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Primeira Edição: Exposição realizada no plenário de encerramento do Congresso Marx Internacional, onde se debatia o tema “Qual a alternativa para o capitalismo?” O autor se baseia em uma leitura em profundidade dos Grundrisse, de Marx, para analisar os fenômenos contemporâneos e em particular as condições da viabilidade e colocação na ordem do dia do comunismo. Publicada em Tesis XI, n“ 2, Montevidéu, junho de 1997. http://www.tesisxlmultimediany.com; tradução de Dina Lida Kinoshita.
Fonte: Novos Rumos, nº 35, 2001
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Dar pleno sentido ao tema que nos ocupa — “Que alternativa ao capitalismo?” — exige estabelecer, para chamá-lo por seu verdadeiro nome marxiano, a questão do comunismo. Para ser claro, estruturarei minha intervenção em torno de várias teses — quer dizer, com certeza, hipóteses que espero mostrar que não são arbitrárias. E, para ater-me ao tempo estabelecido, limitar-me-ei a sustentar três.
Tomando a palavra “alternativa” ao pé da letra, a pergunta “Qual a alternativa ao capitalismo?” consiste em perguntar-se qual é o outro do capitalismo no seio da identidade em forma de dilema que constituiriam juntos. Mas que dilema? A resposta parecia óbvia há mais de um século: propriedade privada ou propriedade social dos grandes meios de produção e de troca.
Desse ponto de vista, o que se tem denominado “socialismo real” tem sido o outro do capitalismo, quer dizer, o contrário dentro de um mesmo gênero. O contrário: digamos, para prosseguir muito rapidamente, plano versus mercado. O mesmo gênero: o acionamento de um tipo idêntico de aumento da produtividade baseado, segundo as lógicas industriais, na acumulação de trabalho morto como condição primordial de eficácia crescente do trabalho vivo.
O melhor índice dessa identidade essencial por trás da antinomia imediata não é a palavra de ordem que dominou a involução brezhneviana dos países socialistas: “alcançar o capitalismo”? Para a pergunta “Qual a alternativa ao capitalismo”, entendida no sentido exato da palavra “alternativa”, a resposta não está nem lógica nem historicamente diante de nós, mas atrás de nós: tal alternativa não é outra que o fenecido socialismo de tipo soviético que perseguia o projeto inviável de alcançar o capitalismo sem mercado nem democracia verdadeiros. Resulta a conclusão que para muitos parece evidente: estaria demonstrado que não existe alternativa viável ao capitalismo. Poder-se-ia buscar unicamente não uma alternativa, mas variantes na maneira de regular e circunscrever esse elemento insubstituível das sociedades desenvolvidas: o mercado capitalista.
Considerando-se — tal como é o meu caso e sem dúvida o de muitos entre nós - que os estragos de todo tipo que o capitalismo produz hoje, e ainda pior, os que nos promete para amanhã, são absolutamente inaceitáveis, a pergunta aberta que convém colocar-se, então, parece-me não a de uma alternativa ao capitalismo que gire, de fato, na mesma órbita, mesmo que fosse no polo oposto, mas a de superação, em que a própria órbita resulte profundamente transformada. Tal é a problemática, não-alternativa, mas revolucionária no próprio sentido dado por Marx e é nessa problemática que se inscreverá minha reflexão. Não se trata, portanto, de buscar alguma variante à forma social hoje dominante, nem sequer de inverter tal ou qual sinal em uma fórmula geral sem mudança, mas, ao contrário, para retomar alguns dos temas mais ambiciosos de Marx, de pôr fim às grandes alienações históricas levadas ao limite pelo modo de produção capitalista, de acabar com a era milenária das sociedades de classe, de sair da pré-história humana. Trata-se de “mudar a base”.
Para esse movimento de superação radical, Marx reservou o nome de comunismo. Nesse sentido, mais além das questões tão embaralhadas que pode levar o uso político deste termo hoje, diria que o problema iniludível com que nos defrontamos é sempre e novamente o do comunismo.
Mas precisamente porque a perspectiva do comunismo nos projeta para fora da órbita do desenvolvimento histórico atual, ela se choca com uma objeção fundamental: a de sua irrealidade. A visão muito ampla — ainda que não-marxiana — do comunismo como um “ideal”, não tem no momento existência alguma. Inscrevê-la na sucessão não- acabada das formações sociais não equivaleria a introduzir as quimeras na classificação das espécies vivas? Objeção que não perturba a certos utopismos, que aceitam sem dificuldade que o comunismo seja somente uma ideia reguladora de nossas práticas políticas. Mas nessa acepção é evidente que perca toda consistência como perspectiva de superação efetiva do capitalismo. Assim, a extraordinária originalidade de Marx é querer incluir rigorosamente essa antecipação visionária do futuro em uma análise materialista-critica do presente. Ali está o ponto crucial para as atuais releituras críticas de Marx. A atitude, sem dúvida alguma dominante hoje, é de estigmatizar essa inaceitável confusão de gêneros epistemológicos: por exemplo, quando no capítulo XXIV do Livro I de O Capital, Marx nos apresenta “a expropriação dos expropriadores” como uma negação histórica da negação que se deve cumprir, diz, “com a inelutabilidade de um processo natural”.
Muitas vezes se tem sublinhado, inclusive neste Congresso, que se trata de uma transição inadmissível da comprovação empírica à construção normativa mediante uma visão teleológica dos processos sociais que contradiz radicalmente os princípios do materialismo histórico. De modo que não haveria motivo para espantar-se de que nosso século tenha sido nesse aspecto o das esperanças insatisfeitas.
Em que pese os méritos destas considerações, minha tese não é por isso menos firme no que concerne a que elas não invalidam o essencial. Admito que valem contra aforismos globalizadores em que a dialética faz as vezes de deus ex machina especulativo. Mas sustento que esses pouco frequentes enunciados remetem, em Marx, a um vasto trabalho analítico que em seus princípios, em todo caso, escapa inteiramente à objeção. Esse trabalho de Marx consiste em colocar em evidência a produção, empiricamente testemunhada pelo movimento do capital, dos supostos objetivos de sua própria superação; não são nada mais do que suposições prévias que, aprisionadas nas formas capitalistas, são incapazes por si mesmas de revertê-las no sentido comunista e só fazem aguçar contradições devastadoras, mas pressuposições não menos essenciais daquela superação.
Exemplo: o dinamismo com que o modo de produção capitalista desenvolve sem interrupção a produtividade real do trabalho engendra condições materiais que, ao mesmo tempo, tornam cada vez mais possível o desenvolvimento livre e pleno dos produtores e lhes exigem com mais força em nome de uma produtividade ainda maior: não é esse o centro da atual "crise do trabalho”? Não existe aí nenhum resvalo teleológico. Criar as premissas de uma forma social em que cada um poderá receber “segundo suas necessidades” não significa nada para a atividade capitalista: sua finalidade é e continua sendo a maximização da cota de beneficio, de maneira que ela produza não a riqueza para todos mas a pobreza relativa e inclusive a miséria absoluta para a maioria. Mas ela não pode alcançar essa produtividade superior sem criar por isso mesmo “às suas costas” e “de cabeça para baixo”, como gostava de dizer Marx, supostos objetivos para um modo de produção e distribuição profundamente diferente, que a nós cabe construir a partir daqueles, se o propomos com finalidade consciente.
“Se a sociedade tal qual é não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção e de circulação para uma sociedade sem classes, todas as tentativas de fazê-la irromper seriam outras tantas quixotadas”, escreve Marx nos Grundrisse.
Não vejo nisso nenhum passo fraudulento do indicativo ao condicional, do empírico ao normativo, mas somente a base de um otimismo histórico razoável: “a humanidade não se propõe, nunca, tarefas além daquelas que ela mesma pode resolver”, na medida em que a tomada de consciência e a função da tarefa como possível estejam sustentadas pelo processo de formação tendencial de seus objetivos pressupostos. Nada mais, nada menos. O êxito nunca é garantido, mas a desesperança metafísica fica desqualificada. Nesse sentido, falar de “inelutabilidade de um processo natural” entranha, sem dúvida alguma, um deslize muito perigoso: é preciso pensar o processo em termos não de uma necessidade mecânica ilusória, mas de uma possibilidade dialética real. Mas, sob esta segunda forma, é um pensamento de importância capital.
Minha tese número um consiste, portanto, no seguinte: a questão comunista é em primeiro lugar uma questão de fato.
Sim ou não, o movimento atual do capital continua acumulando, de cabeça para baixo, os pressupostos objetivos da superação da sociedade de classes? Se é não, nenhum “ideal” ou “utopia”, nenhuma política que reivindique o comunismo poderão fazê-lo reviver. Se é sim, nenhuma falência histórica, por mais esmagadora que tenha sido, estará em condições de retirá-lo da ordem do dia. É necessário, então, reelaborar uma proposta comunista adaptada a esta questão que não pode ser tratada de esguelha.
Que hipóteses de sua própria superação produz o capitalismo?
Na leitura tradicional de Marx e Engels por parte do movimento operário revolucionário, o central era sem dúvida alguma o seguinte: baseado no caráter privado dos meios de produção, o capitalismo imprime à produção um caráter cada vez mais social. Dessa premissa resultavam os traços principais do “socialismo científico”: a tarefa histórica era converter em social a propriedade dos grandes meios de produção e de troca, o que pressupunha a conquista do poder político pela classe operária e, portanto, sua organização num partido apto para essa conquista, abrindo assim o caminho para a abolição do capitalismo. Hoje avaliamos que a leitura reducionista somente do Livro I de O Capital nutria tal concepção. Ao considerar decisiva a questão do modo de propriedade (e nem sequer da posse efetiva) dos meios de produção, ela permanecia cega ante relações e lógicas de origem mais fundamental, como o tipo de progressão da produtividade, com o sacrifício de seres humanos e da natureza que lhes é inerente, o caráter socialmente alienado das regulações mais importantes, com os despojamentos de todo tipo que estão ligados a isso. Em tal sentido, “o socialismo real” não tem sido afinal das contas - mesmo que não tenha se reduzido inteiramente a isso - nada além de uma alternativa estatista do modo de apropriação capitalista, de cuja órbita renunciava a escapar sem se dar conta disso. De tal modo, existe lógica em que afinal tenha recaído nele.
Entretanto — vários dos trabalhos destas últimas décadas o têm mostrado — há em Marx mesmo ideias que vão muito além do essencial no estudo histórico-crítico do capitalismo. Por falta de tempo evoco aqui um só exemplo, que é crucial para nossa época. Extrapolando, com um grande conhecimento das realidades industriais do seu tempo, e também com uma audácia inaudita de pensamento, em que medida a produção ver-se-ia transtornada com a introdução nela, em grande escala, da ciência, viu aproximar-se um nível de produtividade em que o tempo de trabalho direto “desaparece como algo infinitamente pequeno” em relação a seu produto, em que o homem-produtor se torna um mero “supervisor e regulador” do processo de produção. De tal modo, raciocina, “o roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se fundamenta a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada com esse fundamento recém-desenvolvido, criado pela própria grande indústria”. “O mais-trabalho da massa tem deixado de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza social, bem como o não- trabalho de uns poucos tem deixado de sê-lo para o desenvolvimento dos poderes intelectuais do intelecto humano.” Assim se torna obsoleta “a produção baseada no valor de troca”, encerrada nas formas contraditórias da “penúria” em meio da maior riqueza, enquanto florescem as hipóteses materiais do “desenvolvimento livre das individualidades”.(1)
Cento e quarenta anos depois de ter sido escrita essa página profética dos Grundrisse, não chegamos exatamente a esse ponto? Com a irrupção sem precedentes da ciência na produção, não estamos vivendo a redução drástica do tempo de trabalho necessário, mesmo que “de cabeça para baixo”, quer dizer, preso às lógicas capitalistas da desocupação maciça, da contratação aleatória do trabalho, do trabalho precário, da dispensa precoce, ao mesmo tempo que surgem por toda parte condições tais como exigências de superação da dicotomia esclerosante tempo de trabalho/ tempo livre, da redução mercantil da força do saber e do trabalho, em síntese, as premissas de uma nova era da organização social e da existência pessoal? Outras hipóteses, que Marx não previu, ademais, vinculam-se a isso, como o imenso ápice dos serviços e a onipresença da informação, hoje engessadas na forma-mercadoria ao preço de uma desastrosa mutilação das possibilidades que isso implica: repartição dos custos, cooperações não-predatórias, desenvolvimento superior das capacidades pessoais. Agregaria a tudo isso um processo nascente, mas já poderoso: o grande frenesi atual do capital nos países mais desenvolvidos é o de converter o maior número de assalariados em trabalhadores independentes com contratos pontuais, quer dizer, livrar-se inteiramente, não só dos encargos sociais mas do próprio salário. Essa tendência inédita do capital superar o regime de assalariamento não oferece um enorme tema para refletir sobre o estágio a que estamos chegando da maturação objetiva da questão comunista?
O que acontece aqui em primeiro plano é, de outra maneira, mais que o problema da propriedade, o das regulações em seu conjunto e de seu caráter intrinsecamente alienado no capitalismo, em que não cessam de crescer as potencialidades sociais indômitas que nos subjugam e nos esmagam. Como dizia Marx em fórmulas sintéticas, que seria um grave erro, do meu ponto de vista, considerar como uma mera especulação filosófica, a essência do capitalismo é inverter as relações entre a pessoa e a coisa, entre o fim e o meio. A superação do capitalismo tal e qual se nos apresenta hoje não tem eminentemente que ver com recolocar sobre seus pés essas relações fundamentais para construir a primazia do desenvolvimento dos seres humanos sobre a produção dos bens e da deliberação coletiva dos fins sobre pôr em ação os meios? Da socialização burocrática dos meios de produção é preciso passar para a apropriação democrática das finalidades de todas as atividades sociais. Desse ponto de vista, a noção de critério, cara a P. Boccara, me parece efetivamente central, porque na intervenção para mudar os critérios das atividades sociais se realiza o retorno desalienante da questão dos meios subordinada à dos fins. Isso também sugere uma mudança em profundidade na maneira de pensar o avanço consciente para essa civilização superior que Marx denomina comunismo. De súbito, tão brutal como pouco operacional, em definitivo, da revolução-abolição se substitui a figura do tombo progressivo, das misturas conflitivas de formas privadas e públicas mercantis e não- mercantis, que evoluem para um predomínio das segundas e de seus critérios, enquanto o delineamento demasiado sumário do poder se ramifica, sem desaparecer por certo, na construção de novos centros e de novas capacidades de decisão, apoiando-se nas hipóteses mais desenvolvidas de outra ordem sociopolítica. Uma lógica essencialmente diferente de superação do capitalismo parece esboçar-se, aqui, não por certo menos, mas mais autenticamente revolucionária em substância da que já transcorreu, liberada no entanto das mitologias sangrentas da luta final e da tábua rasa.
Tudo isso pode ser resumido numa segunda tese: se Marx está vivo como filósofo, está muito mais como pensador do comunismo. Para além da vulgata falaciosa do “socialismo científico”, há um núcleo racional, desconhecido por muitos e ainda mais atual hoje que no seu tempo, em sua análise do movimento do capital enquanto produtor das condições materiais de sua superação.
Considero que é possível generalizar o exemplo que apresentei brevemente a propósito da produtividade e do tempo de trabalho, como poderia demonstrá-lo o processo polimorfo da mundialização, o da crise universal das relações autoritárias, o do irreprimível movimento das mulheres pela igualdade.
Se Marx produziu um conceito substancial do comunismo, cujo conteúdo está longe de ter caducado inteiramente, nada pode entretanto eximir-nos de reelaborá-lo de nova maneira e, para isso, recomeçar de seu conceito puramente formal: o da superação até o fim de todos os antagonismos do modo de produção capitalista, e ainda com maior amplitude, de todas as alienações históricas das sociedades de classes. E quais são, nas sociedades e no mundo atual, as hipóteses objetivas dessa superação? Eis aí um vasto canteiro de pesquisa que se nos apresenta se queremos reconstruir um conceito substancial do comunismo para o século XXI. Nesse trabalho analítico e prospectivo sobre o real, a obra de Marx pode contudo servir-nos de apoio, na medida em que nos perguntemos que hipóteses subestimou, interpretou erroneamente ou, sobretudo, desconheceu, ainda que fosse pela simples razão de que não estava desenhado claramente em sua época. Aqui também devo limitar-me a alguns exemplos.
Para Marx, a hipótese das hipóteses do comunismo era o que denomina o “desenvolvimento universal das forças produtivas”. Digamos, para abreviar, que leva em conta essencialmente o papel exercido pela ciência (essa forma universal dos poderes dos homens sobre as coisas e sobre eles próprios) para arrancar as forças objetivas e subjetivas da produção de sua estreita privatização. Esse desenvolvimento universal não é somente, a seu ver, determinante enquanto cria as condições materiais do “a cada um segundo suas necessidades” - lema pré-marxista que, por outra parte, nunca significou para Marx a via livre para os apetites individualistas, mas a livre satisfação das necessidades socialmente cultivadas de todos.
Ao mesmo tempo, este “desenvolvimento universal” anula a premissa mais profunda da divisão em classes - essa divisão, escreve Engels no Anti-Dühring, “se baseava na insuficiência da produção: será varrida pelo pleno desenvolvimento das forças produtivas modernas”. E no coração desse “pleno desenvolvimento” figura o dos próprios indivíduos - “a sociedade comunista, se lê na Ideologia alemã, é a única em que o desenvolvimento original e livre dos indivíduos não é uma frase oca [...]”
Mas o que nem Marx nem Engels haviam visto, e que temos aprendido rudemente neste último meio século, é que esse desenvolvimento universal tropeça, para além de certos limites, com umbrais de viabilidade econômicos, ecológicos e antropológicos. Essa dialética da quantidade e qualidade, na qual eles nem sonharam, faz surgir um novo conjunto de interrogantes prospectivos fundamentais. Ela nos obriga a questionar novamente, a meu juízo, de nenhum modo a perspectiva de uma hominização cada vez mais avançada mediante a superação até o fim das grandes alienações históricas, mas esse conceito de desenvolvimento humano que vários séculos de crescimento capitalista profundamente desumanizador nos fizeram aceitar, em atitude pouco crítica, como natural.
Este é o ponto de necessária convergência entre uma reflexão marxista renovada e a advertência ecologista, ao menos se for concebida em seu nível máximo. Para dizê-lo rapidamente, não penso em absoluto que este chamado legítimo seja capaz de julgar a herança marxista, invalidando a problemática de classe: sob vários pontos de vista, muitos problemas ecológicos atuais são em si mesmos problemas do capitalismo. Mas também não creio que, inversamente, o pensamento marxista tenha a capacidade de absorver a problemática dos limiares de viabilidade tomada em toda a sua profundidade, em uma análise de classe. Porque - e, a meu ver, é a novidade essencial dos problemas de limiar -, na exigência de um desenvolvimento duravelmente sustentável, já afloram preocupações e responsabilidades do gênero humano em sua totalidade que só uma sociedade sem classes poderá converter em uma realidade plenamente efetiva. Essas questões são tipicamente as de uma humanidade comunista, mesmo que topemos com elas no capitalismo: novo e eloquente índice do momento histórico que estamos abordando.
Para aqueles que aderem ao marxismo em sua letra mais do que em seu espírito, a quem incomoda totalmente a ideia de que possa ser atual uma problemática pós-classes, gostaria de observar que, talvez mais do que no problema ecológico, este salta à vista no campo bioético. Nesse momento, em que a chamada revolução biomédica começa a alterar as próprias bases da condição humana - a partir da condição genética ao destino sanitário, do parentesco biológico à atividade neuronial já está colocada a cada uma e cada um de nós, como ser humano sem mais, esta pergunta insólita: que humanidade queremos ser? E chega a afrontar a alma e a consciência um problema bioético transcendental - por exemplo: é preciso comprometer-se com a via da terapia genética germinal, que modificaria em alguma medida a espécie em toda a sua descendência? - para perceber que a análise político-classista tradicional é nesse ponto completamente impotente para sugerir-nos uma resposta. Estamos diante de um desses interrogantes antropológicos que serão o pão de cada dia da sociedade comunista, ante os quais numerosos problemas políticos atuais aparecem como tremendamente mesquinhos e, nesse aspecto, todos os pensamentos, inclusive os marxistas, estão fadados a superar-se sem suprimir-se.
Sem deixar de levar em conta que hoje a revolução biomédica, cuja aposta é imensa, está dramaticamente pilotada, em medida crescente, por negócios de muito dinheiro e por cotizações da Bolsa, quer dizer, por objetivos de classe.
E, a meu modo de ver, o grave erro de certa ecologia política é o de não advertir suficientemente que esses problemas gigantescos de pós-classes, que não admitem postergação para amanhã, não poderão ser tratados plenamente a não ser quando se tenha terminado com a sociedade de classes.
O que me conduz a um segundo exemplo, igualmente central e problemático, de um tema marxiano que as realidades hodiernas nos obrigam, salvo erro, a repensar de maneira não-clássica: refiro- me à pertinência atual da própria análise em termos de classe, que é o objeto notório de um dos principais conflitos entre avaliações diversas da herança de Marx. Pois bem, para ir diretamente ao que me parece merecer tanto debate como os problemas da classe operária, proporia esta hipótese: á medida que o capital penetra mais em campos de atividade como a saúde, a formação, a informação, a investigação, a cultura, o lazer, por acaso não engendra, muito além da exploração do trabalho, formas inéditas de alienação profundíssima da vida social e pessoal cujo caráter de classe não transforma, no entanto, as vítimas em classes? Porque o que aqui se encontra afetado é muito menos seu status no sistema das relações de produção e repartição do que sua relação com as finalidades e regulações antropologicamente essenciais e o próprio destino de tais atividades. Por aí são agredidos, não somente assalariados explorados, mas, muito mais profundamente, como atores desarraigados de sua própria atividade humanizante, e desse modo alienados no centro de sua pessoa. Althusser sustentava o aparente paradoxo de uma primazia da luta de classes. De minha parte, adianto a ideia de que a lógica de classe é uma realidade muito mais vasta da existência das classes: de fato tem sido sempre assim, mas hoje essa dimensão, em mais de um terreno, tende a tornar-se dominante.
Tudo isso se acentua uma vez que uma série de processos, muito bem estudados por sociólogos marxistas ou não, contribui para dissipar os limites da classe operária, a solapar sua identidade, a relativizar seu papel específico. De tal modo que a fórmula de Marx, também profética, que diz, que via nela “a dissolução de todas as classes” está em vias de tomar para os operários de hoje o mais concreto dos significados: antes tipo acabado de classe social no sentido marxiano, a classe operária perde progressivamente esse status histórico. Em uma inversão espetacular, não é a classe capitalista que constitui de agora em diante a classe para si por excelência, enquanto - frente a ela e as camadas, clientelas e máfias que gravitam em sua órbita - se opera cada vez mais, pela via da generalização do assalariado, a dissolução de todas as outras classes? De onde vem uma assimetria absolutamente inédita na dialética das sociedades muito desenvolvidas, com prolongamentos mundiais: em um polo, uma classe capitalista que pretende encarnar o interesse geral em sua feroz particularidade; do outro, a fragmentação de vastas forças sociais mutantes nas dores do parto de uma universalidade humana efetiva, onde, porém, esse implacável trabalho do negativo cria os pressupostos de convergências originais de valores e de iniciativas objetivamente anticapitalistas.
Então, embora a luta de classes no sentido tradicional não se tenha esgotado, certamente seu papel nacional e internacional - sob a condição de que seja capaz de rejuvenescer-se profundamente - não se vê emergir as condições para lutas novas ou renovadas que oponham os objetivos concretos de um universalismo civilizado ao particularismo cínico do capital? Não é, por exemplo, o que atesta a capacidade mobilizadora crescente de valores como a dignidade e a solidariedade, que dizem a quem quiser ouvi-lo que o que nos faz avançar desde já em direção a uma sociedade sem classes está a caminho de converter-se, justamente de um ponto de vista de classe, em um grande assunto?
Se tudo não é falso em tal análise, pode conduzir a reconsiderações prospectivas e estratégicas de primeira ordem. As forças potencialmente motrizes de uma superação real do capitalismo já não podem, de nenhum modo, ficar encerradas em uma mera definição de classe à moda antiga: sob muitos pontos de vista ultrapassam-na. O atraso de tomar uma consciência clara disso é pago com uma muito lamentável carência de intervenção das organizações anticapitalistas, por exemplo, nas graves crises de conteúdo que se esboçam ou se aguçam no campo da pesquisa científica ou do sistema de saúde, da escola ou do esporte, da criação artística ou das redes de informação.
O que confere ao capitalismo sua reputação de ser impossível de se superar não se deve por acaso em grande medida a uma pusilanimidade teórica e prática para conceber e construir os movimentos sociais, culturais e políticos novos, capazes de se empenharem em sua superação, movimentos cujas hipóteses já estão dadas ou pelo menos em vias de surgir? A responsabilidade é, portanto, considerável para todos os que propõem renovar a cultura desenvolvida por Marx. Não é tempo de dizer que se tornou completamente obsoleta a problemática do socialismo entendido como substituição da burguesia pela classe operária como classe dirigente? Cada vez mais claramente entra na ordem do dia uma problemática diretamente comunista em que o objetivo é iniciar desde já a substituição, muito conflitiva mas progressiva, das gestões capitalistas por regulações de interesse comum - no limite comum a todo o gênero humano. Para quem visse nisso a extravagante utopia da palavra de ordem: “comunismo já”, poder-se-ia perguntar se nunca refletiu sobre o conselho dado por Marx, há cento e trinta anos, aos trabalhadores da Europa: em lugar de “a palavra de ordem conservadora: um salário justo para uma jornada de trabalho justa”, inscrevam em suas bandeiras “a palavra de ordem revolucionária: abolição do trabalho assalariado”.
Resumo estas considerações em uma terceira tese: o que morreu nestes finais do século XX, tomando o termo em seu sentido conceituai, é o socialismo - socialismo que deveria ser a “primeira fase do comunismo” e comprovou ser sua antítese essencial. O que se incorpora por sua vez à ordem do dia, no sentido marxiano da palavra, é o comunismo - um comunismo cujo conceito substantivo deve ser inteiramente reelaborado a partir das realidades de hoje, e dos pressupostos do amanhã que neles proliferam.
Por certo, inclusive aqueles que subscreveriam em alguma medida estas teses, não deixariam de se colocar uma outra questão: se tal conceito do comunismo é pertinente, seria possível conservar o termo, em que pese tudo que tem sido perpetrado em seu nome — diria melhor: com seu pseudônimo — neste século, como denominação de uma força política que adota como objetivo semelhante superação do capitalismo? Minha resposta pessoal é afirmativa, com a condição de uma verdadeira refundação de uma organização política de novo tipo, totalmente livre das heranças de todas as Internacionais que existiram depois da primeira. Mas para justificar esta resposta teria que me adentrar na exposição de motivos de uma tese número quatro, e já não há mais tempo.
Entretanto, um último interrogante. Minha intervenção não será, afinal de contas, demasiado otimista frente à derrocada cujo terrível passivo nos aflige? Respondo que sim, trata-se de um otimismo de tonalidade bastante trágica, porque, como estar acossado pela urgência unida à extrema dificuldade de reconstruir uma perspectiva de transformação social radical, sob o risco de não poder conjurar catástrofes políticas e humanas demasiado previsíveis? Mas, em se aderindo verdadeiramente ao materialismo crítico de Marx, poder-se-ia deixar de advertir, no entanto, que a eventualidade mesma de tais catástrofes é o reverso das possibilidades ainda muito pouco utilizadas para evitá-las? É a tese que atravessa todas as minhas teses: o pior nem sempre é indubitável.
Notas de rodapé:
(1) As citações foram tomadas de K. Marx, Elementos fundamentales para la critica de la economia política (Grundrisse, 1857-1858), vol. 2 (9ª edição, México/Madri: Siglo Veintiuno Editores, 1982), pp. 220 e 228. (retornar ao texto)
Inclusão | 29/07/2019 |