
O líder alemão é também um general, embora não tivesse chegado a sargento em quatro anos de guerra, e nada conste sobre seus atos heróicos no seu grosso livro, a não-ser a história do seu regimento antes de fazer parte dele.
Não será a força e o número dos tanques ou aviões que decidirá a guerra. A antiga obediência prussiana poderá talvez bastar para a conquista da Europa; mas não bastará para dominá-la por fim. Isto explica por que os alemães não derrotarão a Rússia.
A aliança da Rússia e da América não é absolutamente artificial, nem determinada pela necessidade; o seu longo afastamento é que era artificial.
Ao passo que as duas nações, tão distantes uma da outra, têm poucas oportunidades de contacto, a natureza uniu-as simbolicamente de modo surpreendente: tudo o que falta a uma para misteres de guerra, a outra tem. Manganês, cromo, potassa e mercúrio, que faltam na América, pode-se obter na União dos Soviets. E esta recebe da América o cobre que lhe falta. As regiões cultivadas em ambos os países estão quase na mesma proporção em relação ao número de habitantes: 367 milhões de acres na União dos Soviets, 327 nos Estados Unidos, número que corresponde aproximadamente à proporção: 182 para 132 milhões.
Por outro lado, o padrão de vida é inteiramente diferente. A produção na América é dez vezes maior por cabeça do que na Rússia. A produção de metais na União dos Soviets não chega a ser nem um terço por cabeça do que vem sendo nos Estados Unidos há muito tempo. A produção de hulha na União Soviética é só 7% da produção mundial, enquanto que na América alcança 88%. A Marinha Mercante dos Soviets, antes da guerra, representava 1/2% da tonelagem mundial; a da América, 22%. Mas ambos os países têm mais espaço disponível do que todos os outros países do mundo. Enquanto que a União dos Soviets têm 11 e a América 41 habitantes por milha quadrada, a Alemanha tem 363 e a Inglaterra 668.
Nenhum russo jamais manifestou maiores simpatias pelos Estados Unidos do que Stalin, que escreveu:
"Se Leninismo é uma escola, o estudo de teoria e prática é caracterizado por duas peculiaridades que vêm a ser: zelo revolucionário, inspirado pelo espírito russo e prática comercial, inspirada pelo espírito americano. O zelo revolucionário é o antídoto da preguiça, rotinismo, conservantismo, apatia de idéias, apego eslavo às tradições e às crenças de nossos antepassados. Zelo revolucionário é uma força vivificante que estimula a mente, incita a ação, atira o que está gasto no limbo das coisas esquecidas e abre as portas do futuro.. Sem esse zelo, não pode haver avanço. Mas há um lado negativo, uma vez que na prática tende a expandir-se em linguagem revolucionária; a não ser que seja intimamente combinado com equilíbrio mental e ação comercial imbuída do espírito americano.
"O melhor antídoto para fantasias revolucionárias é o trabalho prático imbuído do espírito americano. Esse esforço comercial prático é uma força inesgotável, uma força que não reconhece obstáculos, que por mero senso comum põe de lado tudo o que possa impedir o progresso, que invariavelmente leva uma coisa até ao fim uma vez resolvido a fazê-lo (mesmo se o negócio possa parecer de pouca monta), uma força sem a qual todo o trabalho genuíno de reconstrução se torna impossível.
"Mas o espírito prático, comerciai, americano está sujeito a degenerar em comercialismo mesquinho, sem elevação nem princípios, se não estiver aliado ao zelo revolucionário. No Partido e no governo, uma combinação do zelo revolucionário russo e do espírito prático americano constitui a essência do Leninismo."
Para poder compreender esta asserção mais claramente, perguntei a Stalin como era possível que a nação mais capitalista do mundo fosse tão admirada peia sua antítese, o Estado socialista.
Sem hesitar um momento, Stalin deu uma excelente resposta:
— O senhor está exagerando. Aqui não há uma admiração geral por tudo o que é americano. Há só uma admiração peio senso prático americano em tudo, na indústria, na literatura e nos negócios, mas nunca esquecemos que é um país capitalista. É um povo são ou peio menos há muita gente sã por lá; de mente sã e corpo são; sã na sua atitude para com o trabalho e para com os fatos de todos os dias. O lado prático comerciai da vida americana e a sua simplicidade merecem a nossa simpatia. A despeito do seu caráter capitalista, os costumes em voga na vida industrial e econômica na América são mais democráticos do que em qualquer país europeu, porque na Europa a influência da aristocracia ainda não foi eliminada."
— Talvez não saiba quanto isso é verdadeiro... — observei a meia voz, mas o intérprete ouviu-me e traduziu para Stalin.
— Sei sim — respondeu ele —. Embora o sistema feudal de governo tenha sido extinto em muitos países europeus, o espírito do feudalismo ainda perdura e é muito forte. Muitos técnicos e especialistas, vindos dos remanescentes aristocratas, mantêm as tradições de sua origem. Isso não se pode dizer da América. É um país de colonos, sem uma fidalguia presa à terra ou aristocracia; daí a persistência de seus costumes simples. Na indústria e no comércio são simples e os nossos operários, que se tornaram líderes de indústria aqui, notam isso imediatamente quando vão para a América. Lá é difícil distinguir entre o engenheiro e o simples operário quando estão trabalhando."
Stalin formulara assim, com simplicidade e segurança, o paralelo entre essas duas nações inteiramente diferentes: Estados Unidos e Rússia.
Quando o visitei, em 1931, ele não tinha motivos para manifestar essa simpatia. Isso foi antes dos Estados Unidos terem reconhecido os Soviets. Nesse tempo ele não era o "Homem do Destino".
Hoje ele ganhou esse título. Contudo, mesmo então, sua vida fecunda estava absorta em tanta atividade que duvidei sobre se aquele homem, com o seu realismo, suas colunas de algarismos e porcentagens, acreditava no destino.
— Crê no destino? — perguntei-lhe.
Ele ficou muito sério. Voltou-se para min, olhou-me de frente e, depois de uma pausa tensa, respondeu-me:
— Não. Não creio no destino. Isso é simplesmente uma superstição. Uma idéia absurda. — Riu-se ao seu modo surdo e disse em alemão: — Schicksal! Schicksal! [Destino! Destino!]
— depois voltou à sua própria língua acrescentando:
— Era exatamente o que acontecia com os gregos. Tinham seus deuses é deusas que dirigiam tudo de cima.
— O senhor já passou por cem perigou — disse-lhe —, quando foi banido e exilado, em revoluções e em guerras. Será por mero acidente que não tenha sido morto e que não seja um outro que esteja no seu lugar hoje?
Ficou um pouco aborrecido, mas só por um momento. Depois disse em voz clara e ressoante:
— Não foi acidente. Provavelmente houve causas de dentro e de fora que, evitaram minha morte. Mas podia ter acontecido, por acidente, que outro que não eu estivesse sentado aqui.
E como se quisesse sair dessa densa e incômoda nuvem e voltar à sua clareza hegeliana, acrescentou:
— O destino é contrário à lei, às leis naturais. É algo místico. E nessa coisa mística eu não creio. Nasalmente houve causas, motivos pelos quais me livrei de todos esses perigos. Não podia ter sido por mero acidente.
Schicksal! (Destinoí) O eco dessa expressiva palavra alemã ainda me ressoava nos ouvidos quando nos sentamos no auto que nos esperava.
Naquela cidade, os Tzares tinham vivido e governado, às vezes de posse de um poder que não tinham alcançado por meios naturais. E ali tinham encontrado a morte. Tudo em volta de nós tinha um brilho sinistro no lusco-fusco — sinistro e ameaçador.
E, ali, o filho do camponês georgiano ria-se, como desafiando, ao ser mencionada a palavra Destino. A fileira de canhões no pátio externo refletia a luz da tarde com um brilho baço. Mas no bocel de cada peça brilhava a letra N de ouro em relevo — a inscrição que um pequeno caporal de uma ilha estéril ousara incrustar na boca da Morte: "Que tendes árida que fazer com o Destino?" — perguntou Napoleão a Goethe — "A política é o DESTINO."
Inclusão | 18/05/2011 |
Última atualização | 08/04/2016 |