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Eis uma maneira arejada de pensar a história. Se ela é no entanto, sem equívocos, a de Marx, como compreender que não só o antimarxismo em geral, mas, em grande medida o marxismo vulgar - até o do próprio gémeo de Marx, Paul Laffargue - e a cultura elementar do movimento comunista só tenham retido dela esta caricatura determinista em que o "socialismo" de certo modo está já presente no futuro, em que o caminho que a ele nos conduz é só uma linha recta, e a tarefa que dele nos separa é apenas a "luta final"? Coisificação do objectivo, simplismo do "'sentido da história"- uma fórmula que não vale a pena procurar em Marx - portanto, certeza de estar incessantemente na posse da verdade no meio de todas as curvas da vida política: será necessário ir procurar mais longe onde está a raiz da arrogância do carácter sentencioso que, variavelmente misturado com traços mais simpáticos sempre alimentou uma das mais pesadas censuras aos comunistas, e esta temível impermeabilidade à experiência que é em grande medida a causa das suas mais graves contrariedades? Invocar-se-á a inevitável alteração de uma sábia teoria logo que ela se transforma em cultura de massas, e a sua não menos inevitável contaminação por aquelas ideologias populares pré-marxistas exemplarmente traduzida pelas palavras da Internacional? Sem dúvida. Mas não estará presente no próprio Marx este perigoso esquematismo susceptível de dar crédito a uma interpretação mecanicamente necessitarista? E não só nos atalhos pedagógicos do Prefácio de 1859 à Contribuição ou nos da Miséria da Filosofia -"o moinho manual dar-vos-á uma sociedade com suseranos, o moinho a vapor trará uma sociedade de capitalismo industrial" (quantos mal-entendidos não deve ter provocado esta brilhante fórmula!) - igualmente no fim do próprio Livro I de O Capital, onde numa passagem conclusiva particularmente forte ele não hesita em escrever que o capitalismo engendra a sua própria negação "com a inelutabilidade de um processo natural", frase que se ouve como eco da fórmula do Manifesto: a queda da burguesia e a vitória do proletariado são "igualmente inevitáveis"? Não fujamos à questão: não haverá aqui, na euforia da descoberta relativa a lógicas essenciais da história, pelo menos bastante infelizes cartas de crédito possíveis para a leitura determinista das fórmulas de Marx? E não será esta espécie de "fatalismo", em que muitos rapidamente denunciaram um fanatismo, que difundiram palavras gratificantes como as que Engels escrevia de passagem numa carta de 1871 a Bebel: "um partido como o nosso, cujo sucesso final é absolutamente garantido"; ou as de Lenine, no fim de A Doença Infantil...: "Os comunistas devem saber que seja como for o futuro lhes pertence" - ler isto hoje provoca um choque...
Como se pode então afastar a tão profunda questão - em cujo exame não posso aqui entrar - de se saber se em Marx e seus continuadores não terá persistido qualquer hesitação mal dominada entre uma ruptura radical com toda a visão especulativamente hiper-racionalizante da história, e, no oposto, uma esquematização sobrevalorativa das fortes necessidades reveladas pelo materialismo histórico? Por aqui se mede o quanto pode ser enorme o valor prático do que está em jogo em diferenças teóricas aparentemente mínimas e o quanto pode ser mortífera a indiferença política perante essas diferenças.
E estas dificuldades internas do pensamento marxiano ainda são pouca coisa, face às objecções que a formidável desconstrução do conceito de história empreendida nas últimas décadas fez surgir de fora. Não há dúvida de que a racionalidade objectiva do processo histórico de conjunto tinha sido já rudemente posta em causa na viragem do século XIX para o século XX, com as considerações de Max Weber sobre o inacabamento intrínseco da história, e consequentemente com a arbitrariedade de qualquer interpretação do seu decurso, com a oposição entre explicação dos factos de natureza e compreensão dos factos de cultura, erguida por Dilthey e Jaspers, ou ainda com as análises de Freud sobre o que o sentido atribuído por nós ao vivido comporta de ilusório na sua essência. Foi em larga medida referindo-se a estes autores que Raymond Aron na sua Introduction à la philosophie de l'histoire (Gallimard, 1938) [Introdução à Filosofia da História], cuja influência foi considerável, deu por adquirida a dissolução do objecto "história", o carácter fundamentalmente retrospectivo e ideológico das suas racionalizações, o resíduo de "mística providencia!" (p. 244) que elas ocultariam, o que diria, à cabeça, respeito ao marxismo, cuja pretensão a uma inteligibilidade científica do movimento histórico remeteria de facto para "uma vontade política e a uma atitude vital" (p. 414). O livro termina com estas palavras: "A existência humana é dialéctica, isto é, dramática, porque age num mundo incoerente, empreende desprezando a duração, procura uma verdade que se escapa, sem outra garantia que não seja a de uma "ciência" fragmentária e de uma reflexão formal". Já não estávamos longe dos aforismos de François Furet. Estava dado aí um tema fundamental que muitos a seu modo modularam no pós-guerra. Assim, Maurice Merleau-Ponty em Sens et non-sens (Nagel, 1948), retomava à sua conta opiniões de Thierry Maulnier segundo as quais pode perfeitamente acontecer que "a lógica e a história se divorciem", de modo que "não sabemos se ao longo de toda a nossa vida ou mesmo durante séculos a história efectiva não irá consistir numa série de diversões..." (p. 244). E, acreditando dar um suporte às suas afirmações, acrescentava que assim a primeira revolução socialista se tinha produzido na Rússia contra todas as expectativas, coisa que os marxistas só teriam racionalizado "a posteriori" (p. 246) - quando na realidade Marx tão bem viu o que estava para acontecer desde os anos setenta que até se pôs a aprender russo para melhor seguir os acontecimentos...
Mas é sem dúvida Claude Lévi-Strauss o primeiro no mundo francófono a atribuir larga audiência a uma desconstrução bem mais radical do conceito de história. O capítulo final de Pensée sauvage (Plon, 1961) desenvolve abertamente contra Sartre e, por tabela, contra Marx, uma penetrante argumentação ao serviço de algumas provocadoras enormidades consideradas a partir daí como evidências. Segundo ele, toda a história seria uma ilusão, e seria, em primeiro lugar, artefacto de uma disciplina que acreditava poder fazer dela objecto. Ora, aquilo a que se chama acontecimento histórico inscreve-se em muitas séries de datas de espécies heterogéneas, entre as quais perde qualquer aparência de unidade. Assim, 5 de Maio, 20 de Junho, 14 de Julho, 4 de Agosto... constituem uma série completamente diferente de 1643, 1715, 1774, 1793..., que por sua vez não tem qualquer relação com a série I milénio, II milénio... A história supostamente global decompor-se-ia portanto em sequências autónomas, remetendo, ao fim e ao cabo, para causalidades infra-históricas e inconscientes, "de ordem biológica, geológica, e finalmente cosmológica" (p. 347), que Lévi-Strauss, semeando a confusão, nos dá como sendo as verdadeiras "infra-estruturas" do materialismo histórico: a pretensa continuidade linear a que chamamos história "não estaria ligada ao homem"... De onde esta memorável conclusão: "A Revolução Francesa tal como dela falamos não existiu" (p. 342). Não que a nossa experiência histórica seja vazia de sentido, mas "esse sentido nunca é o bom" (p. 336). Isto observa-se bem se considerarmos acontecimentos longínquos como a Fronda: ao mesmo tempo que se apagou a "interioridade provisória" a partir da qual os homens da época imaginavam poder modular as suas acções, salta à vista para nós, hoje, que a sua suposta inteligibilidade era apenas um "mito" (p. 338). "O homem dito de esquerda" que crê ainda prolongar uma história orientada pela Revolução Francesa tem de se apressar: esta "idade de ouro" está em vias de "passar" (p. 337).
Nesta vaga foi um ver quem enfiava as mais definitivas orelhas de burro aos defensores de certa racionalidade histórica. Que racionalidade, quando, Paul Veyne decreta, em Comment on écrit l'histoire [Como se Escreve a História] e em Foucault révolutionne l'histoire [Foucault Revoluciona a História] (Le Seuil, 1971, 1978), que "a História de que se fala há dois séculos não existe"? (p.10). Em geral só existem "constelações singulares", o resto "é só uma palavra" (p. 213), como tão bem o tinham visto os nominalistas na Idade Média. Estabelecendo que "a loucura não existe", mas apenas práticas movediças que constituem ou dissolvem esta aparência de objecto, Foucault abriu magistralmente a via a uma verdadeira "liquidação da história" (p. 204): "que dinamitagem da filosofia política racionalizadora!" (p. 210). Compreendeu-se tudo quando se dá conta de que "a ideologia", "a política", "o Estado", o próprio "objecto natural", "não existem" (p. 224). É preciso ser-se marxista para conservar esta ingénua "crença no objecto" (p. 239), e "a importância de Foucault é que justamente ele não faz Marx..." (p. 242). Análoga cruzada em François Lyotard: em La Condition postmoderne (Éd. De Minuit, 1979) [A Condição Pós-Moderna] opunha ao marxismo, pensamento "do modelo totalizante e dos seus efeitos totalitários" (p. 27), a constatação, a seu ver irrevogável, do que ele denominava "a decomposição das Grandes Narrativas" (p. 31), estas vastas narrações mitológico-históricas, como por exemplo "a emancipação da humanidade" (p. 84) cuja função era a de "legitimar" autoridades. Hoje, quando a ciência "pós-moderna teoriza a sua própria evolução como descontínua, catastrófica, não rectificável e paradoxal" (p; 97), e quando as sociedades revelam ser na sua verdade "imensas nuvens de matéria do linguajar" (p. 104), um discurso como o da luta de classes já não é mais do que "um protesto para salvar a honra" (p. 28). Muito diferentemente, Michel Serres contribui ainda para uma desqualificação de Marx com as suas sugestivas análises sobre o tempo histórico (cf nomeadamente Éclairissements, François Bourin, 1992). Todos os saberes contemporâneos o mostram: o tempo não corre de modo linear, mas de "maneira turbulenta e caótica": "flui como num percolado" (p. 90), como um líquido que ao mesmo tempo passa e não passa num filtro. Ou para falar em termos topológicos, o tempo é "amarfanhado", "estampado e multiplamente dobrado" (p. 92), de modo que qualquer acontecimento é multitemporal, misturando ao actual o que passou e o que não aconteceu. Parecendo-lhe supérfluo provar o que diz, Michel Serres estatui que isto tira razão a Marx: "a dialéctica recita uma lógica tão pobre que dela se pode extrair tudo"; "não tem qualquer interesse" (p. 225). E necessário superar enfim as convencionadas representações do fluxo temporal: "todas as nossas dificuldades sobre a teoria da história advêm de pensarmos o tempo deste modo insuficiente e ingénuo" (p. 91). Depois disto que ninguém ouse tratar a história num modo marxiano...
[pgs 067_071. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |