Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


2.11 - Para além de uma sociedade de classes


Teremos esgotado a lista dos maiores problemas com que se deve confrontar um renovado conceito do comunismo? É óbvio que não. Ainda sobram, e cada vez são mais, questões por vezes clássicas mas o mais das vezes inéditas que não entram no quadro a que nos ativemos aqui. É o que se passa primeiro que tudo com a questão demográfica, matéria de tradicionais fantasmas mas também de graves e reais preocupações, quando o crescimento numérico da humanidade desacelera, mas de modo tão desigual - aqui uma expansão que continua explosiva, acolá uma queda extrema da taxa de fecundidade, em ambos os casos com temíveis efeitos socioeconómicos. Há depois a questão ecológica em toda a sua amplitude, das mil formas de poluição dos ambientes da nossa vizinhança até à gravíssima desestabilização dos grandes equilíbrios naturais, passando pelo esgotar de recursos essenciais e não renováveis. Também e cada vez mais a questão antropológica, nascida em particular da revolução biomédica e em que a própria condição humana começa pouco a pouco a ser subvertida, do nascimento à morte, da identidade genética à actividade física, com já visíveis consequências quanto à imagem de si, à relação parental e a muitas representações e práticas sociais. De um modo mais lato ainda, a questão do desenvolvimento acelerado dos saberes e saberes-fazer científicos, no momento em que se toma possível reproduzir artificialmente, quer o universo perceptivo ou o raciocínio inteligente dos humanos, quer o caldo primitivo que se seguiu ao big-bang ou a identidade genética das espécies vivas; isto com o esboçar de efeitos societais e civilizacionais potencialmente exaltantes, mas dos quais, mais do que um, não deixam de ser inquietantes no contexto actual: das utilizações perversas do virtual até ao "mal-comer". Todos estes problemas se acumulam e se complicam, com a desarmante rapidez que lhes imprime uma corrida desvairada à performance ao lucro. Rapidez que ultrapassa, e de longe, o actual ritmo de organização de um desenvolvimento sustentável ou o ritmo de aplicação de um princípio de precaução e faz com que antecedam com demasiada frequência qualquer deliberação ética, a montante, ou qualquer apropriação democrática, a jusante, cavando assim os mais graves fossos culturais quer entre gerações quer entre nações. Ora, diferentemente dos que até aqui evocámos, não são já de maneira nenhuma em si mesmos problemas de classe. Como é natural, pondo-se num mundo dominado pelo capital, todos trazem a sua marca. Assim, o saque irresponsável da natureza ou o aventureiro abalar da condição humana têm muito a ver com a ditadura da rentabilidade financeira, e o ritmo insustentável de muitas inovações reflecte directamente o seu ofegante carácter de curto prazo. Mas, embora todos reflictam a alienação geral do mundo actual, a sua tão necessária desalienação não resolverá contudo as questões postas. Questões que são as da escolha a fazer relativamente ao próprio sentido em que se quer que prossiga o desenvolvimento da hominização.

Novidade assaz solene: a humanidade começa a poder decidir o que vai ser. Que sentido dar a este ser? Viver para enriquecer ou enriquecer a vida? Aceitar o limite ou fazer tudo para ir além dele? Ter uma abordagem utilitarista ou militante da sociedade? Inscrever-se na natureza como ecologista ou como fazedor de OGM? Considerar a condição humana como um breviário ou como um rascunho? À secular clivagem entre os compromissos de classe ou as opções políticas, cuja pertinência, como muito bem sente a opinião pública, se esgota nestes domínios, começa a suceder, inseparavelmente universal e pessoal, a escolha ética entre desígnios de humanidade. A questão dos fins torna-se aqui, para todos, a grande questão, inclusive nas suas dimensões filosóficas. Haverá algo mais filosófico, por exemplo, do que o problema do universal? E ele põe-se doravante por todo o lado, do doméstico ao mundial. Estava no centro do veementíssimo debate francês de 1999 sobre a paridade política entre mulheres e homens. O "homem" dos direitos do homem será um universal abstractamente assexuado? Se o for, negligencia então a mulher enquanto tal. Será, pelo contrário, um ser concreto de sexo determinado? Se assim for, que acontece então com a sua universalidade ético-juridicamente tão essencial para todos? Poder-se-á sugerir, com um pouco dessa tão mal conhecida dialéctica, que o ser humano em geral, na sua universalidade concreta, não é nem sem sexo, nem deste ou daquele sexo, mas sim sexuado tanto de um modo como doutro, o que dá desde logo sentido à exigência de paridade sem de modo algum ferir a exigência de universalidade? Por todo o lado surgem interrogações deste tipo, e isto é só um começo. Interrogações antropológicas significativas daquilo que será o estofo de que se fará a história humana depois do fim da nossa pré-história. Hoje fundamentalmente sobredeterminados pelos seus contextos e apostas de classe, esses problemas nem por isso deixam de ser, nos seus próprios fundamentos, os da futura sociedade sem classes. Mas, aparente paradoxo, a ideia comunista não é já capaz de, por si mesma, propor uma resposta para eles. É que ela tem como objecto único a saída da sociedade de classes, a desalienação da história humana. Numa sociedade desalienada, a ideia comunista terá pois deixado de apontar o futuro: aos nossos descendentes incumbirá inventar o seu novo rumo, quer dizer, a humanidade melhor humanizada em que quererão tornar-se. Com estes problemas pós-classistas de fins humanos, vemos assim aflorar não só o horizonte do comunismo mas também o da sua própria superação futura enquanto indicador global de sentido, no mesmo momento em que ainda chafurdamos nos problemas pré-históricos do desemprego de massa, do racismo ou da guerra "limpa"... Difícil estado de coisas, este extraordinário novelo de épocas tão diferentes que é necessário gerir juntas, arcaísmo sufocante e futurismo desconcertante.

A potência do conceito de comunismo não se revela, sem dúvida, em parte alguma tão bem como na capacidade que nos dá de pensar sem demasiada confusão esta prodigiosa discordância dos tempos e de evitar as suas armadilhas: superpolitização anacrónica sem pertinência ou despolitização prematura sem clarividência.

Devemos ainda deter-nos sobre uma consideração de ordem muito diferente antes de abordar as implicações práticas deste retrabalhar conceptual. Aquilo a que chamei "nova janela histórica" só foi até aqui encarado nas suas dimensões estruturais - exploração e alienação, relações económicas e políticas, questões de classe e pós-classistas... Ora esta janela é igualmente uma realidade temporal, muito mais vasta do que a conjuntura mas, como esta, definida por uma singularidade de circunstâncias. E, mesmo só indicando aqui os seus traços mais destacados, qual é hoje esta singularidade? Não é risonha. É em primeiro lugar o vazio vertiginoso que deixou o desmoronamento do campo socialista e do movimento comunista, vazio em que se engolfaram negociatas de malfeitores, nacionalismos sanguinários, charlatanismos políticos de todo o jaez; isto e a cada vez mais impudente propensão para uma hegemonia universal que "anima a classe dirigente dos Estados Unidos. Bruscamente desembaraçado de contrapeso, o capital desencadeou uma nunca vista orgia financeira; devastando o planeta inteiro e pondo a saque um século de conquistas sociais, a ponto de nos fazer recuar para extremos já esquecidos de privação e escravidão, mas isto através dos meios sofisticados das dominações de hoje. Mas é contudo um doente em estado avançado quem preside aos nossos destinos, neurótico por causa das suas contradições, gangrenado por máfias, minado pela ausência de um qualquer projecto humano. A alienação triunfa: os poderosos decidem sem dirigir o que quer que seja e as catástrofes abatem-se sobre os indivíduos e os povos, esmagados e enganados para além de qualquer capacidade, seja de crítica seja de luta. Há muito que o curso das coisas humanas se não assemelhava tanto a um processo selvagem de história natural. Há que temer o pior. Estarei eu a enegrecer em demasia o quadro? É verdade que há algumas zonas claras. Não há continente em que oprimidos se não batam. Não há domínio em que o liberalismo não encontre agora uma resistência qualquer. Desde meados dos anos noventa, particularmente em França, erguem-se prometedores movimentos sociais. Digam o que disserem, a própria ideia comunista está pujante. Aqui está algo que dá demasiada alegria para que se tenha a tentação de o esquecer. Mas como não chocar-se, contudo, com o tragicómico contraste de ordem de grandeza entre as colossais alienações em acção e o raquitismo das reacções actuais, entre os gigantescos problemas que avassalam o mundo e a pequenez das respostas disponíveis? E isto num momento em que se chega a perguntar se a humanidade sobreviver, ainda, como espécie não bestial, em 2084. Talvez por isso o leitor tenha ficado estupefacto com a aparente tranquilidade com que, ao longo de todo este capítulo, se trata do comunismo como de uma perspectiva histórica não só credível mas, mais do que isso, actual. Terá o autor verdadeira consciência do mundo real em que estamos? Tem consciência, tem. Nós, os que insistimos em querer "mudar o mundo", voltamos a partir de muito baixo. E, embora a história tenha sempre na manga o imprevisível, devemos contudo contar com que o caminho seja longo. O que nem por isso faz com que haja menos fortes razões para pensar que, mais uma vez, a humanidade se fixa uma tarefa que pode resolver. A primeira dessas razões é precisamente o desaparecimento do "socialismo real". É mérito dos refundadores comunistas ter visto logo que, como o dizia o seu manifesto de 1991 Urgência de futuro, sendo essa morte num certo sentido um "terrível revés" que modificava a "relação mundial de forças em favor do capital", era ainda mais necessário ver nela um "formidável levantar de uma hipoteca histórica": a dissociação finalmente possível entre o desígnio comunista e a sociedade do gulag. Para as novas gerações, a União Soviética já não passa de um capítulo do programa de história. A sociedade sem classes pode voltar a ser uma ideia nova. Com o desvanecer do campo socialista, o capitalismo tornou-se o senhor do mundo. Mas também aqui a coisa se inverte: dominando quase sem partilha, perdeu por isso qualquer álibi quanto às infindas desgraças do tempo presente. Este é o segundo trunfo capital para um relançar da transformação radical. Quem senão ele é responsável pelo horror económico e pelo estrago ecológico, pela degenerescência mafiosa e o desnaturar venal da cultura? Aqui está o que ajuda a fazer compreender que nada de essencial mudará sem a sua superação gradual mas resoluta. Verdade, mas será que temos tempo de esperar? Ao ver o ritmo a que se acumulam os mortais prejuízos do tornado neoliberal, poderá fugir-se à evidência de que entrámos numa corrida contra o tempo? Terceira inversão lógica: a aguda premência das ameaças não terá por vocação transformar-se em crescimento acelerado das réplicas? Ninguém conseguirá impedir que, para cada vez mais gente, cada vez mais coisas não possam realmente continuar como estão, drama dos desempregados ou aquecimento do planeta, asselvajamento das relações humanas ou catástrofe sanitária em marcha no continente africano - dava para encher páginas com exemplos destes. Assim, a nova janela histórica comporta em si algumas pré-condições da sua abertura. Não faltam pois as forças potenciais para arrancar em grande com a superação do capitalismo; o capital encarrega-se de I as multiplicar. Mas, para que muitas delas se transformem em actuais, é muitas vezes necessário fazer com que os motivos jorrem de tão fundo como a agua no deserto, muito para além da sua desactivação pelo sentimento de impotência e abstencionismo político, da sua deriva para a violência estéril ou da sua focalização em causas demasiado curtas... E aqui está o que nos leva à crucial questão prática que põe o retrabalhar conceptual que se acaba de esboçar: como, a partir de hoje mesmo e de modo convincente, fazer política com a ideia comunista repensada?

[pgs 139_145. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]


Inclusão 02/08/2002