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Capítulo V — O Colonizador
Joseph Stalin é um pioneiro. É o maior colonizador da nossa era. Se compararmos resultados e não métodos, é quem está mais próximo dos grandes pioneiros da América.
Mas, para os russos, isso foi ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Foi mais fácil porque para a América foram homens e mulheres de terras estrangeiras; começaram desbravando as florestas virgens, descobrindo os depósitos inexplorados de metais e desvendando os tesouros de recursos naturais. Cada pioneiro era um descobridor em miniatura. Ao contrário disto, Stalin e os russos não tinham nada que descobrir. Tinham diante deles uma terra que tinha sido estudada por séculos; uma terra que tinha ficado atrasada e não se tinha desenvolvido somente devido a uma ordem social antiquada e à preguiça e arrogância de uma pequena classe dominante.
Por outro lado, era mais difícil para os russos porque sua luta com os antigos donos — a guerra civil — foi mais dispendiosa do que a dos americanos com os índios. Por três anos foi movida contra eles uma guerra do exterior, e por outros dez anos viveram sob a ameaça de guerra e tudo isto no momento em que procuravam implantar um novo sistema, sujeito a constantes experiências e mudanças. O que está acontecendo hoje na Rússia é a auto-defesa de pioneiros, vinte anos depois de sua primeira conquista, ao passo que a América teve quase cem anos para se desenvolver antes que sobreviessem duas guerras. Daí o ritmo apressado, febril, com que os russos tiveram de desenvolver seu país. A tecnologia moderna não exigia esse ritmo; só o que fez foi torná-lo mais fácil.
Por que é que, a despeito de tudo, a história não destaca nenhum nome como o líder, o gênio dirigente dos pioneiros americanos antes de 1770? A resposta é: porque na América tudo dependeu da iniciativa individual e a comunidade só surgiu quando uma nova área tinha sido desbravada e construída. As lendas, as canções e os quadros da América, com poucas exceções, referem-se só ao pioneiro desconhecido e não a nenhum homem que tenha pensado em tudo antecipadamente.
Não há um homem que represente uma idéia central de colonização. O tempo, a localidade e as circunstâncias pediam e permitiam unicamente um desenvolvimento impessoal lento. Aquela era, que não conhecia a palavra coletivismo, desenvolveu um dos dois países mais ricos do mundo, coletiva, voluntariamente sem ordens e sem plano.
No outro dos dois países mais ricos do mundo, a riqueza nacional desenvolveu-se sob a ditadura de uma classe que era simultânea com a de um único homem. Daí o paradoxo de que na Rússia, onde 180.000.000 de seres humanos pareciam governarem-se a si próprios e desfrutarem toda a espécie de liberdade, fora na verdade um pequeno grupo de homens que concebera um plano e o estendera como uma grande rede por todo o país. Os recursos naturais da América estavam inteiramente livres ao alcance individual; quanto aos da Rússia havia completa ausência dessa liberdade. A América cresceu como uma árvore; a Rússia foi construída como uma máquina e tem um engenheiro que desenhou essa máquina.
É óbvio que ele nem a inventou nem a construiu só. Conversando comigo, Stalin afastou peremptoriamente a idéia de que pretendesse ter sido o descobridor da reconstrução da Rússia. Mas um povo que acabava de despertar e que, no momento mesmo em que acordava, tinha recebido um rude choque, tinha que proporcionar-se um ídolo, um semideus, especialmente tendo sido Deus obliterado do quadro. Uma vez que este homem pôde concentrar em si todo o poder, seria possível canalizar a reverência de todo o povo para um só nome.
Na realidade, Stalin herdou o seu plano de Lenine. Se a sua máquina de propaganda o nega, ele não. Lenine queria um plano de quinze anos para a eletrificação de toda a Rússia Soviética e mandou organizá-lo. Este foi o alicerce, segundo a famosa frase de Lenine:
"Comunismo é o Estado Soviético mais eletrificação".
E, de fato, levou quinze anos para ser executado, porém enormemente acrescido.
Pergunta-se: quem realizou esse grande trabalho, quem despertou a sexta parte da humanidade e transformou o povo mais atrasado do mundo no mais moderno? Grite-se esta pergunta no meio da floresta e espere-se a resposta! Uma só palavra será o eco: Necessidade! Nem a dogmática vontade de alguns sonhadores que queriam pôr em prática a doutrina de seu profeta; nem Marx e Lenine, que foram apresentados ao mundo burguês por muito tempo como fanáticos obstinados, foram os pais do ressurgimento russo. A necessidade e o perigo salvaram esta parte do mundo abalando-a até as profundezas. Só este considerando deveria ensinar, ao Velho Mundo, assustado, que a mesma coisa nunca se repetirá num país florescente. Mas, se a corrente socialista tem hoje esperança de que o crescente empobrecimento das classes inferiores venha a forçar a implantação da justiça social, então ele faz da necessidade uma vaidade.
Fome e guerra, o perigo de fome e guerra novamente, forçaram a União Soviética, no começo, a transferir a tarefa de planejar todo o sistema econômico para um Estado todo poderoso. Foi a fome de 1919 e 1920 que compeliu o novo governo soviético a iniciar a luta contra os camponeses ricos (kulaks) que queriam reter seu trigo e sonhavam, no meio do desastre, com negócios fáceis. Assim, quatro mil propriedades agrícolas do Estado e quinze mil coletivas foram fundadas obrigatoriamente nos primeiros três anos e a colheita subiu de duas para cinco milhões de toneladas. Mas isso era só um começo titubeante, sem um largo programa.
Estas foram as medidas rápidas e enérgicas tomadas por um líder em desespero, que queria debelar a qualquer preço a primeira crise vital do país. Lenine parecia um médico tentando salvar um recém-nascido, uma criança quase à morte, por meios drásticos, arriscando-se que esses meios a matassem. Se fosse bem sucedido, a mãe o adoraria como a um salvador; se fracassasse, seria acusado de assassínio. Todo o mundo burguês tinha esperança de que a criança morresse.
Mas, depois que passou o pior, os elementos ameaçadores de fome e de guerra foram substituídos pelos planos sistemáticos de intelectos vigorosos. A vontade tomou o lugar do destino, o método o do caos. Depois, Lenine tornou-se a cabeça pensante de uma reforma que, hoje, vinte anos depois, parece exemplar para milhões de trabalhadores em países estrangeiros. Esse homem pequeno, com o crânio calvo de eslavo, maxilas firmes, olhar astuto e bom; esse pensador e lutador desconhecido que acabava de voltar para a Rússia, simplesmente resolveu acordar e transformar, num Estado industrial e agrário, um Estado agrário adormecido.
Seu mestre, Marx, escrevera que o socialismo seria fundado sobre a eletricidade; uma maravilhosa antecipação numa época em que a energia elétrica estava nos seus primórdios. Lenine chamou a essa empresa: eletrificação. É interessante analisar seu pensamento. Em 1920, ele escreveu o seguinte a um camarada, numa carta particular:
"Não poderia você traçar um plano — não técnico e sim político — que o proletário pudesse entender? Talvez em dez anos (ou em cinco) pudéssemos construir 20 (30 ou 50?) estações de energia que cobririam todo o país com uma rede de estações, cada uma delas com um raio de, vamos dizer, 400 werst (ou 200, se isto for só o que pudermos obter). Precisamos de um plano assim para mostrar às massas um projeto que seja facilmente compreendido e para o qual elas possam trabalhar. E em dez (ou vinte) anos teremos eletrificado completamente a Rússia: tanto a sua indústria como a sua agricultura."
Que valor tem esta carta! Não é tão bela quanto o primeiro esboço de Miguel Ângelo para a cúpula de S. Pedro? Simplicidade, improviso, desenho ousado, exigências de grandes proporções! Este mestre também não viu a cúpula acabada.
Pouco depois, Lenine reuniu cerca de mil homens, peritos de todos os países em todas as substâncias e metais, jazidas minerais, máquinas, cereais, animais domésticos. Reuniu geólogos, eletricistas, técnicos, hidrologistas, químicos, físicos, industriais, professores, sociólogos e fez-lhes três perguntas: Qual a riqueza da União Soviética — incluindo a Europa e a Ásia — em materiais, força hidráulica, flora e fauna nativos? Onde devem ser montadas novas indústrias e como devem ser distribuídas? Como poderiam o proletário, o operário sem instrução e o camponês, ser educados para o trabalho técnico? Esperava ter a resposta dentro de três meses.
Os peritos queriam dez, mas mesmo esse primeiro passo contem uma indizível mágica. Representa, como os cálculos de um planeta ainda invisível, o mais belo instante de um grande momento. Já então o povo todo era chamado a participar do trabalho. Todos tinham que dar informações. Nunca um empreendimento científico tinha sido conduzido de um modo tão popular. Por fim, esse corpo presenteou o país com um livro, um Plano de Eletrificação contendo todas as respostas.
"Acabo agora de ler o livro", escreveu Stalin a Lenine louvando o plano. Imediatamente acrescentou um remoque para Trotsky, que preparara um plano diferente:
"Trotsky é um artífice da Idade Média, que se julga um herói de Ibsen tendo recebido um apelo, segundo a velha lenda, para salvar a Rússia."
Depois desta malícia — também interessante como estilo — propôs a Lenine:
"1. Não perder nem um minuto com discussões; 2. Começar imediatamente a execução prática; 3. Destinar um terço dos nossos operários para esse trabalho, e o resto para as necessidades comuns; 4. Chamar homens práticos que saibam trabalhar em dados definidos; 5. Aumentar a propaganda na imprensa; 6. Inutilizar todos os planos anteriores."
Sistemático, enérgico, sem sentimentalismo, ao modo típico de Stalin. Que ele quer servir o presente e o futuro na razão de dois para um é quase mais do que o que se poderia prescrever a jovens reformadores.
Mas houve um contratempo inesperado: imediatamente depois do desenho ficar concluído, rebentou a revolta em Kronstadt. As potências ocidentais ameaçaram o país novamente. A Revolução mundial, — especialmente a da Alemanha — deixou de materializar-se. Lenine liquidou rapidamente a nova situação realizando o que se poderia chamar uma obra prima: Aliou-se, por um certo período de transição, com o seu inimigo, o capitalismo e introduziu a chamada "N.E.P." (Nova Economia Política). O velho mundo ridicularizou o novo. Parecia que toda a magia se evaporara no ar.
Quando Stalin, depois de derribar Trotsky, praticamente se tornou ditador, a primeira coisa que fez foi combinar o plano de Trotsky com o de Lenine. Chamou a isso "Plano Quinquenal". O que Lenine pedira em 1920 falando na Ópera de Moscou e que o Ocidente pusera de lado com o qualificativo jocoso de "Electro-Visão" foi inaugurado em 1928 pelo seu discípulo e sucessor: Stalin. Os preciosos oito anos entre as duas datas tiveram de ser sacrificados às batalhas contra o velho mundo invasor, depois contra as velhas forças do mundo novo — os camponeses ricos — e ao mesmo tempo à luta entre os líderes do Partido. O terço do trabalho, que Stalin queria destinar ao futuro, só ficou disponível quando ele foi o único a governar. Assim, o maior empreendimento técnico de nossa época começou e ficou concluído sob o terrorismo de uma ditadura.
Portanto, a Stalin pertence o mérito de ter, no decurso de uma década, erguido o maior país do mundo e o mais rico em recursos naturais, da condição de um Estado atrasado de camponeses à de um Estado industrial, e de ter ao mesmo tempo reformado sua agricultura pelos métodos americanos e levado a cultura, a educação a ciência e, acima de tudo, a possibilidade de consegui-las, literalmente a cada uma de todas as suas choupanas. Que Stalin tenha conseguido isso numa base socialista não é devido a nenhuma descoberta sua, ou de Lenine, ou de Marx: é apenas uma das mais vivas manifestações de desenvolvimento natural que pode ser observada em todos os países em várias épocas e por várias formas.
As sutis distinções entre socialismo e comunismo, que hoje se tornaram um jogo de salão para eruditos e políticos, têm tido sua contra-partida sempre que o mundo se inclina em direção ao radicalismo. Quando as circunstâncias tornam compulsória uma mudança num banco, numa sociedade anônima ou numa instituição nacional, o pessoal antigo tem sempre menos medo de fatos do que de nomes. Há vinte anos, alguém começou a espalhar a velha fábula de que o socialismo quer dizer a propriedade em comum para todos e de tudo — mulheres inclusive — e que sob o regime socialista todo idiota ou preguiçoso ganharia tanto como uma pessoa bem dotada e trabalhadora. Em resultado, encontram-se hoje pessoas que são favoráveis à nacionalização de tudo o que é de utilidade pública, mas que recuam diante de um qualificativo que no seu sentido já foi adotado por todos os países em guerra. Enquanto que o "Comunismo de guerra" de Lenine, há muito que se modificou para um Estado com princípios socialistas, a guerra apressou a direção da economia nacional nas democracias. As duas evoluções estão convergindo. Não existe mais hoje a economia sem plano.
Nem Stalin nem Lenine inventaram a economia dirigida. Dois alemães inventaram-na, como dois outros alemães, Marx e Engels, expuseram pela primeira vez a sua teoria geral. Em ambos os casos, um era judeu e o outro não. Todos quatro foram considerados desequilibrados mentais ou criminosos pela Alemanha oficial: entre 1870 e 1910, foram objeto de riso, sentenciados e exilados. É geralmente conhecida a história dos dois emigrantes alemães, Marx e Engels e de como gritaram, do solo inglês, seu histórico prognóstico aparentemente em vão. Eram, como seus dois sucessores, discípulos do filósofo, alemão Hegel, que pode ser chamado ainda hoje o filósofo mais moderno, mais de cem anos depois do seu tempo. Influenciou os estadistas do século XX como Machiavel os do século XVI. Como ele afrontava o Estado e adorava o poder, é citado por Mussolini de um lado e por Stalin do outro, com reverência.
Ballod é menos conhecido. Era um professor a quem permitiam fazer conferências sobre economia na Universidade de Berlim, mas geralmente desconhecido. Um homem esquisito, obstinado, independente — ex-padre e geógrafo — que escreveu seu livro, O Estado do Futuro, em 1898. Como quase ninguém o leu, e os poucos leitores não lhe deram importância por causa de sua atitude prussiana, sorrisos em vez de castigo foi o que lhe coube por sorte. Mas vivia lá um emigrante russo desconhecido, Lenine, que conhecia muito bem o alemão; esse homem ficou fascinado pelo livro, mandou imprimi-lo na Rússia em 1906 e reimprimir diversas vezes depois da Revolução. Porque nele, tudo que Marx e Lenine queriam empregar para construir uma nova sociedade, se pedia de um modo racional para bem do Estado, mas conforme um ponto de vista estritamente nacional, com obediência e comando prussianos: todos os meios de produção e comércio estrangeiro ficariam a cargo desse Estado do futuro, e a vida econômica em todas as suas modalidades seria regulada pelo governo.
Quando Lenine concebeu em 1921 o plano de eletrificação da Rússia, escreveu que se devia olhar para a Alemanha:
"Lá, Ballod propôs a mesma coisa, porém ficou sendo o sonho de um só homem. Passemos essa idéia ao Estado, chamemos centenas de especialistas e receberemos um plano econômico sobre base científica, dentro de dez meses."
Ballod, sendo por demais alemão para sequer desejar a realização de seu sonho, viveu para ver Lenine, mas não se mexeu, porque o mundo considerou os bolchevistas como demônios encarnados.
No entanto, um outro cidadão de Berlim tinha, antes da guerra, publicado um esboço da mesma idéia, mas num estilo lúcido e sedutor. Esse cidadão era Walter Rathenau, um judeu alemão muito talentoso. Quando, mais tarde, a República de Weimar o nomeou Ministro dos Negócios Estrangeiros, foi um homem perdido, porque, mesmo antes de Hitler, os alemães não toleravam um judeu numa posição influente. Os nazistas assassinaram Rathenau, e mais tarde Hitler mandou erigir um monumento em memória dos assassinos no lugar onde se suicidaram quando fugiam à prisão. Outros participantes do crime, que conseguiram escapar, foram nomeados depois para cargos elevados pelo gangster líder. Walter Rathenau foi um dos inventores da economia dirigida que depois do seu tempo tem sido adotada por todos os ditadores e por todos os países democratas. Está sendo aplicada numa variedade de formas em cinco ou oito capitais do mundo. Depois da guerra, cada nação escolherá a sua forma de governo de acordo com o seu caráter e história, mas nenhuma poderá voltar inteiramente ao sistema de economia privada.
O Estado socialista pôde tornar-se o mais moderno de todos os países precisamente porque tinha sido o mais atrasado. Na pequena aldeia suíça onde passei a maior parte de minha vida, a luz elétrica veio imediatamente depois do candeeiro de petróleo; também a Rússia, pode-se dizer que saltou por cima da iluminação a gás.
Stalin forçou a transformação da Rússia exatamente do mesmo modo que Pedro o Grande. Quando, por esse motivo, lhe perguntei se se sentia como sucessor deste, negou peremptoriamente.
— Esses paralelos históricos são sempre perigosos. Mas se insiste nele, só posso dizer-lhe o seguinte: Pedro, — omitiu propositadamente "o grande" — só fez trazer uma pedra para o templo; Lenine foi quem o construiu. Mas eu sou apenas um discípulo de Lenine e o meu maior desejo é ser conhecido como seu digno sucessor.
Quando um ditador toma essa atitude humilde pode-se ter a certeza de que qualquer coisa não está certo. Que esse veredito de Stalin era falso objetivamente e insincero, ficou provado depois, quando mandou exibir o filme Pedro o Grande: a escala e o estilo eram em linhas tão magnificentes que o paralelo não podia escapar. Pedro chamou o povo de massa maleável. Nesse sentido ele, como Stalin, assemelhavam-se a Péricles, que era também um democrata contrafeito e um autocrata na realidade.
Stalin podia mesmo ter obtido alguma vantagem apontando a diferença específica entre a missão colonizadora de Pedro e a dele. Ambos começaram como ditadores. Mas, com o correr dos anos, surgiu um novo fator. Enquanto os camponeses combatiam a nova reconstrução (os ricos furiosa, os pobres passivamente) surgiu entre os operários, e especialmente entre os moços, um genuíno entusiasmo; e só isso coroaria a obra de Stalin com tão brilhantes resultados. Quando o Plano Quinquenal estava na maioria das fábricas, empreenderam realizá-lo em quatro anos. De fato conseguiram completar 93,7 por cento dele em quatro anos e um quarto.
Quando os adversários falam em propaganda, é o caso de perguntar qual o movimento nacional que já foi levado a efeito sem propaganda? Péricles manejava com os seus leitores, os trabalhadores do porto, para sua reeleição anual, com a mesma perícia que Cesar. Stalin teve um trabalho muito mais difícil, porque o país não estava ainda desenvolvido. Quando veio a fome em 1931 o mundo inteiro julgou que o Plano estava prestes a fracassar e o regime bolchevista com ele. Contemporâneos em todo o mundo discutiam se a tremenda experiência justificava o sacrifício, e se a fome não era o resultado dela.
A história da Rússia está cheia de fomes que só em parte foram devidas a colheitas falhas. Aqueles que consideram o Estado Socialista uma inovação desnecessária, e crêem que poderiam ter-se arranjado com os métodos conservadores, condenarão o regime de Stalin, porque não há dúvida que partilhou da responsabilidade da fome que resultou da resistência dos camponeses.
Mas Stalin não tinha como escolher. Desde o começo de sua ditadura — o que quer dizer desde quando Trotsky foi exilado e eliminados os demais líderes da oposição — um terrível perigo pairava como um incubo sobre o novo Estado: a guerra com a Alemanha. Stalin que, ao contrário de Lenine e de Trotsky, nunca acreditou na iminência da revolução mundial, compreendia o caráter profundamente anti-revolucionário dos alemães.
Era sob essa forte pressão que a Rússia tinha de ser transformada num país rico pelos seus novos colonizadores. Nunca uma empresa tão portentosa foi levada a efeito sob condições tão perigosas. Além do mais, 150.000.000 de auxiliares tinham que ser alimentados ou apaziguados enquanto os trabalhos estivessem em andamento. Para começar, não havia nada pronto, e as estatísticas revelam que em muitos ramos a produção em 1928 não era maior do que a do tempo do regime tzarista. A tal ponto a guerra civil, como também a primeira experiência socialista, combaliram o país.
Se Stalin queria livrar o socialismo e a Rússia da ameaça de guerra, seu primeiro trabalho deveria ser prover-se de armamentos modernos. Isso dependia do carvão, do ferro e de outras matérias primas, todas podendo ser encontradas no seu próprio solo. Em recursos naturais o país é, de fato, mais rico do que os Estados Unidos em força hidráulica, e tem também abundância de todos os requisitos necessários à eletrificação. Transformar esses tesouros naturais, em fábricas de aço, montar fábricas que servissem aos propósitos bélicos primeiro e à paz depois, teria requerido um século numa era menos científica.
O problema mais importante era aproximar homens e jazidas minerais, fundir geologia com etnologia. Em lugar de desenhar dois mapas, geológico e político, separadamente, como se fazia antes, idealizou-se uma nova espécie de mapa. A ordem política foi subordinada, à riqueza natural do país, não só de um modo geral — zonas de cereais, pastagens, carboníferas — como também nos detalhes. A ciência tornou-se ditador. O fanatismo espiritual com que a ciência foi exaltada não tem precedente na história do mundo.
Os Tzares não tinham tocado nas riquezas minerais no interior do país, mas tinham explorado e aproveitado a existente nas fronteiras. Stalin, ao contrário, tendo experimentado as guerras de invasão e conhecendo o caráter agressivo dos alemães, preparou-se para a guerra. Tinha também que pensar nos ataques aéreos e por isso inverteu a política tzarista: construiu as novas fábricas em volta dos lugares onde se encontrava a matéria prima, no interior do país; afastou as máquinas e os produtos acabados da fronteira, aproximando-os dos consumidores. Se, dantes, as duas capitais tinham em seu poder os principais centros industriais, agora foram montadas fábricas de produtos químicos em Taschkent e uma fábrica de sedas na Transcaucásia Começou a fazer sondagens para petróleo no Rio Branco — até então inexplorado — e a distribuí-lo por todo o Ural. A produção total de petróleo da Rússia tinha sido de nove milhões de toneladas em 1913. Em 1937 foi de trinta milhões. Hoje, as reservas russas de petróleo são avaliadas pelos geólogos em seis bilhões de toneladas.
O perito americano, Brooke-Emeny, declarou que em caso de guerra — na Rússia a principal preocupação — um país bloqueado precisaria de vinte e duas espécies de matérias primas. Destas, à Alemanha e à Grã Bretanha faltam todas, com exceção de três ou quatro; à América faltam nove; mas aos Soviets só faltam quatro: estanho, níquel, antimônio e tungstênio. Portanto, tinham e têm ainda quase tudo; somente os Tzares não exploravam esses recursos suficientemente, por que sua máquina do Estado, ronceira e obtusa, ainda era movida a vapor, enquanto que os outros países já estavam empregando a eletricidade. Por esse tempo, a Rússia, a sexta parte do mundo, só possuía a quinquagésima parte da energia elétrica do mundo. Vinte anos depois, Stalin erigia a Montanha Magnética, uma das maiores usinas do mundo, em cuja construção trinta e cinco nações tomaram parte.
Stalin aproveitou durante o Primeiro Plano Quinquenal os cursos d'água da Rússia e da Ásia para explorar com o auxílio de sua energia as riquezas do país e transformá-las em máquinas e produtos manufaturados. Engenheiros americanos acabaram de construir em 1932 o maior dique do mundo com o qual represaram o Dnieper, como os ingleses fizeram na geração anterior, com o Nilo e o Assuan. Os "rápidos" foram vencidos, o rio tornado navegável por cinquenta e cinco milhas,, foram construídos barcos a vapor e comportas assim como um lago na parte mais alta. Conseguiu-se, assim, gerar quase tanta energia elétrica quanto a cachoeira do Niágara. O Volga com seus tributários também foi aproveitado por meio de diques e canais. Quando eu desci a corrente num barco miserável em 1925, as margens pareciam asiáticas, às vezes bíblicas. Hoje, um navio pode ir de Moscou, sem transbordo, até ao Mar Negro e daí ao Atlântico. De forma semelhante foram também aproveitados os rios da Sibéria, de maneira que a princípio geraram energia e depois transportaram nas suas águas as mercadorias manufaturadas para outras terras. Hoje, Nova York e Moscou têm as maiores usinas geradoras de energia no mundo.
Nova York é citada só como um símbolo. A transformação da Rússia numa nação industrial pode ser melhor comparada com o mesmo processo nos Estados Unidos. Que não foi só o século XX que transformou esses países prova-o o fato de não existir um terceiro exemplo — nem mesmo a Austrália.
A isso precisamos adicionar a extensão e o número de habitantes em ambos os países — 132 com 182 milhões — que tentam a comparação. Na União Soviética também as matérias primas mais importantes não foram encontradas nas fronteiras. A Ucrânia, os Urais, a Sibéria ocidental, a Ásia Central, e o sul do Cáucaso — todos muito no interior do país — nunca tinham sido explorados antes do Plano Quinquenal. Ao mesmo tempo, Stalin uniu nesta década as mais distantes fronteiras da União, estabelecendo comunicações através da Ásia, como os Estados Unidos fizeram depois da guerra civil. Essas estradas de ferro, convergindo para a Sibéria central, transformaram a União numa potência asiática: uma espécie de vitória pessoal de Stalin, o Asiático.
O sistema russo pregando a guerra contra os exploradores foi o maior dos exploradores; mas explorador da natureza e não de homens. Se, sob os últimos Tzares, uma quarta parte da Rússia tinha sido cultivada, essa proporção subiu agora para mais de metade. Se a proporção da indústria era 43% em 1913, vemos agora, depois do Plano Quinquenal, que se elevou para 77%. Se pensarmos que o destino de milhões de operários e camponeses está ligado a estes algarismos, a tremenda responsabilidade assumida por aqueles que resolveram mudar os mais antigos hábitos do homem civilizado e ousaram transplantar um terço dos habitantes — sessenta milhões — torna-se aparente. Sob Stalin, mais de oitenta e duas grandes cidades com mais de 100.000 habitantes, projetadas pelos mais hábeis arquitetos do nosso tempo, surgiram na União Soviética, e isso no meio de um país tradicionalmente de camponeses.
É verdade que o sentimentalismo romântico protestará contra estas coisas, alegando que o volume de felicidade humana destruído por tudo isso pode ser maior do que a recém-criada. Mas a figura do camponês piedoso, vivendo em estúpida apatia e diferenciando-se do seu gado só pela adoração das imagens num canto, desapareceu diante dos focos elétricos e do roncar dos aviões de passageiros. Não voltará mais nunca. Talvez, como alguns hão de dizer, o aumento do rendimento anual das indústrias, de seis para oitenta e cinco bilhões de rublos, nada tenha que ver com Deus e o destino. Contudo, há realizações espirituais que devem ser acrescidas.
Aqui, onde a reconstrução é regulada pelos fins visados pelo governo, só algarismos podem ser apresentados como prova. Os Soviets, sob o governo de Stalin, atingiram o primeiro lugar no mundo quanto a tratores, máquinas, e caminhões a motor; o segundo, quanto à energia elétrica. A Rússia, há vinte anos o país menos mecanizado, passou para o primeiro lugar. Durante os Planos Quinquenais toda a produção da União Soviética, aumentada em 3.8%, constituiu 32% da produção mundial. Na mesma década, entre 1929 e 1939, em que a produção de todos os outros países quase não aumentou, tendo mesmo diminuído nalguns, a produção soviética foi multiplicada por quatro. A renda nacional subiu entre 1913 e 1938 de vinte e um para cento e cinco bilhões de rublos. A renda individual do cidadão aumentou 370% nos últimos oito anos — sobrecarregada só com um pequeno imposto de renda e razoáveis taxas de seguro social — ao passo que decresceu quase em todas as outras partes do mundo. Se o standard de vida do camponês russo está ainda muito abaixo do americano, podemos imaginar em que penúria ele vivia no tempo dos Tzares num país que excedia todos os outros em recursos naturais. O camponês que não possuía então sapatos de couro, a não ser que os tivesse herdado de um pai com sorte, recebia agora, durante o segundo Plano Quinquenal, um par cada um, e antes da guerra até mesmo dois.
Uma das coisas totalmente paradoxais neste Estado Socialista é a produção de ouro. Aqui, onde o ouro foi, por fim, abolido como produto necessário, onde o padrão de valores é fixado pelo trabalho de cada um e não por uma quantidade de barras de ouro dormindo nos subterrâneos escuros de alguma capital de antigos soberanos e mágicos, está sendo minerado mais ouro do que em outra qualquer parte do mundo, com exceção do Transvaal. O mesmo país que combate a escravatura com mais persistência do que nenhum outro, trabalhando pela libertação do último cafre português vendido pelo seu chefe às minas de ouro de Johanesburgo, onde contraí tuberculose e morre cedo no meio da poeira do ouro — esse país extrai das minas, pulveriza e funde esse ouro desprezado. Para que? Para placas de dentaduras, algumas taças de ouro ou jóias? Só porque têm de negociar com Estados mais velhos, ainda adstritos ao padrão ouro. Um trabalhador dos Soviets, ajudando a produzir ouro para que mercadorias estrangeiras e armas possam entrar no país, é um símbolo frisante do Estado de transição em, que vivemos e que poderá durar ainda por outra geração.
O segundo símbolo do Plano Quinquenal de Stalin — muito mais cruel e sinistro — foi motivado pelo fato de que todo esse plano era consequência da ameaça de guerra e portanto começou com as indústrias bélicas. Assim, no futuro, a fundação de uma cidade pode ter que começar pela construção de abrigos contra ataques aéreos. Para poder fabricar tanques e aviões, todo este povo teve que se submeter a restrições cada vez maiores durante esses cinco anos; teve que viver em crescente pobreza, privando-se de tudo que faz a vida alegre e confortável. O povo russo parecia um homem que, sob a pressão do perigo, restringe a alimentação para comprar uma arma.
Essas privações, longe de diminuir o ardor dos moços russos, aumentava-o. Um ritmo acelerado provou que se pode agir com a rapidez de uma blitzkrieg sem se transformar num nazista. Não obstante a guerra e as fomes amortecerem o entusiasmo, este acendia-se novamente elevando-se ao primitivo fervor revolucionário através do esforço exigido pelo Plano Quinquenal.
Aqui também houve pausas e recuos; mas a posição de Stalin tinha-se tornado gradualmente tão forte que pôde anunciar o estabelecimento de 60% de novas granjas coletivas e depois reduzir esse número para 21%. Imitando o exemplo de Lenine, fez também outras concessões, tolerando às vezes até um mercado livre onde se podia comprar particularmente mercadorias por vinte vezes mais seu preço e uma bolsa negra onde o dólar comprava quarenta rublos em lugar de dois.
Não obstante Stalin, a despeito de todos os reveses, recusar empréstimos estrangeiros, foi assediado pelos grandes bancos estrangeiros que reconheciam terem os russos feito grandes compras honrando seus compromissos com mais pontualidade do que a Europa democrática. Por esse tempo, a crise na América prestou um bom serviço aos russos: quase que substituiu uma parte da dogmaticamente anunciada revolução mundial. Os antigos Estados tinham crises apôs crises, enquanto o novo Estado Socialista avançava sempre com segurança. Stalin, com uma plasticidade raramente encontrada nos seus discursos, disse então a frase clássica:
— Nossas dificuldades são de tal natureza que contêm em si mesmas os meios de superá-las.
A pergunta excitante pairava continuamente sobre ele e o povo russo: Quem andará mais ligeiro: nós ou os alemães?
Tudo dependia de quando Hitler se apoderasse do poder ou, subsequentemente, estivesse pronto para a guerra. Seria tão cedo quanto 1935 ou não antes de 1939?
Mas tudo isto só poderia ser levado a cabo por um homem moço, cheio de entusiasmo, preferindo as honras do pioneiro ao conforto e encontrando enlevo num grande desígnio nacional e não no amor, na família ou no romantismo. Talvez nenhuma outra geração tenha passado sua mocidade tão incessantemente sob os focos de luz de um princípio tão inexorável. O que outras nações têm podido sofrer no máximo por alguns poucos anos, sob a pressão da guerra — a abstração da vida particular — os russos sofreram por vinte anos pela simples razão do fulgor de uma nova idéia tornar-se visível e tangível, cada semana que se passava, através de algarismos, curvas e proporções. Enquanto o povo, durante os primeiros cinco anos, estava cada vez sendo pior alimentado, alojado e vestido, seu entusiasmo aumentava sem cessar. Stalin patenteou a necessidade disso num dos seus discursos:
"... afim de pôr a técnica em funcionamento" disse ele "e utilizá-la no máximo, precisamos de gente que se tenha assenhorado dessa técnica, precisamos de quadros capazes de se assenhorarem e utilizarem dessa técnica, conforme todas as suas regras. Sem gente, que se tenha assenhorado da técnica, ela é inútil. A técnica, entregue a quem se tenha assenhorado dela, pode e deve operar milagres. Se, nas nossas fábricas de primeira ordem, nas nossas granjas soviéticas e campos coletivos e no nosso Exército Vermelho, tivéssemos quadros suficientes, capazes de dominá-la, nosso país colheria resultados três ou quatro vezes maiores do que atualmente...
"Já é tempo de todos compreendermos que, de todo o capital que o mundo possui, o mais valioso e mais decisivo é o povo, os quadros de operários. É preciso que se compreenda que nas nossas condições atuais estes quadros resolvem tudo. Se tivermos bons e numerosos quadros na indústria, agricultura, transportes e no exército, nossa nação será invencível. Se não os tivermos, ficaremos de pés quebrados".
Já foi dito que é à mecanização da humanidade como um todo, com sua crescente capacidade de produção e não ao novo sistema, que deve caber a glória. O fato é que, desde a ascensão de Mussolini, se tornou um hábito dos ditadores festejar a inauguração de cada ponte, cada gare como uma prova assombrosa do seu gênio criador. Os russos também souberam como explorar cada oportunidade dessa espécie. Mas a diferença é fundamental. Um navio ou uma estrada, devidos a Hitler, são proclamados por suas Tropas de Assalto e pelos seus jornais como uma demonstração da superioridade do poder dominante. Há um milhão de jovens hitleristas que engolem isso num espírito de absoluta fé. Na Rússia, um acontecimento como esse é um acontecimento nacional.
Um escritor francês, André Gide, escreveu as mais estúpidas e rancorosas palavras que jamais foram ditas contra os Soviets. Não porque agisse por convicção; homens experientes de grande inteligência e sutileza, ajudados por conhecimentos e sãos argumentos, já fizeram o mesmo. Mas Gide escreveu sem ter o menor conhecimento da língua, paisagem ou ambiente russos. Um decadente, que nunca tocara a vida real em qualquer ponto e que nem mesmo entende a técnica de viajar, primeiro fez-se comunista por esnobismo, depois, levado por decepções de ordem particular e vaidade ofendida, fez-se anticomunista, em seguida a uma curta excursão à Rússia. Hoje, a guerra, seja como for que termine, desmentiu sua petulância. Entre outras condenações, Gide ridiculariza também os operários russos porque perguntam sempre: "Há alguma coisa como isto no Ocidente?" Quando eu viajei pela Rússia, dez anos antes de Gide, aconteceu-me estar na praia, no Mar Negro e sugerir ao meu guia, um estudante russo, que tomássemos um banho.
Procuramos um lugar para deixar as roupas e, de repente, meu companheiro viu um pequeno bote arvorando a bandeira soviética. "Olhe, cá está o nosso barco!" exclamou e pulou para dentro dele. Nesse "nosso" revelava-se a idéia do Estado em cada cidadão, o equivalente ao dito do monarca francês; "O Estado sou eu!" Mais tarde, encontrei nas fábricas essa ingênua franqueza, essa viva alegria por tudo o que o Estado — isto é "nós" — estava fazendo.
São os algarismos que governam, e toda uma geração se dissolve na estrutura do Estado.
Mas, ao passo que na Alemanha esse ídolo se torna, sob Hitler, um gigantesco instrumento de domínio, na Rússia tornou-se a proteção das massas. Na Alemanha é temido; na Rússia é querido; algo como uma árvore de Natal que todos querem adornar com alguma coisa.
Quando os Soviets tentaram banir Deus, não poderiam ter encontrado um melhor substituto do que o novo Estado, que se tornou o foco das emoções da mocidade. O segredo da resistência do exército russo — isto é, do povo russo — está nesse amor ao jovem Estado e ao solo que lhe foi entregue. Antes, como os escravos de uma casta dominante, os russos perderam três guerras sucessivamente.Hoje, são tão novos que, em comparação com eles, os Estados Unidos parecem velhos; são a nação mais nova do mundo. Esta é a obra da colonização à qual o nome de Stalin está ligado indissoluvelmente.
Toda a vida da nação foi literalmente absorvida pelos dois Planos Quinquenais. Nenhuma amizade se contraiu, nenhum casamento se realizou, nenhuma criança nasceu, nenhum trabalho se projetou sem se refletir previamente sobre se isso aproveitaria, mesmo num mínimo, à nova reconstrução. O saber que, agora, pela primeira vez, o lucro não irá para os indivíduos e sim para todo o grupo, a novidade da experiência, enche todos os moços e a maioria dos mais velhos de um orgulho que se reflete diretamente nos algarismos da produção. As privações que foram impostas a todos tiveram um efeito estimulante da mesma maneira que o tiveram na Inglaterra bloqueada. A Rússia, também, sentiu-se como uma gigantesca fortaleza que tinha de armar-se e defender-se contra um inimigo que a ameaçava: o sistema capitalista. Por certo, o inimigo não fazia ainda chover bombas do céu, mas bombardeava-a com uma crescente barragem de artigos e livros escarnecedores e cheios de desprezo. O efeito foi estimular a juventude para novos esforços.
Nessa situação, desenvolveu-se um impulso esportivo que tomou um aspecto religioso. A vontade de alguns milhares de operários, numa fábrica, de exceder a produção de seus camaradas em outra, foi acirrada por Stalin de um modo engenhoso. O Primeiro Plano Quinquenal foi concluído em quatro anos e um quarto. Se as máquinas para o Primeiro Plano custaram 25 bilhões de rublos, a verba posta de parte para o mesmo fim no Segundo montava a 69.5 bilhões. Deste total, 58.4 bilhões eram destinados a indústria pesada exclusivamente, ao passo que havia um aumento de cinco vezes mais sobre o Primeiro Plano, com relação a luz e alimentos.
Os jovens russos de ambos os sexos acompanharam esses algarismos com o intenso interesse que manifestamos por um jogo de futebol; mas o mais notável era que todos eram jogadores. É por esta razão que na Rússia nada é mais apaixonadamente idolatrado do que o saber e a ciência como a base do novo Estado técnico. Se, na Revolução Francesa, uma jovem atriz foi levada em procissão e adorada como a Deusa da Razão, na Rússia podia acontecer o mesmo, mas chama-la-iam a Deusa da Ciência.
A ânsia de saber, a consideração pela vida humana, aumentaram na ex-semibárbara Rússia tanto quanto, no mesmo período, diminuíram na Alemanha, o país do espírito e da música. Ao passo que Hitler metodicamente desmantelava o sistema educacional para transferir a mocidade para as casernas, fechando centenas de escolas, na Rússia, sob Stalin, as próprias torres começaram a espalhar conhecimentos porque todas foram providas de alto falantes. Na Alemanha, antes de rebentar a guerra, Hitler permitiu a matrícula de 60.000 jovens nas escolas superiores; na Rússia, Stalin deu permissão à 600.000, recrutando jovens operários e camponeses igualmente como estudantes para as recém-fundadas academias militares, que são hoje o orgulho da nação. Hitler expulsou da Alemanha homens de grande saber porque seus pais tinham herdado uma religião diferente daquela em que ele próprio não crê. Stalin chamou esses homens para seu país, confiando-lhes trabalhos importantes e pagando-lhes generosamente. Se pensarmos nos cuidados que se tem com a velhice na Rússia basta pôr ao seu lado a resposta que um médico de Berlim deu pelo telefone a um amigo meu que pedia seus serviços. Perguntou-lhe que idade tinha o paciente e respondeu:
— Setenta! Não vale mais a pena! Não, não vou!
Predicados espirituais, considerados de importância secundária em revoluções anteriores e tratados como tais, foram tão generosamente dotados no Plano Quinquenal, que seu valor essencial para todo o projeto se torna aparente.' Nos orçamentos das nações ocidentais, as verbas para educação popular são absorvidas pelos gigantescos algarismos necessários para armamentos e colônias. Na União Soviética, educação e saúde, casas e livros têm o primeiro lugar: sob Stalin, essa verba subiu de 30 para 53 bilhões de rublos.
A última estatística publicada pelo regime tzarista mostrava que 79% da população eram analfabetos. Em 1937, esse algarismo baixara para 10%. Entre eles estavam os chamados povos "selvagens", por exemplo, os circassianos, dos quais só 6% sabiam ler e escrever. Se o último Tzar mandara oito milhões de crianças para as escolas, Stalin mandou vinte e oito milhões. O número de estudantes das Universidades aumentou durante vinte anos de seiscentos mil para seis milhões. Em lugar de vinte mil médicos existem hoje cem mil.
Se a cultura de um povo tem sido calculada pela quantidade de sabão que consome, por que não o será pela dos livros? Enquanto que, sob Hitler, a publicação anual de livros na Alemanha foi reduzida à metade, comparada com a década precedente, os livros novos publicados na Rússia subiram de 87 milhões em 1913 para 377 milhões em 1936. Mais do que os publicados na Inglaterra, Alemanha e Japão reunidos. Entre eles, havia 117 livros em 43 línguas estrangeiras. O número de jornais subiu, durante o Plano Quinquenal, de 859 para 8521 e a tiragem de 3 para 36 milhões — em ambos os casos um aumento de dez vezes mais. Deve-se também notar que os preços dos livros são tão baixos, que qualquer operário pode comprar três por mês com 2% do seu salário. O lucro do editor foi eliminado, mas o autor é muito bem pago, como também o artista. O prêmio concedido pelo Estado ao jovem compositor soviético, Dimitri Shostakovitch, por um dos seus concertos, excedeu em generosidade tudo o que o mundo capitalista jamais ofereceu a um espírito criador por um só trabalho de gênio.
Como a educação do povo, a exploração da natureza é ditada pelas exigências práticas, ambas não são mais ornamento ou teoria e sim necessidades para a manutenção do Estado. Livros, rádio e cinema educam o cidadão soviético, que é conservado afastado de banalidades e, sobretudo, de obscenidades. As instituições científicas habilitam os dirigentes a organizar e melhorar constantemente o sistema econômico, a distribuição do trabalho e toda a vida pública relacionada com 180 milhões de pessoas. Num país onde a tecnologia, a geologia e a química governam o Estado, o marxismo volta às suas fontes físicas e biológicas. Em vinte anos, Stalin multiplicou as 211 instituições científicas de 1918 para 2.300. Esses cientistas trabalham continuamente dentro do espírito revolucionário, reexaminam tudo, rejeitam muita coisa, e, ao mesmo tempo, esforçam-se o mais possível; porque a ciência — segundo a fórmula do chefe dos químicos — não deve seguir na esteira da indústria, mas fazer descobertas e criar novas indústrias. Já Lenine escrevera esta bela frase:
"O processo da vida é criador. Exige do homem uma atividade visando um fim".
Em Leningrado, existe um velho palácio onde a sociedade tzarista se divertia não há mais de trinta anos. Hoje, o salão de baile é um museu de cereais. Lá estão expostas 30.000 espécies de grãos, reunidas e depois descritas. pelos especialistas empregados pelos Soviets. Fazendo experiências por muitos anos, obtiveram novos cruzamentos entre o trigo de amadurecimento precoce da Abissínia, o duro do norte do Cáucaso e o do Afeganistão resistente às tempestades. Isso habilitou-os a plantar este grão mais ao norte da Rússia do que era possível antes e aumentar a colheita numa ocasião em que a América estava queimando seu trigo. Do mesmo modo conseguiram cultivar arroz que nunca tinha sido plantado na Europa além dos limites do Pó, numa latitude tão ao norte quanto Londres; e cultivar rosas nas margens dos lagos Árticos. O cruzamento, considerado tão pernicioso pela filosofia racial dos nazistas, é um dos meios russos mais eficazes para tornar os homens, animais e plantas mais produtivos e mais belos.
Um outro exemplo, apontado por Johnson, Deão de Canterbury, no seu admirável livro sobre a Rússia(1), mostra como a descoberta de um inglês para fazer gás dos veios de hulha nunca foi utilizada senão cinquenta anos depois, quando os Soviets a aproveitaram. A indústria carbonífera britânica foi impelida por interesses comerciais a suprimir a descoberta de Ramsey. Não só aqui, mas em todos os países capitalistas, inventores e exploradores têm sido silenciados pela compra. por altos preços de seus inventos e idéias, que ameaçavam intervir em interesses monetários, fazendo-os desaparecer depois. Lenine viu que o novo processo liberaria milhares de mineiros de um trabalho nocivo trazendo-os dos poços escuros para a luz dos laboratórios. Mas muitos anos se passaram até que, durante o Plano Quinquenal, quantidades substanciais de gás fossem obtidas dos filões de carvão. Naqueles distritos onde o processo foi aplicado, pode-se hoje cozinhar com gás vindo diretamente da terra; um grande símbolo do nosso século.
O entusiasmo do operário russo encontrou seu símbolo em Stakhanov. Este jovem mineiro da bacia do Dbnetz descobrira um meio de retirar do filão, por meio de uma picareta pneumática e duas gambotas, 102 toneladas de carvão na turma de seis horas, cuja produção regular era de sete toneladas. O reconhecimento da eficácia e a aplicação dessa descoberta seguiram-se tão rapidamente que, da noite para o dia, ficou sendo um herói nacional. No Congresso de Stakhanov, realizado só três meses depois no Kremlin, ele fez sua comunicação:
"Quando li o discurso do camarada Stalin em Maio último, na Academia Militar e cheguei à parte em que dizia que, nas mãos de peritos, máquinas podiam realizar milagres, empreendi aumentar nossa produção. Agora é só uma questão de instalar este sistema em toda a parte."
Uma jovem operária numa fábrica de tecidos comunicou ao mesmo Congresso:
"Minha irmã e eu procuramos o gerente e dissemos-lhe que queríamos trabalhar com 100 teares. Ele deu-nos noventa e quatro. Eu e Dusya ficamos desapontadas e insistimos nos cem. Quando soubemos que outra tecelã estava trabalhando com 140 teares resolvemos elevar o número para 144. Agora temos até muito tempo para descansar durante o trabalho. Mas se alguém chegar também aos 144, elevaremos para 150, e não deixaremos ninguém tirar-nos o recorde, mesmo que tenhamos de ir até aos 200."
Imediatamente antes de rebentar a guerra, o rendimento diário da produção do operário russo era três vezes maior do que vinte e cinco anos antes. Só uma parte desse aumento deve ser levada a crédito das máquinas; a outra parte é devida à disposição de homens liberados para trabalhar mais; e este é o fator mais importante.
Quando se exigiu do povo que passasse fome, para que pudesse no fim de alguns anos lançar as bases da coletivização, houve milhões de descontentes e céticos. A luta dos ricos kulaks, que preferiram sacrificar seu gado a entregá-lo ao Estado, a luta dos camponeses da classe média contra os pobres, manteve a vanguarda por anos.
E, contudo, os muitos milhões sofreram por dez anos privações que excederam de muito as sofridas pelos alemães sob Hitler. Uma vez que toda a produção é, no fim de contas, baseada na indústria pesada, toda a nação, que não podia ou não queria importar nada, teve de passar sem a maior parte dos artigos de consumo. Tornou-se uma espécie de esporte privar-se das coisas ou encontrar substitutos. Como crianças na véspera de Natal, todos sonhavam com chapéus, escovas, luvas ou rádios. A história interna desse período difere da de Berlim e Roma em igual período neste sentido fundamental: lá, no oeste, dois povos amadurecidos e altamente cultos viram-se quase da noite para o dia espoliados dos dons da vida, enquanto que aqui um povo jovem olhava para o futuro, por cima do intervalo de privações, para alcançar um grande objetivo para os pequenos e depois maiores prazeres da vida.
Aqui, também, podia não haver liberdade individual. Mas em Berlim e Roma armavam se com o propósito confesso de conquista, enquanto que em Moscou era com o propósito de defesa. Em Berlim, um povo passava fome para adquirir domínio externo sobre o mundo; em Moscou, sofria fome para criar internamente uma ordem social mais justa. Daí a superioridade moral na guerra. Se esse povo está se defendendo com êxito com as armas que acaba de adquirir, a explicação deve ser procurada exclusivamente em fatores idealistas — isto é, no entusiasmo da mocidade que trabalha e estuda. Como também nas inteligências de elite da Rússia, fascinadas pelo magnífico espetáculo em que são chamadas a tomar parte. Além de que são muito bem pagas, porque na Rússia os maiores honorários são os dos grandes engenheiros ou dos grandes escritores.
A outra parte do plano de construção coube aos agricultores; aqui havia problemas ainda mais difíceis a resolver. Stalin tinha que levar a termo a eletrificação e a mecanização da agricultura. Tudo isso só se podia fazer pela aplicação de dois métodos: compulsão no que concernia aos camponeses, e despertar o entusiasmo no que concernia aos operários. O camponês pobre ou da classe média tinha medo do trabalho coletivo. Seria que Stalin iria agora devolver ao Estado o que ele tomara aos proprietários das terras depois de trezentos anos de escravidão? O povo ainda não estava maduro bastante para aceitar a idéia de grandes culturas do Estado como norma, nem havia máquinas suficientes para esse sistema. O camponês desconfiava da nova forma que, julgava ele, o rebaixaria novamente ao nível de um trabalhador diarista. Mesmo que não fosse, como os camponeses em toda parte, um conservador, se levantaria contra experiências que não compreendia.
Stalin precisou de outros cinco anos para conquistar a confiança dos agricultores. Isso se reflete nas estatísticas dos crescentes milhões de granjas coletivas de camponeses e no número decrescente de camponeses que morriam de fome ou rebelião; como vemos também nos intermináveis debates.
A estrada para esta vitória foi muito mais pedregosa e áspera nos campos do que nas cidades, como um atalho entre campos é mais incômodo para se trilhar do que um boulevard numa cidade. No mundo todo não é o camponês o mais firmemente apegado à sua propriedade? Mesmo que tivesse sido um escravo sob o Tzar — sem privilégios, sem cultura, sem esperança — contudo, possuía sua choupana e sua vaca com um pequeno pedaço de terra. E, embora não pudesse vender, nem se mudar, ou casar, sem o consentimento do seu proprietário, aquelas poucas milhas quadradas eram o seu lar. Aí podia acaçapar-se apaticamente na sordidez e na imundície.
Quando a Revolução o liberou, depois de séculos de servidão, ele serviu-se dessa liberdade para matar os proprietários — a não ser que tivessem fugido — e apoderar-se de todas as suas terras ou dividi-las com os vizinhos depois de lutas sangrentas. E agora os novos senhores queriam tomá-las novamente? Queriam administrar os campos coletivamente? Lavrar, semear, colher devia tornar-se mais fácil com as máquinas, mas teria de ser feito em comum! Milhares deles teriam de ser amontoados em grandes propriedades agrícolas pertencentes ao Estado!
— Mas o Estado são vocês! — explicava o orador comunista. O camponês, sentindo que tinha sido traído, novamente, conservava-se taciturno. Os comunistas na capital compreendiam isso muito bem. Sendo eles próprios filhos de camponeses, tinham experimentado a paixão com que seus pais se agarraram à terra no começo da Revolução. Um relatório do Partido em 1923 contem esta feliz comparação:
"O camponês é como um carneiro. Foi tosquiado por todos os que precisam de lã. Primeiro pelo Tzar e pelos proprietários das terras, depois por Denikin e os outros exércitos. É preciso cuidado, senão teremos que assoviar por lã!"
Estas palavras refletem a tragédia do camponês russo durante os últimos trinta anos; e também as dificuldades sob as quais ele foi induzido a aceitar o sistema socialista. Esse camponês, também, como os de todo o mundo, era conservador. A história registra poucos exemplos de revoluções feitas por camponeses; na maior parte das vezes lutaram contra elas. Na Rússia, tinham estado adormecidos por diversos séculos e, embalados pelas cantigas e rezas pelo Paizinho (que era tudo menos um Paizinho) tinham sido conservados nesse estado por uma inconsiderada hierarquia de padres avarentos e o deificado Tzar.
O camponês russo nem mesmo se apercebia mais que era escravo. Metade da terra arável — alguns a calculam em 70% — pertencia a umas poucas centenas de grandes senhores, ao Tzar e à Igreja; o resto estava dividido entre dezesseis milhões de famílias de camponeses que possuíam uma média de seis a oito acres. Os métodos de cultura do solo correspondiam a esta divisão medieval. Por exemplo: só a sexta parte de uma libra de fertilizante artificial era empregada por acre, ao passo que o agricultor belga empregava o correspondente a cem vezes vinte e uma libras. Essa gente vivia arrebanhada como gado. A benevolência patriarcal dos grandes proprietários não é mais do que um mito. Mesmo o Conde Tolstoi, o humanitário e poeta, erguendo-se tão alto acima de sua classe, deixou os camponeses nas suas propriedades viverem na sordidez. Masaryk, que me contou este fato, falou nisso a Tolstoi quando o visitou aos oitenta anos.
Tudo isto está sendo esquecido ou escondido por homens de má fé, continua a falsamente apresentando a liberação russa como terrorismo, porque não querem prescindir de nenhum dos seus privilégios nos seus próprios países. Se isso pode se compreender nos casos de homens ricos que labutaram para conseguir suas riquezas ou que as herdaram sem esforço, torna-se imperdoável no caso de homens dotados de inteligência que deviam, através de seu talento e cultura, enxergar a grandeza deste movimento. A atitude de qualquer poeta pondo-se contra ele não é mais do que uma torre de marfim que não pode resistir ao vendaval desta era. Muitas coisas eram belas no velho mundo e não é vãmente que cada época olha a precedente como os bons tempos de então. Mas qualquer que possa comparar uma família de camponeses russos em 1910 com uma de 1930 terá de confessar que esta última revela mais de dois elementos importantes: felicidade humana e dignidade.
Não foi por via dos comunistas e sim por via de violentas incursões de potências ocidentais, que nada tinham que ver na Rússia, que o país se envolveu em guerras e desastres sempre maiores. O resultado mais importante não foi tanto a introdução do sistema socialista como a salvação do país pelos seus novos líderes. Não foi um punhado de doutrinadores e sonhadores que arruinaram o país, mas os chefes dos bancos internacionais e estabelecimentos industriais que, por meio dos governos que controlavam, mandaram seus exércitos para o país das experiências perigosas, para salvarem seu petróleo, seus capitais e ao mesmo tempo evitarem imitações em casa. Tentaram fazer exatamente a mesma coisa na França em 1790 e todavia perderam a guerra no fim.
Se a ascensão dos comunistas na Rússia não tivesse sido senão a vitória de uma facção não teria sido um acontecimento de significação mundial. Só o fato dos comunistas terem erguido a Rússia do seu profundo atraso cultural e ao mesmo tempo dado um exemplo ao mundo tornou sua obra tão importante.
"A Rússia" escreveu Stalin "foi sempre batida por causa do seu atraso. Foi batida pelos Khans mongóis; foi batida pelos Beys turcos e pelos nobres suecos... Herdamos uma nação atrasada, que encontramos em pleno estado de colapso depois de quatro anos de guerra e três de guerra civil — uma nação com um sistema primitivo de produção em que a indústria era só um oásis no deserto de uma vida econômica dominada pelo pequeno burguês."
Mas a guerra civil não assinalou o fim da luta. As fomes repetiram-se devido à resistência dos camponeses ricos, de maneira que esse país, com as suas imensas possibilidades de produção, teve de importar trigo da Argentina. De modo idêntico, esse mesmo país, com seu imenso exército, entrara na Guerra Mundial sem entusiasmo, sendo, portanto, rapidamente derrotado, não obstante estar aliado aos vitoriosos. A batalha de Stalin contra os camponeses ricos, que não queriam entregar seu trigo, foi necessária, a despeito do enorme número de vítimas. Milhares de camponeses ricos, que defendiam seu gado e às vezes seu ouro, em grupos ou isolados, nos seus domicílios, foram assassinados. A maior parte desses casos sucederam era 1928 imediatamente antes do Primeiro Plano Quinquenal. Ameaçado entre a fome nas cidades e o perigo de ser suplantado pelos reacionários, Stalin teve que recorrer ao terrorismo. Só a força podia enfrentar as condições caóticas em muitas partes dos distritos agrários da Rússia. Depois disso, foi novamente a necessidade que deu origem ao grande plano.
Além disso, a luta entre as próprias classes camponesas tornou o plano de reconstrução ainda mais difícil. Que era um camponês de "recursos médios" e um pobre? Se um homem possuía dois cavalos, duas vacas e uma velha choupana era talvez mais pobre do que um outro possuindo um cavalo, uma vaca e uma choupana nova. Às vezes podia enfileirar-se ao lado dos ricos, outras ao lado dos pobres. Um outro obstáculo era a burocracia, que estava incrustada no caráter russo e não podia ser eliminada imediatamente depois de trezentos anos. Como a polícia secreta, tinha sido herdada dos Tzares e existe ainda. E agora, em face dessas obstruções, tinha-se de introduzir subitamente um novo sistema liquidando a nova riqueza no país — como se tinha feito com a antiga — e trabalhando em benefício dos pobres.
Uma hecatombe de vitimas! Inumeráveis atos de injustiça para estabelecer uma nova justiça! A força por toda a parte para abolir a força! A mesma velha tragédia que começou com a decisão de Amenophis, o primeiro revolucionário três milhares e meio de anos antes! O número de vítimas durante a guerra civil já tinha sido calculado em quatro milhões. Mas as que caiam seis anos depois despertavam mais horror, porque a esse tempo o novo Estado já tinha sido consolidado e agora parecia novamente abalado. Quando os camponeses ricos foram obrigados a associar-se ao Estado ou às fazendas coletivas vingaram-se à maneira típica dos camponeses.
Como não tinham fuzis, abateram suas vacas e porcos preferindo comê-los a deixar o Estado tomá-los. As vezes regurgitavam-se de maneira a morrerem das consequências. Muitas dessas simbólicas tragicomédias foram contadas depois.
A salvação veio por via do trator. Quando ele começou com suas possantes rodas, laminas e dentes a revolver o solo antigo; a ceifar, enfeixar e transportar a colheita parecia aos camponeses um monstro fantástico. Mas o trator não tardou a passar a ser o novo santo e assim ficou sendo até hoje. A gente velha que não queria crer nele morreu. Num museu, em Moscou, destinado a ridicularizar o clero com as suas preces para chover, conversei com uma velha que guiava os visitantes e mostrava os quadros explicando os processos da natureza. De um lado estava o Senhor descendo com a tempestade para infringir castigo ao homem, do outro o choque de duas correntes elétricas. A velha sorriu e disse: "Meu nino crê nessas coisas novas, porém eu não". Velhas pedras milagrosas e talismãs, que eram conservados em vitrinas, como relíquias de uma piedade pertencente ao passado, recebiam as visitas de gente desconhecida que ainda as adoravam em segredo à moda antiga.
O trator tornara-se o novo santo.
"Para salvar a Rússia", escrevera Lenine, "precisamos mais do que de boas colheitas e pequenas indústrias. Sem grandes indústrias nunca nos poderemos tornar independentes".
Stalin, que instituiu o Plano Quinquenal baseado nessa idéia, enunciou o seguinte princípio:
"Decidida e obstinadamente, precisamos firmar a agricultura sobre uma base técnica e obtermos, assim, uma produção em grande escala acompanhando a indústria socialista. Se resolvermos essa questão, a vitória será nossa. Se não vencermos, seremos forçados a voltar ao capitalismo".
A verdade era que a vitória dependia de bastar-se a si próprio; porque a oeste os alemães ameaçavam, cada vez mais fortes, e a leste os japoneses. Essas invasões viriam fatalmente e destruiriam o novo Estado a não ser que estivesse preparado. O dilema aumentava porque a grande indústria e o problema agrário não só dependiam um do outro como eram competidores. Era impossível fazer tudo ao mesmo tempo. E, contudo, era imperativo que tudo se fizesse imediatamente.
Sendo a Rússia um país agrário, o socialismo só poderia triunfar aumentando suas colheitas pelo emprego de máquinas e produção em massa.
"Nossa dificuldade", escreveu Lenine nos primeiros estágios, "está no fato de estarmos começando nossa revolução num país de camponeses que em toda a parte do mundo insistem ria propriedade privada."
Stalin, meio camponês pela origem, acrescentou:
"O camponês não será impelido para o socialismo por frases místicas, mas só pelo interesse próprio. Se lhe mostrarmos que, com máquinas de propriedade comum, pode colher mais e ganhar mais, ele o aceitará."
Finalmente, os camponeses, em parte forçados e em parte convencidos, realmente aceitaram o que lhes era oferecido. Começaram a compreender a frase: "L'état, c'est moi", no que se relacionava com eles. Assim desenvolveu-se em vinte anos uma confiança em si próprio que não encontramos em nenhum camponês da Europa democrática, e só no americano que nunca foi oprimido.
É verdade que o progresso nos campos era mais lento do que nas indústrias. Ao passo que os operários estavam habituados ao trabalho em comum, a obstinação do camponês, que vivia só ou com os filhos, era um obstáculo. Os primeiros tinham ficado impressionados com o fato de todos poderem encontrar trabalho, ao passo que os segundos nunca souberam o que era o desemprego.
Stalin iniciou o trabalho nos campos com o mais aperfeiçoado e dispendioso aparelhamento. Assim como o Senhor primeiro criara os elementos, depois domara-os, povoara e cultivara a terra e finalmente criara o homem, assim essas pequenas divindades tinham primeiro domado o rio para que pudesse fornecer energia elétrica, depois cavado, com a ajuda dessa energia, as entranhas da terra para trazer à superfície carvão e minérios e construir grandes fábricas onde pudessem fabricar máquinas e por fim construir tratores com elas. Só então o filho do camponês pôde subir para o assento do chofer e guiar o trator através dos campos onde seus antepassados trabalharam com as próprias mãos e que eram agora sulcados, plantados e nivelados pelo monstro de ferro. Seria um milagre que àqueles milhões tivesse faltado roupas, calçado e casas nesse primeiro estágio? O que foi mais do que um milagre foi não se terem revoltado.
Depois que os primeiros dez anos de planos se passaram, o quadro se iluminou nos campos. Agora, Stalin já podia fazer as seguintes exigências:
"Cada distrito devia estar preparado para produzir seus próprios legumes, manteiga, leite e, se possível, também seu próprio trigo e carne."
Assim, sob suas mãos reguladoras, diversos cereais emigraram para leste, trigo para o norte e algodão para o sul. No norte do país gigante, florestas, pântanos e charnecas foram transformados em terras aráveis como os desertos no sul.
A Ásia Central, onde os Tzares tentaram a cultura do algodão, mas foram barrados pelos seus métodos burocráticos, produz hoje algodão bastante para vestir duas vezes o número de seus habitantes. Um sistema moderno de tráfego foi estabelecido ligando os centros industriais da U. R. S. S. com suas regiões agrícolas por meio de estradas de ferro, estradas de rodagem, canais e linhas aéreas. Camelos e cavalos, que ainda hoje fazem rodar as noras no Nilo para regar as plantações, foram substituídos por bombas. As sementes das melhores variedades tiveram a preferência de maneira que a qualidade pôde competir com a do Egito.
O mérito de Stalin, que perdurará na história, a despeito de todos os sangrentos sacrifícios, consiste na criação prática do primeiro Estado Socialista industrializado, cujos efeitos se refletem na elevação do standard de vida dos operários e camponeses em todo o mundo sob a pressão ameaçadora e o exemplo dos Soviets.
Três exprobrações têm sido feitas a Stalin e seus Soviets: que são antipatrióticos, que se apossam das propriedades de todos, e que reprimem a inteligência individual forçando-a a um padrão universal. Todas três são falsas.
O amor à pátria tem sido, sob o regime de Stalin, cultivado ao ponto do nacionalismo. As expropriações foram aplicadas no começo da Revolução contra os proprietários de terras que não as tinham adquirido nem as mantinham com o seu trabalho e que, no espírito dos nossos tempos, devem ceder o lugar aos que se encontram, pelo trabalho de suas mãos ou de seu cérebro, nas condições da famosa sentença de Goethe:
"Se queres possuir a tua herança, experimenta, ganhando-a, torná-la tua mesma".
Mais tarde, em 1919 e 1928, a luta contra o agricultor rico foi novamente iniciada. O que se conseguiu aqui com sangue e força, conseguiu-se na Inglaterra e na América sem isso, tributando a propriedade até 80%.
Quanto à fábula de padronização das inteligências, vemos que foi ridicularizada tanto por Marx como por Lenine e Stalin. Num país que elevou a ciência à condição de divindade, o talento superior, a cultura mais elevada e a maior aplicação são melhor recompensadas em dinheiro e honras do que em parte alguma do mundo.
Como o mundo ocidental tem-se comprazido em exprobrar sucessivamente aos Soviets terem aplicado igualação demais ou igualação de menos, perguntei a Stalin como a nova resolução adotada recentemente, implicando numa escala diferencial de salários, se conciliava com os princípios marxistas. E ele respondeu-me:
— Um Estado socializado, em que todos recebem a mesma quantidade de pão e de carne, as mesmas qualidades de roupas, os mesmos artigos e exatamente as mesmas quantidades desses artigos, não foi preconizado por Marx. Este diz simplesmente que, enquanto o sistema de classes não for completamente banido e enquanto o trabalho não se tornar um prazer — porque agora a maioria das pessoas olham-no como um peso — haverá muitos que gostarão que outros trabalhem mais do que eles. Por isso, até que as distinções de classes sejam inteiramente obliteradas, todos terão de ser pagos conforme sua eficiência produtiva ou sua competência. Esta é a fórmula marxista para o primeiro estágio do socialismo. Quando este atingir o seu último, todos farão aquilo de que forem capazes e o trabalho que fizerem será pago de acordo com suas necessidades.
"Deve ser perfeitamente compreensível que diferentes pessoas tenham necessidades diferentes, grandes e pequenas. O próprio Marx ataca o princípio de igualação. Isso faz parte da psicologia primitiva dos camponeses, não do socialismo.
Há algo de verdadeiramente cômico no modo como os adversários de Stalin, diante do triunfo magnífico da reconstrução russa, o censuram por ter traído o socialismo, revelando-se nada mais do que um sombrio e arrojado empreendedor do velho estilo. Na realidade, porém, Stalin, como Lenine antes dele, tem mantido honestamente o princípio fundamental do socialismo, isto é, a nacionalização da produção e do comércio estrangeiro. Quanto às terras, porém, não houve muito mais nacionalização na Rússia do que na Itália, onde um terço do solo já pertence ao Estado fascista. Mas Stalin, novamente como Lenine antes dele, adotou os métodos e formas do socialismo às circunstâncias, que mudavam de ano para ano. Foi só assim que lhe foi possível levar a termo os dois grandes planos.
Um colonizador não pode ficar preso a um dogma, mas um genuíno revolucionário nunca trairá princípios fundamentais. Evitando ambos esses perigos, Stalin seguiu corajosamente seu caminho e alcançou a meta, que ate há pouco era considerada utópica pela história.
No Congresso de 1929, um orador apresentou da tribuna o Primeiro Plano Quinquenal, e à proporção que ia indicando, num grande mapa da União, os locais onde se instalariam novas usinas geradoras de eletricidade, pequenas lâmpadas elétricas iam-se acendendo nos pontos indicados. E, quando indicava as fundições projetadas, minas, poços de petróleo, fábricas de tecidos, luzes de diversas cores iam assinalando cada empresa. E quando o orador, por fim, apontou para o mapa iluminado e disse calma e como que acidentalmente: "É por isto que estamos lutando", uma tempestade de entusiasmo passou pelo auditório. As lágrimas assomaram aos olhos do orador.
Que emoções devem ter sido as de Stalin quando acendeu esse mapa, mais uma vez, quatro anos depois! Em cada ponto onde brilhava uma lâmpada havia então, realmente, luz!
Notas:
(1) "O Poder Soviético", Editorial Calvino Limitada, 1943. (retornar ao texto)
Inclusão | 08/05/2011 |
Última alteração | 14/04/2012 |