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Fonte: Revista Princípios nº 42 ago-out/1996 pag 16-21
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
No mundo globalizado, a propaganda da burguesia rejeita e esmaga tudo o que é ligado ao nacional — e só é nacional o que é popular
As grandes mudanças de que foi palco o mundo, particularmente as que afetaram o destino da extinta União Soviética, tiveram e continuam a ter profundos e amplos efeitos na luta ideológica. O monopólio da informação e a intensidade com que efetiva a sua tarefa de mistificar a realidade histórica desempenham função essencial na imposição de conceitos cuja circulação generalizada, às vezes devida à mera repetição, busca apresentar a fase atual como definitiva, isto é, dotada de estabilidade que lhe assegura longa duração, pretendendo mesmo a eternidade. É o “fim da História”, no seu mais rigoroso sentido. Assim, devem desaparecer das análises e discussões fenômenos e conceitos que até bem pouco eram constantemente abordados, e cuja discussão era o cerne da luta ideológica. Essa propaganda em massa, alicerçada fundamente no monopólio da informação, fazia crer que a crise da União Soviética era a crise do marxismo e do socialismo. Desapareciam, assim, as razões para colocar em debate problemas que, segundo a propaganda, estavam resolvidos, e sobre os quais deve pairar o esquecimento, pois que são o passado. E o pensamento deve ceder lugar, gostosamente, à “modernidade”.
No que nos afeta de perto, ao Brasil e ao povo brasileiro, não há motivo mais para analisar o que antes situávamos como revolução de libertação nacional.
Não há mais razão para falar em libertação nacional — dizem — porque não há mais, a rigor, a categoria nação. Num mundo definido, agora, pela “globalização”, tudo o que estava ligado ao nacional — e só era nacional o que era popular — devia ser remetido ao esquecimento, não tinha mais razão de ser. A propaganda visava particularmente a área da economia. Os economistas, em cuja grei foram recrutados os profetas da “nova ordem”, aceitaram, pacificamente uns, ardilosamente outros, que não cabia mais a proteção ou a reserva do mercado interno. Na “globalização” perdia sentido discutir barreiras alfandegárias: o mercado era um só. Essa objetividade quanto à meta visada com mais urgência, e que afetava profundamente o conceito de nação, era apenas a forma agressiva de colocar como imperativo e irrecusável o triunfo absoluto do capitalismo, agora em dimensão universal. A luta ideológica, consequentemente, não tinha mais razão de existir. O terreno vinha sendo preparado, desde algum tempo, com a confusão nas relações entre capital e trabalho, com esforço em demonstrar que havia uma composição orgânica nova no capital. A campanha procurava evidenciar que o espaço do trabalho, na sociedade, estava minguando tanto que não havia mesmo que discutir os problemas antes suscitados por ele. A nova sociedade seria composta de uma só classe: a burguesia. As análises nesse terreno começaram antes da derrocada da União Soviética e como que a anunciavam. Era a preparação para a fase de aproveitamento do êxito, que se seguiu àquela derrocada e acabou se definindo no neoliberalismo. Extinta a categoria nação — como decretou o neoliberalismo -, não há como tratar de libertação nacional, e menos ainda de revolução: a “nova ordem” é fixa, estável, definitiva, não há o que mudar nem como mudar.
A perplexidade de muitos, anestesiados pelo monopólio da informação, tinha certa razão de ser, para os inocentes em política, pelo ineditismo do fenômeno. Normalmente, o raciocínio é analógico, isto é, parte da comparação com o modelo anterior. Ora, não há modelo anterior de mudança como aquela assinalada pela derrocada da União Soviética. Foi relativamente fácil apregoar que a crise da União Soviética era a crise do socialismo e do marxismo, era vitória absoluta e final do capitalismo, agora dono único do mundo. O sonho hitleriano de um mundo só, sob um só dominador, estava consumado. Daí a suposição de uma moeda só, o dólar, e uma língua só, o inglês, acalentada por alguns espertos e aceita pelos ingênuos. Embora pequeno, o prazo já foi suficiente para tomar clara a visão real: o mundo posterior à crise da União Soviética está cheio de contradições, minado por antagonismos cujo processo é tormentoso, necessariamente. No nosso caso, é preciso recolocar o problema da revolução de libertação nacional. Essa mudança profunda está no palco: o neoliberalismo não a extinguiu. Antes, deu- lhe novo contorno e nova realidade.
Nações como o Brasil, particularmente devido ao seu passado colonial, cujas sequelas não foram ainda superadas, necessitam, urgentemente, vencer o atraso histórico, para alcançar dimensões novas, no século XXI, no mais breve espaço de tempo, no decorrer de uma geração. Daí a necessidade de mobilizar todos os recursos e aproveitar todas as condições. Daí a necessidade de ter um Estado gerido por forças progressistas, centro motor de uma concentração interna de meios para canalizá-los no sentido de fazer avançar o processo. O Estado pode ser, nessas condições, instrumento eficaz na luta pela emancipação do jugo dos monopólios externos, ditos multinacionais. É dessa verdade que resulta a luta interna contra o Estado. Todos desejamos mudar o caráter do Estado, no Brasil. Não no sentido pregado pelo neoliberalismo, mas justamente no sentido oposto. A reforma do Estado deve visar à continuação e ao fortalecimento da luta pela emancipação nacional. O caráter da composição do Estado é que o define. Esse caráter depende da correlação de forças entre as classes, interna e externamente. A reforma do Estado, de que realmente muito necessitamos, ocorre em meio às contradições de classe. Daí o fato de que há classes, no Brasil, e ainda bastante poderosas, que apoiam o neoliberalismo importado e somam com o seu esforço para reduzir ao mínimo o papel do Estado. É a composição de forças, no Estado, que define a etapa do desenvolvimento da luta pela emancipação nacional. O setor estatal, em um Estado desprivatizado, isto é, despojado do seu atual caráter de servidor dos interesses privados, pode ser a base material para o desenvolvimento. Foi a secular e bem conhecida privatização do Estado, no Brasil, que levou à degradação, refletida, inclusive, na ineficiência dos serviços públicos e na corrupção de seu uso. Assim, a desmoralização do Estado facilitou profundamente a ofensiva do neoliberalismo para destruí-lo.
Na atual etapa do desenvolvimento histórico, e diante da avassaladora ofensiva do imperialismo, rotulado agora de neoliberalismo, as questões políticas fundamentais continuam a ser a nacional e a democrática. Elas, como sempre, estão unidas e não podem ser entendidas separadamente. No nível dos acontecimentos e diante da referida ofensiva, parece ficar em destaque, como dominante, a questão nacional. Claro está que os seres humanos, particularmente aqueles que conheceram duas guerras mundiais em meio século, acalentam sempre a utopia de um mundo só, sem fronteiras nacionais, ou em que essas fronteiras sejam como limites geográficos entre províncias. Mas é claro, também, que a própria existência do imperialismo mostra como a nossa época está distante da realização desse sonho, agora só existente como utopia. A “globalização" é, nos moldes como a apresenta o neoliberalismo, a negação daquele sonho. Ela busca mistificar a dominação imperialista, sob o império do mercado, transformado agora em mito milagroso, capaz de operar prodígios. Prega o fim das nações, procurando esconder que a desigualdade entre elas permanece e se aprofunda, com a supremacia, agora absoluta, daquela nação em que o capitalismo atingiu a etapa imperialista. A “globalização” consiste em tomar sagrada, sem contestações, essa dominação. As nações periféricas, para empregar um eufemismo, devem aceitar a dominação: o mercado regulará as diferenças no desenvolvimento. Os Estados devem ser debilitados, como preparação para a sua extinção, nas nações periféricas, mas não naquelas que comandam o imperialismo. Esse processo demolidor está a exigir o reexame da questão democrática.
Nos quadros da democracia burguesa, é preciso lembrar, para uma análise preliminar, o fenômeno histórico da dualidade: a democracia é, de um lado, a forma assumida pela dominação burguesa na fase da concorrência; mas, de outro lado, é na decorrência da expansão do capitalismo, na sua fase ascensional, que a luta de classes e a correlação de forças obrigam a que o exercício dessa dominação se processe no marco das normas democráticas. A etapa imperialista acarreta o esforço da democracia burguesa para reduzir a vigência das normas e franquias alicerçadas em grandes lutas passadas. O imperialismo, apogeu do desenvolvimento capitalista, toma cada vez mais instável a referida vigência. Ele sempre visou àquilo que o autoritarismo concretizou, sempre que possível: a progressiva eliminação dos direitos democráticos. O neoliberalismo, etapa e forma atual do imperialismo, tende, por isso mesmo, e com o poderoso instrumento do monopólio da informação, a levar essa eliminação à etapa final: é o “fim da história”.
Exercendo a dominação, a burguesia, na etapa atual do desenvolvimento do capitalismo, busca a limitação, e até a extinção dos direitos democráticos. Mas. ao mesmo tempo, apresenta esses direitos, que lhe foram arrancados, como sua criação e benemerência, buscando manter a ilusão de que tais direitos, na forma como existem, asseguram espaço suficiente para o exercício da cidadania a todos. A luta pela emancipação nacional está, pois, indissoluvelmente ligada à luta por manutenção e ampliação desses direitos. Daí a necessidade da participação popular nessa luta, em níveis cada vez mais altos. Trata-se de levantar a bandeira da democracia contra essa degradação. A tradição democrática pertence ao povo, e não aos monopólios. O exercício da democracia deve visar à etapa da democracia de massa. A democracia não existe quando o seu espaço e a sua vigência são estreitos, são limitados, próprios de minorias. Ela só existe quando vigora para amplas maiorias. Aí ela está viva.
Convém, desde logo, definir o conceito de democracia, tão falseado e conspurcado na sua vulgarização e desmoralização. A democracia, no fim das contas, é determinada pelas relações de propriedade e de poder. São os avanços nessas relações que definem o avanço democrático. Os recuos nela denunciam alterações negativas. Essas diferenças positivas e negativas, no grau de democratização e nos limites da formação burguesa, definem etapas de desenvolvimento da democracia. No quadro atual do processo político brasileiro, é fácil constatar os sucessivos recuos em nosso regime dito democrático. Desde a Constituição de 1988, e particularmente em tudo que se relaciona com a chamada “reforma constitucional”, esses recuos estão em escandalosa evidencia. Mas os executantes de ditas reformas persistem apregoando que a democracia existe, entre nós, e que são democratas, e que a discussão das reformas se desenvolve na plena vigência da democracia. As propostas em discussão no Congresso, como aquelas já consagradas pela maioria de seus membros, importam sempre em cassação de direitos democráticos. O arrolamento desses antigos direitos, hoje letra morta, assinala os recuos profundos na democracia brasileira que o neoliberalismo vem comandando com singular pertinácia e firmeza de propósitos. O estreitamento da democracia, entre nós, tem sido balizado no triste deslocamento para a direita de muitos esquerdistas, ou tidos como tais, ou que se apresentaram como tais, inclusive economistas esmagados pela fúria publicitária do neoliberalismo, fundada não em discussões, mas no monopólio da informação, particularmente pelo controle dos meios de massa, entoando o coro em que o conceito de democracia perdeu sentido e a luta ideológica desapareceu do cenário. A perplexidade diante do quadro tanto internacional quanto nacional como que cegou aqueles cuja identificação com a democracia era expressiva.
A característica desse quadro é a confusão, particularmente a confusão conceituai. A confusão essencial é aquela que faz passar por democráticas posições e medidas que tendem sempre a reduzir os direitos da cidadania. A sonegação da realidade, encoberta e escondida pela nebulosa da propositada confusão, desloca as discussões políticas, nos estreitos limites em que ela se exerce, para questões semânticas e secundárias. A necessidade preliminar e essencial, portanto, consiste em centrar as discussões políticas no quadro dos problemas fundamentais do nosso povo. Não é a temática da “globalização” e da força reguladora do mercado que deve ocupar as atenções, mas a triste realidade dos graves problemas com que nos defrontamos. Velhas palavras de ordem, robustecidas pela repetição, dominam o cenário. Só se escreve e se fala na necessidade de reduzir o papel do Estado na economia e de tornar ilimitada a liberdade do mercado, permitindo que este determine os rumos. Enquanto se discute o sexo dos anjos, prosseguem, inexoráveis e tempestuosos, a “privatização” das empresas estatais, os violentos cortes nos gastos correntes, deixando um roteiro de ruínas: o sucateamento da rede hospitalar, a destruição da estrutura do ensino público, o fim da pesquisa científica e do estudo das inovações tecnológicas. A salvação do país está reduzida à demissão em massa de funcionários públicos, à redução dos salários, à reforma da previdência para ampliar espaço às empresas privadas. Menos gente trabalhando, funcionários sem estabilidade, escolas sem professores — este é o quadro pantanoso de uma estagnação prolongada e ameaçadora. Enquanto se acelera o andamento dessa reforma demolidora, o salário é aviltado, a miséria amplia consideravelmente as suas proporções, as doenças dizimam a população, o desemprego cresce a cada dia, mas o neoliberalismo prossegue na sua marcha sem pausa rumo à “modernidade” — é o “fim da história”.
Democracia e um regime cuja essência ultrapassa em muito a realização de eleições. As eleições, isto é, o provimento do poder pela escolha popular, são um elemento da democracia. Isoladamente, e nas condições do Brasil, elas aparecem como o engodo de apresentar a parte como o todo. A estrutura da sociedade brasileira retira ao processo eleitoral a característica democrática. Esse processo, no seu formalismo, é uma espécie de concessão às aparências. A subordinação do processo eleitoral à triste realidade de uma estrutura social que o desfigura denuncia a presença, no Brasil, de uma sociedade autoritária, elitista e excludente. A luta política, nas proporções agudas mas difíceis com que ela se apresenta hoje, entre nós, exige a aceitação da situação concreta, incorporando à teoria a dose de pragmatismo inerente à realidade. A política, é bom não esquecer, é o manejo dos dados que a realidade apresenta.
A situação confusa com que nos defrontamos está a exigir, preliminarmente, o reexame da sociedade brasileira e da sua divisão em classes. Os estudos anteriores, por assim dizer clássicos, colocavam em relevo a presença dominante, na nossa sociedade, de uma classe secularmente detentora do poder, com os seus alicerces no escravismo e na propriedade territorial. Esse foi o quadro que motivou a colocação, nos estudos, de uma espécie de feudalismo, retratado na longa e indisputada predominância de uma classe com esses traços característicos. O avanço das relações capitalistas, aqui, vencendo grandes resistências, teve de coexistir com a pesada herança histórica mencionada. O aviltamento do trabalho por força do escravismo secular foi um traço dessa resistência. Mas o traço fundamental residiu na propriedade da terra e na classe que a detinha. Daí o longo silêncio do campo, mesmo na história contemporânea do país, só iniciando o seu rompimento em fase muito recente. De qualquer maneira, para evitar uma análise histórica mais demorada, é possível traçar as linhas mestras da sociedade brasileira hoje, como representando, esquematicamente, a seguinte divisão de classes: burguesia, campesinato, proletariado e camadas médias. A composição de cada uma dessas classes tem sofrido grandes mudanças nos últimos tempos, diferindo elas bastante dos traços que as definiam antes. A burguesia incorporou, com o alastramento das relações capitalistas ao campo, os tradicionais proprietários de terras, ao mesmo tempo que alterou os seus quadros, de sorte a apresentar, hoje, uma galeria numericamente mais reduzida e de formação recente. O campesinato, com as referidas relações em expansão, mudou sua fisionomia pelo irrompimento do trabalho assalariado. O aparecimento dos chamados “sem- terra,f e sua mobilização reivindicativa assinalam esse assalariamento relativamente recente. O proletariado, por sua vez, apresenta alterações provenientes do crescimento da vida urbana e da concentração empresarial: hoje, sua fração mais importante é aquela que serve às grandes empresas.
As mudanças mais acentuadas foram, sem dúvida, as que afetaram as camadas médias. A existência de camadas médias foi sempre expressiva, mesmo nas sociedades em que as relações capitalistas mais avançaram. No Brasil, entretanto, elas não só foram precoces em seu aparecimento, que data da mineração aurífera, como cresceram extraordinariamente, em particular no século XX, e apresentam hoje uma heterogeneidade singular. Nessas camadas médias, para facilidade de análise, cumpre distinguir duas, que têm características diferentes: a pequena burguesia e os grupos não-proletários. Alguns estudiosos conhecem como pequena burguesia a totalidade das camadas médias. Preferimos separá-las e melhor definir cada uma. A pequena burguesia compreende aqueles que possuem pequeno capital e exploram o trabalho alheio em pequena escala, ao mesmo tempo que criam valor com o seu próprio trabalho. O grupo dos não-proletários, que a crise atual está fazendo crescer desmedidamente, abrange os que não possuem meios de produção. Na maior parte, os seus elementos se empregam como assalariados do Estado (funcionários públicos, médicos, professores etc.) e de empresas capitalistas (empregados, administradores, pessoal de serviços, aprendizes, vendedores etc.). Destacam-se ainda nesse grupo engenheiros, técnicos, especialistas diversos e os artistas, no seu espaço profissional. Pertencem também às camadas médias estudantes, militares e membros do clero. Estes são grupos numericamente reduzidos, mas com muita influência política, e por isso desfrutam de algum destaque. Os salários dos diversos e heterogêneos grupos não-proletários das camadas médias são, em regra, melhores do que os dos proletários. Não é essa a única diferença em relação aos outros grupos; outra diferença reside em que a maior parte de seus elementos não emprega o trabalho físico. O crescente assalariamento das camadas médias contribui para acentuar diferenças de classe. Essas diferenças podem ser observadas, por exemplo, no comportamento dos sindicatos: aqueles constituídos por elementos das camadas médias diferem dos que são constituídos por elementos proletários.
As camadas médias têm tido um crescimento numérico acelerado, nos últimos anos, particularmente desde a vigência das reformas ditadas pelo neoliberalismo. Com o acelerado processo de urbanização do nosso povo, esse crescimento aparece mais: a cidade é o seu espaço. A modernização do sistema produtivo não tem crescido na proporção capaz de absorver numerosos grupos das camadas médias. Cabe, aqui, uma observação: nas áreas do capitalismo desenvolvido, os estudiosos denominam “desemprego estrutural” aquele derivado do descompasso entre o alargamento da utilização de avanços tecnológicos e o aumento da demanda de trabalho. Não é o caso do Brasil, onde a propaganda do neoliberalismo apregoa que o desemprego é dessa natureza. Não é: o nosso avanço tecnológico não atingiu esse patamar; o desemprego, aqui, deriva direta, absoluta e puramente da vigência das normas estabelecidas pelo neoliberalismo, tal como acontece com os milhares (ou milhões) de elementos agrupados, hoje, nas áreas urbanas, naquilo que se conhece como ‘‘economia informal”. Só o triste espetáculo apresentado por esse fenômeno inteiramente novo no Brasil bastaria para denunciar uma estrutura econômica enferma. O neoliberalismo, entre nós, agrava velhas mazelas, generaliza outras e cria as suas próprias, degradando camadas cada vez mais amplas. Sob o título espantoso de “modernidade”, o povo brasileiro está conhecendo hoje, em proporções gigantescas, a miséria, a fome e o desemprego em massa. A cada dia aumenta a área dos excluídos, em nosso país: excluídos dos hospitais, excluídos das escolas, excluídos dos empregos. Salvo a minoria dos afortunados gerados pela desvairada concentração da renda, nosso povo compõe hoje um quadro inédito de pauperização.
Esse é o panorama em que se desenvolve agora a luta política em nosso país. Ela exige a unidade clássica entre a classe operária e os trabalhadores do campo, mas também com a parcela imensa e crescente dos trabalhadores não- proletários. Os caminhos para essa unidade são difíceis, encontram obstáculos de natureza variada, acrescidos pelas resistências geradas e mantidas pela reação. Se as camadas médias têm peso crescente, nos últimos anos, sua instabilidade representa enorme obstáculo à unidade política. Pelas suas origens e pela sua composição heterogênea, elas são mutáveis e vacilantes. A tomada de consciência, nos seus elementos, é um processo difícil, com avanços e recuos, desfalecimentos e radicalizações. Elas reagem de forma inusitada às viragens políticas, às mudanças bruscas do quadro. Exemplo interessante ocorreu em agosto de 1954: até o suicídio de Vargas, as camadas médias, intensamente trabalhadas pela mídia, portavam-se como aliadas do golpe em andamento; tão logo eclodiu a notícia do suicídio, elas partiram para as ruas, nas grandes cidades, e ameaçaram seriamente o êxito da campanha golpista, que foi detida às vésperas de uma vitória completa. Como as camadas médias não são homogêneas nos interesses econômicos, a tomada de consciência, nelas, é um processo quase sempre demorado e sempre pontilhado de avanços e recuos. Extremamente sensíveis à ação da mídia, seus elementos, mesmo os mais próximos do proletariado, guardam grande preocupação com a segurança e, em algumas áreas, com a posição individual, o chamado status. Exemplo desses traços foi a forma como apoiaram o golpe de 1964, que nelas alicerçou a sua força e a possibilidade de ruptura do regime vigente. O avanço político das camadas médias é, por todos os motivos, cheio de irregularidades. Algumas de suas frações abandonam a luta cedo e demonstram fraca resistência aos reveses.
A análise política do comportamento das camadas médias deve partir, necessariamente, da fundamental subordinação do democrático ao socialista. Essa subordinação não deve, entretanto, prejudicar as alianças com as camadas médias. Elas são indispensáveis à erradicação, em nossa sociedade, de tudo que nela gera e mantém a tradição autoritária e os traços elitistas e excludentes. E sempre perigoso desconhecer as inconsequências das camadas médias e a oscilação de suas tendências, mas é preciso não esquecer que o processo real transforma as estruturas sociais e até os protagonistas. A consciência política não é um fenômeno espontâneo; surge, às vezes, da própria luta. A opção revolucionária não é uma linha reta nem acompanha uma curva sempre ascen- sional. Muito ao contrário, é pontilhada de pausas, de hiatos, de vazios. O vazio do atraso, das dúvidas, das incertezas, é próprio ao seu preenchimento pelas componentes revisionistas. Daí o seu maior perigo. Na luta ideológica, por isso mesmo, eles se alimentam da falta natural de continuidade no processo, dos problemas oriundos da complexidade da luta política e da heterogeneidade das forças que dela participam. No que concerne às camadas médias, suas reações obedecem a três formas de manifestação: a dos elementos que sustentam a luta revolucionária, a dos elementos que se esforçam pela melhoria de situações particulares, por vezes individuais, outras vezes meramente reivindicativas, e a dos elementos que optam deliberadamente pelo apoio à reação. Os limites entre essas formas de manifestação são mutáveis, oscilantes, sempre imprecisos. A compreensão das características do processo político, em cada fase, estabelece as condições em que esses limites se definem. O fato é que as camadas médias, unindo-se ao proletariado e ao campesinato, constituem componente importante do processo político.
Esse processo se desenvolve sob a pressão de duas forças poderosas: aquela advinda das condições reais e aquela advinda da forma como a mídia apresenta as condições reais. Tais forças resultam da realidade social e econômica. Há fases em que o antagonismo entre elas é flagrante: de um lado, a mídia procura fazer crer que o neoliberalismo, agora, é uma fatalidade da qual não podemos escapar, e a cujos imperativos devemos obedecer cegamente; de outro lado, campeiam a miséria, a fome, o desemprego. De um lado, prega-se a submissão a motivos políticos ornamentados de termos abstratos, “modernidade”, “globalização’' etc. De outro lado, a realidade de falências e concordatas que se multiplicam, os genocídios no campo que se repetem, multidões de excluídos buscando trabalho e se desesperando na miséria. O neoliberalismo busca embalar as consciências com palavras sonoras e vazias. O povo, a cada dia mais pobre, procura compreender a razão de sua miséria. Assim avança, às vezes tragicamente, o processo político brasileiro em nossos dias.