Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


1.10 - Uma nova janela histórica


E no entanto mantenho que todos estes questionamentos tão largamente contestáveis nos remetem, mesmo assim, para uma última questão que não se pode iludir: o fim da União Soviética, este aborto de século e meio de história revolucionária não nos proibirá para sempre de nos situarmos na continuidade dessa história? Pode um acontecimento de tamanha envergadura, cesura singular onde submerge toda uma postura geral, ser tido por outra coisa que não seja o "fim do jogo"? Mas poderá haver nele verdadeiramente, ao mesmo tempo, continuidade profunda das contradições do capitalismo e descontinuidade profunda no seu modo de superação? Chegou a altura de ser dialéctico. Teremos o direito de dizer, como várias vezes fiz por meu lado, que uma contradição não resolvida nem por isso se encontra em suspenso, e que, pelo contrário, prossegue o seu trabalho em profundidade? Certamente, mas, se fracassar radicalmente aquilo que a devia resolver, ela muda inevitavelmente de fase, sendo que a história, como se sabe, não se repete. Transição de fase histórica de contradições não ultrapassadas: aqui está sem dúvida uma noção de importância inédita que é necessário juntar a uma conceptualização viva do materialismo histórico. Há século e meio nasceu uma grande causa: a da revolução socialista que o proletariado dirigido por um partido de vanguarda, conquistando em seu nome o poder de Estado para socializar os meios de produção, devia levar a cabo. O irrecusável fracasso da causa assim definida faz-nos entrar, já por si, numa outra época. Mas há mais: todos os dados essenciais que tinham tomado duravelmente plausível tal empreendimento metamorfosearam-se com o tempo: modo de produzir, estruturas de classe, lógicas políticas, realidades sociais, motivações pessoais, espírito do tempo, estado do mundo... Assim se encerrou uma janela histórica - entendo esta janela como um quadro temporal limitado, em que as condições provisoriamente existentes tornam possível um dado tipo de estratégia transformadora, e impossíveis outras estratégias. Este termo retirado da astronáutica - janela de tiro - para lançamento de um satélite - parece-me estar fadado para se tornar um conceito-chave da teorização histórico-política, aliás, ainda num sentido muito mais qualitativo do que quantitativo, e não estreitamente conjuntural: a conjuntura fala da singularidade imprevista de um momento; a janela histórica, essa, com mais forte teor racional, fala de todo um período.

A bem dizer, a janela aqui evocada estava já em vias de se fechar com as grandes mutações cuja emergência o Maio de 1968 traduziu de maneira confusa - de onde a incoercível obsolescência progressiva do comunismo tradicional, para não falar do brejnevismo, apesar de todos os esforços de actualização, aliás demasiado limitados. Hoje, em todo o caso, esta janela histórica que o Manifesto tinha identificado, a janela dita da "revolução proletária" e mais tarde do socialismo, fechou-se irremediavelmente: "classe operária" já não é a grande figura identitária das forças potenciais da transformação social, nem "o socialismo" é já o seu suficiente desígnio, nem "a revolução" o seu modo adequado, nem "o partido de vanguarda" o seu agente apropriado. A causa mantém-se, entenda-se, na sua acepção mais essencial, mas tudo difere nas suas determinações concretas. Aqui opera-se a clivagem entre um comunismo doravante arcaico que ao recusar admitir o fecho da janela fecha por isso mesmo todo o futuro, e um comunismo em refundação atribuindo-se a tarefa de exploração teórica e prática da nova janela histórica, ainda tão mal conhecida e que o capitalismo e o anticapitalismo de hoje começam a desenhar de maneira conflitual, e de invenção da nova cultura, da nova política e da nova organização autenticamente comunistas que podem permitir tirar partido desse conflito. Os próximos capítulos esperam dar algum contributo para esta tarefa tão árdua quão altamente motivadora. Mas para concluir aqui a questão da história, direi que ela só é um túnel para quem não sabe nem quer abrir a sua janela. Com todas as reservas, não puramente formais - cuja justeza já admitimos - afirmamos que existe alguma possível e pertinente intelecção da história em vias de acontecer, e alguma esclarecida e possível prática do revolucionar social a encetar. Não, na melhor parte da sua obra Marx não hiper-racionalizou a história. Pode-se considerar, no entanto, que ele ainda a não dialectizou suficientemente de maneira materialista. Subestimando constantemente os atrasos de consumação das lógicas históricas que discernia, por outras palavras, vendo mal até que ponto as suas visões prospectivas estavam em avanço em relação ao movimento real, Marx não perspectivou que a era de saída da pré-história humana pudesse ser não uma relativamente curta época homogénea mas uma muito longa história com janelas históricas profundamente mutáveis. É esta mudança qualitativa, das mais inesperadas, que nos vai ser necessário tirar a limpo.

Resta que o futuro tinha um nome e que o conserva. Com esta formulação, é claro, totalmente metafórica, quer-se significar que, a despeito das suas contingências e turbulências, descontinuidades e falsos semblantes, a história encerra na sua teimosa objectividade suficiente lógica continuada para oferecer a uma subjectividade combativa razoáveis hipóteses de levar a cabo uma grande causa. Ora, haverá algo de mais grandioso e necessário, tanto objectiva como subjectivamente, do que acabar com uma inumana sociedade de classes, desde sempre e hoje cada vez mais em vias de desencadear uma proliferante e irreversível desumanização do género humano? Consintamos em chamar ao futuro sociedade sem classes - mas porquê comunista, a qualquer preço? Que a primeira denominação provoque tanta indiferença, enquanto que a segunda, todavia seu sinónimo, é ainda tão disputada, não bastará para mostrar quanto a questão comunista está decididamente longe de estar encerrada? É por isso que não é de modo algum supérfluo continuar a argumentar, num debate em que a aposta é demasiado alta para poder já não estar em jogo. Objectaram-se (ainda se objectam) duas coisas em relação à manutenção da palavra comunismo como designação teórica e política do movimento universal de emancipação que o nosso tempo reclama: o seu conteúdo semântico e a sua ressonância histórica. Sobre o primeiro ponto, sem negar que o termo queira dizer pôr em comum, e por isso diga solidariedade, e queira dizer pôr em comuna (município), e por isso diga autonomia, fez-se valer que o comum é também o gregário, e que o termo continua assim mudo sobre o que o próprio Marx considerava como o único "fim em si" da história: "o completo e livre desenvolvimento de todos os indivíduos". É inegável. Se hoje fosse necessário procurar ou formar uma palavra inédita para dar um nome ao futuro, seria indicado levar isto em consideração. Mas a decisiva novidade da janela histórica em nada anula a fundamental continuidade da causa antropológica que consiste em sair enfim da nossa pré-história de classe. Marx, depois de outros, chamou a esta causa secular "comunismo", tornando-a universalmente eloquente sob este nome-manifesto que continua até hoje a ser o único que diz - de onde as paixões contrárias que ainda suscita - a radical idade não negociável da transformação social a efectuar. Porquê recusá-lo?

A menos que se o queira combater... Digamos, como Jean- Luc Nancy e Jean-Christophe Bailly (cf. La Comparution, Ch. Bourgois, 1992, p. 62), de maneira um pouco diferente, que é o nome provisório de qualquer coisa que no futuro terá talvez outro nome, mas daqui até lá vamos mantê-lo. Ainda se objectou que a palavra comunismo transporta a indelével marca negra do que em seu nome se fez de pior no século XX, a marca do gulag, e dos "processos de Moscovo a Paris". É inegável, também. Ora eu vejo aí precisamente a mais convincente razão para a manter. Já que seria inconcebível travar o combate de um novo século deixando entorpecer a consciência dos erros e dos crimes que esta imensa causa de clarividência e de humanidade carreou no decurso do anterior, e quando a conservação questionante desta memória é a primeira das sentinelas contra qualquer recaída em erros da mesma ordem. Desembaraçar-se da palavra comunismo, que belo álibi se estaria a dar à amnésia! Desde sempre militante em todas as batalhas unitárias da esquerda, não quereria entretanto pela minha parte, por nada deste mundo, pertencer a uma formação política como o Partido Socialista, que, após a sua transformação de Épinay em 1971, imaginou, porque tinha mudado de nome, poder não ter contas a prestar em relação à anterior SFIO, nem em relação à sua aliança com a pior direita, em relação à repressão antioperária e aos crimes das guerras coloniais; alegre branqueamento que nos valeu depois a gestão neo-liberal, o rigor anti-social, a política africana de Miterrand - uma vez mais: e sem, mais uma vez, um balanço suficientemente crítico deste período, poderemos considerá-lo fundamentalmente acabado? Deixemos a pedra do passado no sapato se não quisermos ser, no próprio sentido da expressão, sem escrúpulos. O grande refundador da psicologia Lev Vygotski foi confrontado nos anos vinte com um problema análogo de vocabulário: podia-se conservar a velha palavra psicologia, por outras palavras, "ciência da alma", nome secular de todas as ilusões idealistas, para nomear a ciência tão nova que a seus olhos era necessário edificar? No fim de La Signification historique de la crise en psichologie (Oelachaux et Niestlé, 1999) [O Significado Histórico da Crise em Psicologia],ele argumenta de maneira admirável em favor da ousadia em a conservar. Não queremos, diz ele, uma denominação artificial, uma síntese "trivial e arranjadinha" para a nossa disciplina; "queremos um nome coberto pela poeira dos séculos" e aceitamo-lo "com o conjunto dos traços dos seus erros seculares como um signo vivo da vitória havida sobre eles, como a cicatriz das feridas recebidas em combate, como um testemunho vivo da verdade surgida da luta incrivelmente difícil contra a mentira..." (pp. 299,300). Sim, comunismo - precisamente. Dito isto, principalmente não instauremos um fetichismo terminológico. O que conta é o comunismo de facto, mesmo que sem a palavra. Adeptos de todo o comunismo de facto, uni-vos!

[pgs 078_083. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]


Inclusão 02/08/2002