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Depois deste postulado em geral, não me será difícil reconhecer a particularidade do forte acento que coloquei na exigência filosófica de uma postura teórica que plenamente se exerça, posição que se poderá certamente atacar, mas em relação à qual não encaro transigir, tal como o não fiz em 1966. Constituída na minha adolescência, no decorrer dos meus estudos filosóficos, e sobretudo durante a minha formação leniniana, e mesmo antes da minha adesão ao PCF, esta minha maneira de considerar as condições que requer aquilo a que correctamente se pode chamar teoria, é, para mim, um alicerce não negociável. Daí, aliás, um traço marcante e pouco corrente, parece-me, da minha trajectória política. Desde a minha adesão, em 1950, até ao início dos anos oitenta, estive sempre de acordo, quase sem excepções ou reservas, com cada orientação política da Direcção do Partido - o que durante todo um período significou ser um estalinista convicto - e, membro do Comité Central a partir de 1961, tomei-me o propagandista incansavelmente combativo desta política oficial. Mas ao mesmo tempo nunca deixei de reclamar, em geral com grande insucesso, que se fosse muito mais longe na sua elaboração teórica, tentando progressivamente eu próprio empreendê-la em domínios que achava estarem ao meu alcance, insurgindo-me, sem medo das retaliações, contra o que eu considerava não ser válido nestes domínios. Por exemplo, no início dos anos sessenta, contra o "humanismo" de Roger Garaudy, na altura membro bastante influente da Comissão Política, em que eu via, pelo menos, uma maneira perigosamente inconsistente de ele se emancipar do estalinismo; ou, um pouco depois, contra a crença nos "dons", esse materialismo do pobre em matéria psico-pedagógica, tão difundida até entre os comunistas da época, a todos os níveis de responsabilidade, e que sustentava teoricamente no Partido a política escolar do " a cada um segundo as suas aptidões", intimamente reformista sob a etiqueta revolucionária; ou ainda, a partir do início dos anos setenta, quando me tornei director das Éditions Sociales, contra a filosofia da Direcção do Partido neste domínio que se recusava, de um modo ou de outro, a admitir a autonomia da política editorial, quando o que esta pretendia era colocar as suas relações com os intelectuais enquanto tais sob o signo de uma plena democracia... Assim, durante mais de um quarto de século de vida militante, representei a figura compósita de um seguidista activo quanto ao essencial, contudo em constantes lutas discordantes, em terrenos circunscritos mas não subalternos, um misto de fidelidade sem falhas e de exigência recalcitrante, raramente compreendida de fora, e sem dúvida mesmo de dentro.
Mas a este respeito tudo começou a mudar para mim, em 1976, e a um ponto que - eu estava, então, longe de suspeitar -1976 foi o ano do XXII Congresso, o do "abandono" da ditadura do proletariado. Do discurso dentro das regras, e cada vez mais fictício na França contemporânea, sobre a conquista insurreccional do poder político e a instauração violenta do socialismo que a noção de ditadura do proletariado comportava, passava-se, por fim, à procura inovadora e muito mais pertinente de uma estratégia de transformação democrática progressiva que acabasse por subverter, pacificamente - não se entenda, sem lutas -, os próprios fundamentos do modo de produção capitalista: dizer que estava de acordo é pouco; como tantos outros, eu estava mesmo à espera daquilo - e neste verbo, esperar, insere-se o drama de uma cultura de partido à qual os comunistas ainda não se conseguiram arrancar completamente. Mas, e sem esperar, estava também insatisfeito com os considerandos, pouco avançados para meu gosto, do Relatório de Georges Marchais ao Congresso, e com o próprio método de uma Direcção que preferia reservar para si o efeito de anúncio dessa decisão, em vez de a dar atempadamente aos próprios comunistas para debate prévio, único processo compatível com o cuidado, se realmente o tiveram, de elevar a reflexão colectiva ao nível exigido. Mas teria esta Direcção avaliado bem a centralidade da ditadura do proletariado na teorização marxiana, e depois leniniana, da revolução, e portanto, a amplitude das reconsiderações teóricas em cadeia que exigia a passagem para uma visão estratégica onde ela não tivesse lugar? Era caso para perguntar.
O primeiro argumento alegado pelo Relatório era que, hoje, a palavra ditadura "evoca automaticamente" os regimes fascistas - Hitler, Mussolini, Franco... -, argumento já utilizado da primeira vez em que foi proposto o abandono da referência à ditadura do proletariado: por Jeannette Vermeersch...,no dia 9 de Janeiro de 1964, em que se discutiu o preâmbulo dos novos estatutos que iriam ser adoptados no XVII Congresso. "Nada há a fazer; a palavra ditadura caiu, historicamente falando, em desonra", disse ela, apanhando desprevenido o próprio Maurice Thorez, que no dia seguinte teve de explicar por que é que era apesar de tudo importante conservar a fórmula... argumento intrinsecamente desapropriado em 1976, dado que só levava a retirar a palavra para melhor conservar a coisa. A bem dizer, a justificação fundamental desenvolvida pelo Relatório era de uma outra espécie, e de valor completamente diferente: a ditadura do proletariado só é necessária em última análise na medida em que as forças revolucionárias não podem, antes da data da tomada do poder, ter consigo a "grande maioria do povo" - neste sentido seria possível citar textos muito significativos de Lenine; deixou de o ser num contexto histórico em que se pode encarar efectuar cada transformação social profunda com o apoio "da vontade popular maioritária que se exprime democraticamente pela luta e através do sufrágio universal". Hipótese académica formalmente plausível. Mas toda a questão residia então, e o Relatório sublinhava-o bem, em se saber como criar "este indispensável movimento maioritário", "solidamente unido em torno de objectivos transformadores". Ora, a esta questão política literalmente crucial só se dava, de facto, uma resposta sociológica: doravante, em França, os assalariados constituem, "pelo menos, três quartos da população activa". Se fizermos o que é preciso, eles não vão, de certeza, deixar de se pronunciar pelo "socialismo à francesa" proposto pelos comunistas...
Hoje é mais fácil, sem dúvida, ver as fraquezas fundamentais de tal maneira de argumentar. No entanto, à partida, havia ali matéria interrogativa a vários níveis. Por exemplo, sobre a perturbadora dualidade de atitude face ao que o Relatório denominava, sem o questionar no entanto, "o socialismo": por um lado, era nítido o desacordo com o socialismo existente, o dos "países socialistas", nomeadamente quanto ao penoso capítulo das liberdades, pondo-se a tónica, pelo contrário, nas promessas democráticas de um futuro "socialismo à francesa" que assim se reclamava de uma diferença essencial; mas por outro, o objectivo a atingir não deixava de ser menos explicitamente, o socialismo, a sociedade socialista, espécie de forma social genérica com vantagens universais, tornando-se necessário, por isso, admitir que a grave ausência de liberdades na URSS e noutros países apenas constituía alterações não essenciais e fortuitas a essa forma genérica - ainda que estranhamente crónica. Supor que tal duplicidade de discurso pudesse congregar "a grande maioria do povo" requeria já um belo optimismo. Mas como não suspeitar também da carência teórica subjacente a esta inverosimilhança política? Tal como Marx sempre a concebera, a sociedade sem classes não era o projecto arbitrário de uma consciência filantrópica, mas o produto necessário do movimento real incessantemente fomentado pelas contradições do capital e as lutas dos trabalhadores. Essa sociedade relevava, por isso, inteiramente, da objectividade histórica, e deste ponto de vista a diferença entre o socialismo já existente e o socialismo a prazo, ou para ser mais explícito, entre a realidade do real já existente e a do real possível prometido com alguma necessidade, no futuro, apenas distinguia o que Aristóteles chamava ser-em-acto e ser-em-potência - assim como a criança que sendo um ser humano em acto é um adulto em potência. O Relatório ao XXII Congresso relevava, sem se dar conta, de uma outra filosofia: pensando colocar o "socialismo à francesa" fora: do alcance das críticas acerbas, às quais o socialismo "real" não podia escapar, falava empoladamente dele como sendo "o nosso ideal", passando assim, sem medir as consequências, da dialéctica materialista do real e do possível, à dialéctica banalmente idealista, do real e do ideal. Ora, se o socialismo "real" era nada menos que ideal, como acreditar que o socialismo "ideal" pudesse algum dia tornar-se real? Não é próprio do ideal ser irrealizável? Aí está o risco que corre quem já não "acredita na filosofia"...
Em 1976 estava longe, muito longe, de ver claro no conjunto desta gigantesca questão de história crítica e prospectiva abrangida então pelo termo genérico de "socialismo". Não estou aqui a reinventar o meu passado se disser que em todo o caso fiquei siderado desde o início, com esta ressurgência do vocabulário do "ideal", uma das palavras-chave do Desafio Democrático que iria de forma tão duradoura marcar todo o discurso da direcção na época de Georges Marchais, inclusive sob a forma, indefensavelmente paternalista, na minha opinião, do "socialismo que queremos para a França". Como se podia voltar assim as costas a Marx, que literalmente nunca deixou, desde A Ideologia Alemã até A Guerra Civil em França, de acossar a representação do futuro social em termos de ideal, de desejo subjectivo, tido por ele como antinómico a qualquer atitude "crítico-materialista", não só em ciência - "quando se é homem de ciência, escreveu, secamente, não se tem ideal" - mas também em história e em política, a menos que se caísse de novo nas piores ilusões do utopismo idealista? E como uma regressão teórica arrasta necessariamente outras, o Relatório ao XXII Congresso também se notabilizava por um aspecto ainda mais perturbador: a promoção do socialismo a estatuto de "ideal" não deixava qualquer lugar ao comunismo. O total desaparecimento do comunismo em O Desafio Democrático, a sua quase-ausência em documentos de congresso até 1990 - com excepção da resolução do XXIV Congresso que escrevi - é daquelas coisas que não podem deixar de parecer puramente talmúdicas a quem disto nada sabe, mas que teriam feito sensação num partido comunista que consagrasse à elaboração da sua política discussões teóricas ainda dignas desse nome. Tanto no Relatório ao XXII Congresso como em O Desafio, a palavra comunismo surgia numa só ocorrência: a expressão espantalho "comunismo de caserna"! Assim, "o socialismo" acabou por abranger tudo numa versão desfigurada do "socialismo científico", onde classicamente ele se situava apenas como transitória fase inferior do comunismo. Mas, por um novo efeito de desagregação teórica em cadeia, "o socialismo", remetido doravante, em substituição do comunismo, para o horizonte do "ideal", tinha, por sua vez, necessidade de uma fase inferior! E é então que entra em cena a "etapa de democracia avançada" que O Desafio Democrático qualifica de "forma de transição para o socialismo" (p.174) - uma transição para a transição... No fim de contas, é toda a perspectiva histórica marxiana, no que ela tem de mais essencial, que se encontra aqui desnaturada, sem a menor justificação crítica, sem mesmo uma palavra de explicação fundamental. Nunca como agora um avanço político de possível grande alcance tinha sido acompanhado por um tão temível recuo teórico.
[pgs 026_032. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |