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Começamos a ver que renovada capacidade de análise e de transformação nos dá a passagem de uma cultura de socialização dos meios de produção para uma outra, muito mais vasta e profunda, de reapropriação de todas as forças humanas, de que só pude dar contudo aqui alguns vislumbres. Não valerá a pena começar a pensar nisso activa e colectivamente, para restituir ao projecto comunista, hoje tantas vezes tratado como se fosse um cão morto à beira da estrada, a sua incomparável força de convicção e mobilização? Ainda uma coisa, sem pretender acabar o inventário: A ideia de alienação engloba não só a clivagem de forças mas também a perda de sentido. É um imenso capítulo do nosso drama contemporâneo o que sob esta fórmula se pode ler. Num ciclo não alienado de objectivação, os poderes humanos socialmente coisificados retomam, na sua constante reapropriação pessoal, um sentido subjectivo: é assim que constantemente fazemos viver o porquê dos nossos instrumentos e das nossas palavras, das nossas instituições e dos nossos costumes. Mas o divórcio impiedosamente alienante entre os teres, poderes e saberes humanos e os seus produtores corta nos dois sentidos a estrada do sentido. Meios sem fins por um lado - e o gigantesco crescimento dos poderes humanos tende a metamorfosear-se em cega e demasiadas vezes esmagadora "força natural"; fins sem meios por outro - e os indivíduos vêem-se condenados a vaguear no absurdo, entre quimera e impotência. Vivemos a mais histórica das crises de sentido, claro sinal de que, de um modo ou de outro, a nossa pré-história social não poderá durar muito mais: comunismo nascente ou desumanização final? O que de mais acusador há a dizer contra esse velho, ainda loução por fora mas morto por dentro, que ainda é o capitalismo - e diz-se-lo tão pouco - é a sua total incapacidade em dizer-nos para quê deveríamos nós sofrer as mil mortes que nos inflige. A humanidade está em vias de se destruir material e moralmente para nada - para uma frenética acumulação de riqueza abstracta destituída de qualquer sentido antropológico, o que a tão terrível desmoralização da camada dirigente ilustra até ao insustentável. Não há pois questão mais central a pôr-se, hoje, do que a dos fins das nossas actividades humanas. Era aliás certamente a mais redibitória das insuficiências dessa cultura do socialismo deslumbrada pelos meios de produção: por detrás desse como, esqueceu o "porquê". Será excessivo pensar que até a fabulosa alienação estalinista aí residia em germe?
Começar pelos fins: este é o bom ponto de partida de um comunismo para o nosso tempo. Porquê, quer dizer para quê trabalhar, ir à escola, ir votar? ... Qualquer desalienação da política começa por uma real escuta dessas lancinantes questões de sentido, e pelo sentido das respostas que se mostrar capaz de tecer com os que questionam. O que é que, de humanamente defensável, se quer produzir pelo trabalho, formar pela escola, mudar pelas eleições? Nenhuma actividade social escapará certamente à asfixia se não renovar a fundo o oxigénio do seu para quê.
O capital, quanto a ele, já se não dá ao trabalho de dissimular, quando se não permite o cinismo de ostentar que o que o faz correr, muito mais do que os prazeres pessoais, é o dinheiro pelo dinheiro e o poder deste, que o seu fim último é pois ele próprio: esta carência de uma finalidade humana é a sua condenação. Mas, a um nível ético completamente diferente, será possível encontrar um para quê final que valha por si? O pensamento ecológico deve sem dúvida uma boa parte da sua audiência ao facto de, no seu melhor, pôr esta crucial questão dos fins, coisa em que se confirma um certo parentesco entre ele e o comunismo. O seu filósofo de maior notoriedade, Hans Jonas, formula em Le Principe, Responsabilité (Éditions du Cerf, 1990) [O Princípio Responsabilidade] - um livro sobre o qual se não deve esquecer que pretendia ser uma resposta ao Principe Espérance [Princípio Esperança] do marxista Ernst Bloch - este máximo imperativo que nos conjura a não comprometer, com as nossas acções, "a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra" (p. 30). Mas o que é uma vida autenticamente humana? A concordar-se com Jonas, a boa resposta: estaria já para trás: desde sempre dada pela natureza viva, de que somos membros, e provavelmente de essência transcendente, logo sagrada, já que o homem não seria a fonte autónoma dos seus fins e ainda menos deveria propor-se a inquietante tarefa de progredir em humanidade. A este projecto, que considera totalitário, opõe ele o dever de transmitir o imóvel património que desde sempre nos constitui. Assim, o homem tal como é, na natureza tal como é, serve em última instância de fim em si neste pensamento deliberadamente conservador. Isto não impede que também haja Verdes de esquerda, mas dá vontade em qualquer caso de levar muito mais a fundo com eles a discussão amigável sobre os fins humanos que sejam dignos de estar na base de um projecto político emancipador para o nosso tempo. Tanto mais que a questão não diz menos respeito ao pensamento comunista, todo ele virado pelo contrário para o desenvolvimento das forças humanas na sua constante apropriação por todos os indivíduos. Mas porquê, em suma, ver nisto o que por excelência vale? Responde Marx: começando por ser engendrada pela natureza, a humanidade desenvolvida auto-reproduziu-se através da sua própria história, e é o próprio "desenvolvimento histórico que "faz um fim em si [...] desse desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais" (Grundrisse, tomo I, p. 424). Também aqui o último para quê desemboca num fim em si, mas de uma espécie muito diferente: não antecipadamente, decidido antes de nós pela natureza, mas aberto diante de nós pela história, como uma verdadeira finalidade prática, aquela que consiste em assumir a imensa responsabilidade de prolongar a hominização biológica, e depois social, de ontem e de hoje, numa humanização futura cada vez mais civilizada e portadora de sentido plenamente interiorizável por todos os humanos. Quantas coisas difíceis e cativantes a debater em tudo isto, coisas que estão no cerne de uma política verdadeira, ultrapassando as suas consternantes caricaturas.
Isto chegará certamente para autorizar esta nova conclusão: um conceito autenticamente marxiano do comunismo, renovado por uma reflexão exigente sobre o que nos ensinaram as rudes lições quer do "comunismo" a Leste quer da sua impotência a Ocidente, continua a revelar-se dos mais produtivos, queiram ou não os mediáticos augures, para reconceber de modo plausível uma superação do capitalismo nas condições do nosso tempo e para traçar as vias de desenvolvimento sustentável de uma humanidade melhor humanizada. Nem sequer vejo outro a que se possa atribuir uma pertinência. Mas, por um movimento recíproco, o seu confronto com as realidades cada vez mais insólitas de hoje produz muitos motivos de o transformar no seu próprio sentido, para o pôr mais em fase com a janela histórica de que falávamos atrás. Começaremos por analisar as modificações menos alterantes para irmos depois às mais radicais. E para o fazer deveremos evidentemente apoiar-nos nas mais impressivas mutações da sociedade e do mundo contemporâneos, o que põe um problema de princípio. Como vimos, este livro só visa expor, de maneira hipotética mas tanto quanto possível rigorosa, a teoria de uma política, coisa pouco vulgar nos tempos que correm. Numa abordagem cuja dimensão filosófica foi assumida desde o começo, tomei como fio condutor a ideia comunista, e pretendo segui-lo até ao fim. Assim não poderia de modo algum, sem competência nem verosimilhança, querer "meter a minha colherada" em questões concretas sobre as quais os especialistas de ciências económica, social, política, jurídica e outras, tal como os que têm conhecimento prático das realidades correspondentes, se encontram notoriamente divididos. É por isso que, no confronto crítico do conceito de comunismo com os factos actuais, me limitarei a reter desse real as novidades mais manifestas, fontes de necessárias remodelações do conceito. E, mesmo assim, não o farei sem chamar vivamente a atenção do leitor para os perigos incorridos de interpretação contestável ou mesmo de erros de diagnóstico.
[pgs 100_104. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |