Contribuição Simpósio Internacional sobre o Campo do Tarrafal

Aurélio Santos

Maio de 2009


Fonte: http://www.urap.pt/index.php/histria-mainmenu-37/tarrafal-mainmenu-47/243-contribuio-de-aurlio-santos-no-simpsio-internacional-sobre-o-campo-do-tarrafal

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1. O Tarrafal - No contexto da versão salazarista de fascismo

O Tarrafal constitui a mais completa expressão da natureza do regime fascista que no segundo quartel do século passado se implantou em Portugal, impondo durante cerca de meio século uma ditadura fascista a povos de dois continentes, até ao seu derrubamento pela revolução de 25 de Abril de 1974. A sua história atravessa as várias fases desse regime, reflectindo também de certo modo a sua evolução, revelando muitas das suas características, expondo a natureza fascista do regime, o papel dos métodos repressivos na sua política.

O Tarrafal é, pois, um espaço em que o dever de memória nos confronta directamente com o passado histórico dos povos que aqui deixaram memória, na luta pelos seus princípios e ideais.

Aqui se cruza a história de dois continentes e a luta daqueles que em Portugal e em Africa se levantaram contra um regime caduco de ditadura fascista e colonialista, lutando pela liberdade, a democracia e a soberania, num século onde estiveram em causa questões fundamentais da sociedade humana.

O regime fascista português foi implantado no terreno político criado pela ditadura militar estabelecida com o golpe de Estado de 1926, que derrubou o regime republicano português. A ditadura militar dissolveu o Parlamento, instalou a censura à imprensa, proibiu os partidos políticos, iniciou a perseguição às organizações sindicais, aos sindicalistas, aos democratas.

Vivia-se no mundo, nesses anos 20 do século passado, um período de grandes crises sociais e políticas.

A sombra negra do fascismo começava a alastrar pela Europa, com uma agressividade crescente, que levou ao desencadeamento da II Guerra Mundial.

Em Portugal a ditadura militar encontrou em Salazar a pessoa para se tornar a face visível, o orientador e o organizador do novo regime de opressão, repressão e exploração - a que chamaram «Estado Novo».

Salazar estabeleceu a base política e ideológica desse novo regime. Adaptou às condições de Portugal, nas suas expressões mais reaccionárias, a natureza antidemocrática e o corporativismo fascista italiano de Mussolini, figura pela qual Salazar não esconde a sua admiração política.

Pela Constituição salazarista de 1933, apresentada para votação numa farsa de plebiscito em que, num quadro repressivo, as abstenções são contadas como votos favoráveis, o regime ganha a sua configuração jurídico-institucional.

O modelo de implantação deste regime foi abertamente o das ditaduras fascistas de Mussolini e de Hitler. Salazar foi incondicional aliado de Franco na Guerra Civil espanhola (1936-39) para a instauração da ditadura fascista. Na II Guerra Mundial, apoiou as ditaduras de Hitler e Mussolini até à sua derrota militar.

Para nós, resistentes e lutadores antifascistas, a caracterização do Estado Novo como ditadura fascista não importa apenas como elemento para a sua definição histórica. Não caracterizamos o regime como fascista apenas pelos métodos ditatoriais repressivos que utilizou para impor a sua política ao povo português.

Duas questões nos parecem fundamentais para essa caracterização. Ela não só caracteriza a sua natureza social como constitui factor importante para compreender os seus objectivos, os interesses que orientaram a sua política, incluindo a razão dos seus métodos repressivos.

Assim também como as posições das várias camadas sociais cujos interesses ele privilegiava e que, no quadro por ele institucionalizado, dominaram ditatorialmente o país durante meio século, subordinando aos seus interesses as outras camadas da sociedade portuguesa. Daí, para nós, a importância da caracterização do Estado Novo como um regime fascista, abrangendo não apenas as suas expressões políticas e as suas práticas repressivas mas também os interesses e motivações que estiveram na base dessas actuações, com os fundamentos ideológicos e culturais em que foram envolvidos.

Não cabe aqui fazer uma análise da ideologia fascista e seus reflexos na aplicação prática das ditaduras fascistas. Mas num quadro de referência a ideais e princípios justifica-se ter em conta alguns traços da versão salazarista de fascismo.

Como todos os regimes fascistas, o fascismo português teve os seus traços próprios. Não foi tão exibicionista como o de Mussolini, nem tão abertamente brutal, racista e arrogante como o de Hitler. Em certa medida também porque nunca encontrou apoios e simpatia da parte do povo português.

O regime salazarista associou à sua versão de fascismo um nacionalismo passadista, elitista, com uma mistificação do passado histórico. A hipocrisia foi um traço constante com que tentou encobrir os aspectos mais brutais da sua acção repressiva e da sua política antipopular. Tentava encobrir com um véu de paternalismo os aspectos mais cruéis do regime. Mas na sua actuação encontram-se as mesmas raízes, os mesmos interesses: foi uma ditadura terrorista, com uma política imposta por uma repressão apoiada na força das armas, na eliminação das liberdades e direitos dos cidadãos e na repressão policial.

Também no caso português o sector financeiro foi entre as classes sociais dominantes o principal promotor e beneficiário da ditadura salazarista. O peso que os interesses coloniais tinham nesses sectores explica o apego do regime à sua faceta colonialista. Entre os sectores que em Portugal promoveram o fascismo incluía-se também uma herança das estruturas feudais, os agrários latifundistas. 

Num país marcado por um fraco desenvolvimento das forças produtivas, uma política de acelerada concentração e acumulação da riqueza, reclamada pelos sectores das classes dominantes da ditadura fascista, só pela força podia ser assegurada.

Esses métodos não resultavam duma crueldade gratuita dos servidores do Estado Novo. Tinham como objectivo principal permitir a aplicação de uma política que atingia cruelmente a esmagadora maioria do povo português, e só pelo terror podia ser imposta.

E foi em função dos interesses dessas classes que o fascismo salazarista implantou uma política de exploração e miséria.

A partir do dogma de «equilíbrio orçamental», os baixos salários foram apresentados como exigência do interesse nacional. Os sindicatos livres foram proibidos e substituídos por «sindicatos» fascistas, cujas direcções dependiam por lei de aprovação governamental. As greves foram proibidas, bem como qualquer forma de protesto ou organização dos trabalhadores. E para zelar pela aplicação destas imposições foi criada uma polícia política, a PVDE, mais tarde chamada PIDE e depois DGS, que se considerava «acima de qualquer lei» e com poderes de vida e de morte na sua actuação. E por detrás da polícia política alinhavam, para a repressão de massas, os esquadrões militarizados da GNR, que compunham a parte mais profissionalizada e melhor equipada das Forças Armadas portuguesas.

No vértice da pirâmide do Estado fascista encontrava-se o Chefe do Governo - Salazar, cuja figura era incensada por um poderoso aparelho de propaganda e que detinha, de facto, todos os poderes do Estado. O Presidente da República era uma simples figura decorativa, e no Parlamento - baptizado de Assembleia Nacional - só podia estar representado o partido fascista, chamado «União Nacional».

Com pequenas variações impostas pela evolução da situação nacional ou internacional, foi este o regime que oprimiu Portugal e os territórios submetidos ao Estado português.

A consciência da natureza fascista do regime salazarista foi um importante factor para a destrinça de alianças e adversários na luta contra a ditadura. Mas mantém essa importância não só para a compreensão dessa época e dos valores, conceitos, ideologias e políticas que se defrontaram no século XX, como para a erradicação das raízes que o fascismo deixou na sociedade.

Porque a sobrevivência da ditadura fascista portuguesa e o prolongamento do seu «império colonial» durante quase meio século também suscitam reflexão na nossa memória histórica.

O Tarrafal - expressão internacional da repressão colonialista e fascista

O Campo de Concentração do Tarrafal reflecte na sua história as várias fases e características da repressão salazarista.

A sua inauguração, em Setembro de 1936, marcou uma época do mais brutal agravamento da repressão salazarista.

Salazar acabara de estabelecer as estruturas orgânicas do regime fascista com a imposição da Constituição de 1933.

Numa fase de consolidação do regime e num ambiente internacional favorável, o fascismo português procurava as formas de repressão e intimidação que lhe assegurassem estabilidade. 

O Campo do Tarrafal foi, nesse quadro, importante para manter no país um clima de terror, como elemento da política de repressão selectiva que o regime começava a aplicar.

Ser enviado para o Tarrafal era ter pena suspensa de morte.

Criado muito longe de Portugal, numa ilha onde o mar reforçava a prisão e garantia o isolamento dos prisioneiros, longe das vistas dos portugueses e do apoio das suas famílias, os presos enviados para o Tarrafal ficavam inteiramente à mercê dos carcereiros.

Nas primeiras levas de prisioneiros encontravam-se muitos dos participantes nas greves do 18 de Janeiro realizadas em Portugal contra as leis de fascização dos sindicatos e participantes da revolta dos marinheiros de 1936, mas também outros antifascistas, sindicalistas, dirigentes políticos como Bento Gonçalves, secretário-geral do Partido Comunista Português, Mário Castelhano, dirigente anarquista.

O Tarrafal foi criado segundo o modelo dos campos de concentração nazis, que Hitler nessa altura começava a montar na Alemanha e depois estendeu, como campos de extermínio, por todos os países ocupados pelo exército nazi.

No Tarrafal não havia câmaras de gás, como nos campos de concentração nazis. Mas havia um executor silencioso, o mosquito anofeles, que espalhava o paludismo. Sem quinino, sem tratamentos médicos (o médico do Campo afirmava abertamente que só estava ali para passar certidões de óbito), as biliosas dizimavam as primeiras levas de prisioneiros do Tarrafal.

Os castigos e torturas faziam parte do regular arsenal repressivo fascista. A «frigideira», bloco de cimento onde os presos do Tarrafal eram encerrados como castigo, submetidos a altíssimas temperaturas, ficou como símbolo das torturas do Tarrafal.

Os maus-tratos, a má alimentação, as doenças sem tratamento e o clima, numa das então mais insalubres regiões de Cabo Verde, mataram 44 dos antifascistas portugueses que por lá passaram. Depois do 25 de Abril, os seus restos mortais foram transladados para Portugal, e encontram-se num monumento funerário de homenagem a essas vítimas da ditadura fascista, erigido no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa.

Este Mausoléu de homenagem aos tarrafalistas, que foi construído com base numa subscrição nacional apoiada por forças antifascistas, está actualmente à guarda da URAP, que anualmente ali promove uma concentração de homenagem aqueles que no Tarrafal foram encarcerados, torturados e mortos por defenderem a Democracia e a Liberdade.

Mesmo quando a derrota dos exércitos hitlerianos pôs fim à vergonhosa história dos campos de concentração nazis, o Campo do Tarrafal continuou em funcionamento. Mais portugueses foram para lá lançados, quando lutavam pelo derrubamento da ditadura e pela Democracia, depois do fim da guerra. E só em 1953 foi encerrado, após grandes campanhas de denúncia e protesto, em Portugal e no plano internacional.

Mas, numa reveladora sintonia com as várias fases da ditadura fascista portuguesa, foi reaberto para em 1961 para os patriotas das colónias portuguesas em luta pela independência dos seus países.

2. Três fases do fascismo salazarista

No quase meio século da sua ditadura o regime fascista português viveu várias conjunturas internacionais e teve de se defrontar com várias frentes de luta contra o regime.

Numa primeira fase, que correspondeu à sua implantação, no início da década de 30 exibia ostensivamente o seu modelo fascista.

Quando os exércitos do nazi-fascismo foram derrotados e o pós-guerra abriu uma fase de vitória da Democracia, procurou ocultar os mais evidentes sinais exteriores da sua natureza fascista para poder manter o regime e continuar a mesma política.

Mas quando o desenvolvimento da luta de libertação nacional que percorreu o mundo no pós-guerra chegou às colónias portuguesas, nos anos 60, voltaram à tona os traços mais brutais, reveladores da natureza fascista do regime português.

A fase de exibição do modelo fascista

As referências ao modelo fascista do seu regime foram o suporte político e ideológico de Salazar para a implantação do seu Estado Novo.

Promoveu a saudação fascista nas escolas e nos actos públicos, criou milícias fascistas obrigatórias nas empresas (Legião Portuguesa), enquadrou a juventude na Mocidade Portuguesa, obrigatória nas escolas. Fazia-se fotografar, tendo o retrato de Mussolini sobre a mesa de trabalho, e juntamente com Franco, reclamava «O nosso século será fascista».

Mais grave foi a cópia salazarista das estruturas, instituições e concepções jurídicas do fascismo.

Copiou a «Carta del Lavoro» de Mussolini (até nos articulados!) para liquidar os sindicatos livres, manietar os direitos dos trabalhadores e permitir o agravamento da sua exploração.

Acompanhando as visões imperiais do fascismo, proclamou o «Império Colonial Português», que, juntamente com o Acto Colonial (1930), agravou a dominação dos povos das colónias portuguesas, estendendo a esses territórios todas as medidas e estruturas repressivas do regime fascista português.

No período que antecedeu a guerra, a posição do fascismo português foi de claro apoio perante as ambições territoriais e revanchistas de Hitler e de exaltação do que Salazar chamava «o génio político» de Mussolini.

Para Salazar a anexação da Checoslováquia «foi apenas um episódio ou incidente».

Quando Hitler invadiu a Polónia e iniciou a II Guerra Mundial dizia: «A Alemanha fez saber que «está na disposição de respeitar a integridade de Portugal e das suas possessões ultramarinas».

À Alemanha nazi não interessava a participação do pequeno e mal preparado exército português. O que lhe interessava era o enorme auxílio em minérios para a indústria de guerra (volfrâmio, estanho, cobre, etc.), em munições e explosivos, em abastecimentos de géneros alimentícios. À sombra da «neutralidade cooperante», o Governo português, ao mesmo tempo que proclamava a neutralidade e reafirmava a aliança com a Inglaterra, colaborava intensamente com a Alemanha nazi. Entregava fornecimentos estratégicos à máquina de guerra hitleriana, na continuação lógica de relações que se tinham consolidado na ajuda a Franco.

Os «germanófilos» fascizantes campeavam nos círculos sociais dominantes, na comunicação social, nas forças militares. As bandeiras da cruz suástica exibiam-se por Lisboa. Os «anglófilos» que usavam insígnias inglesas eram espancados nas ruas. A «elite» salazarista estudava planos para o «após guerra» procurando a inserção de Portugal numa «Nova Ordem» sob a soberania da «Grande Alemanha». As teorias nazis do «Chefe» e das «elites dirigentes» eram adoptadas como doutrina oficial. E um dos mais ardentes germanófilos da época, Marcelo Caetano, comissário nacional da «Mocidade Portuguesa» apelava à obediência, proclamando em 1940 aos Comandantes de Castelo: «há que obedecer ao Chefe porque ele promete a vitória, o chefe há-de levar à vitória».

Enquanto os exércitos de Hitler avançavam nesses anos em todo o lado, Portugal converteu-se numa base de conspiração diplomática hitleriana. O próprio irmão do rei de Inglaterra viria a Portugal, depois da invasão da URSS, para tentar negociar com os alemães uma «paz separada». Portugal tornou-se uma base da espionagem alemã.

Salazar enviou para a frente Leste oficiais do Exército português como observadores e centenas de oficiais faziam estágios na Alemanha. E já no fim da guerra, numa derradeira prova da sua fidelidade ao nazi-fascismo decretou «luto nacional» pela morte de Hitler.

Mas com a derrota alemã em Stalinegrado regista-se uma viragem na guerra. Em Julho os anglo-americanos desembarcam na Sicília. Cai Mussolini. As organizações da Resistências anti-nazis ganham força nos países ocupados.

Em 1943 realizaou-se a Conferência de Moscovo anglo-americano-soviética e em fins de Novembro a Conferência dos Três Grandes em Teerão.

Salazar começou a pensar no pós-guerra e nas formas de salvar o seu regime.

Sabe (e diz) que a Inglaterra e os EUA são as potências que virão a ter grande papel no pós-guerra, prevê o confronto dessas potências com a URSS e prepara-se para tomar posições no que viria a chamar-se a guerra-fria, onde espera que o seu anticomunismo assegure a sobrevivência do seu regime.

Com de facto aconteceu.

A manobra de ocultação dos sinais exteriores do fascismo

O ascenso da luta popular antifascista em Portugal durante a II Guerra provou que o fascismo salazarista não tinha o mínimo apoio da parte do povo português.

Com a derrota de Hitler e Mussolini, Salazar compreendeu que o seu regime não podia continuar a exibir as marcas exteriores do fascismo. E para salvar o regime, mantendo a sua natureza e as suas estruturas, aplicou uma operação de cosmética verbal, com a benévola aquiescência dos seus novos aliados.

Crismou o seu regime fascista como uma «democracia orgânica» e anunciou a realização de eleições «tão livres como as da livre Inglaterra». Mas as «eleições» foram uma farsa, em que foram recusadas à Oposição os mais elementares condições de actuação.

A «democracia orgânica» de Salazar confirmou-se como uma sobrevivência dos regimes fascistas derrotados pela guerra e pela luta dos seus povos. Nem na prática política, nem nas medidas repressivas, nada de fundamental se alterou no regime da ditadura fascista de Salazar. Os Tribunais Plenários que em 1945 substituíram os Tribunais Militares Especiais, continuaram a condenar em casos políticos: 3.888 condenações até 1974. Durante esse período continuaram anualmente a ser encarcerados centenas de antifascistas, muitos com a prisão por tempo indefinido, à sombra das «medidas de segurança». A censura foi mantida, as medidas repressivas e penas de prisão para actividades reivindicativas ou culturais continuaram, os sindicatos continuaram controlados pelo Governo, organizações cívicas e partidos políticos continuaram proibidos. A polícia política continuou dizendo (e praticando) que nas suas sedes não entrava a Lei, onde a tortura era norma.

E a ditadura não excluía do seu arsenal repressivo o assassinato político. Exemplo desses métodos foi o assassinato em 1965 do general Humberto Delgado, que, numa das farsas eleitorais com que o fascismo pretendia ocultar a ditadura, concorreu como candidato da Oposição, com enorme apoio popular, tendo a coragem de dizer abertamente sobre Salazar: «Obviamente, demito-o». 

Mas a ocultação pelo salazarismo dos sinais exteriores de fascismo foram o suficiente para alcançar a indulgência dos seus novos aliados. Em 1949 foi admitido na NATO. E passou a fazer parte do mundo livre e da «defesa da civilização ocidental e cristã».

A versão fascista da barbárie colonialista

Com o início das guerras coloniais, em1962, os traços mais brutais do regime fascista português voltam a revelar-se abertamente.

Defrontado com o início da rebelião angolana, Salazar proclama: «Para Angola e em força!»

Milhares de soldados e oficiais são lançados para África. As chacinas, os bombardeamentos de napalm, os desfolhantes, o massacre de populações civis como represália, tornam-se prática corrente do fascismo português em África. Tal como fazia o exército nazi nos territórios ocupados.

O Campo de Concentração do Tarrafal é reactivado, agora para patriotas angolanos, cabo-verdianos, guineenses.

A guerra de libertação alastra, em Angola, na Guiné, em Moçambique. O fascismo português lança para África, no seguimento das tropas, os seus rafeiros da PIDE, que monta nas colónias africanas redes de espionagem, grupos de tropas mercenárias. Novos Tarrafais são abertos - em Forte Roçadas, Machava, Ilha das Galinhas. Em alguns deles a acumulação de presos é tal que muitos, sufocados, morrem de pé e assim ficam, por não terem espaço para cair.

As sucessivas condenações na Assembleia-Geral das Nações Unidas são boicotadas no Conselho de Segurança por vetos dos aliados do regime português.

A face de hiena do fascismo revelou-se assim da forma mais brutal nessa guerra desesperada do agonizante colonialismo da ditadura fascista portuguesa, sobrevivência do fascismo no último quartel do século XX.

3. O colonialismo no contexto da ditadura fascista portuguesa

A exploração colonial era uma das principais fontes de proventos dos sectores financeiros portugueses, que promoveram a instalação da ditadura fascista e dominaram a sua política. E eram também um trunfo importante para as ambições do regime no plano mundial.

Os conceitos do «Império Colonial Português», proclamados por Salazar em 1930 pelo «Acto Colonial», foram por eles saudados e apoiados como parte intrínseca da ideologia nacionalista e da essência política do regime fascista.

«Portugal não é um país pequeno», martelava-se na propaganda salazarista, onde a evocação do «Império Colonial» procurava fazer esquecer as difíceis condições de vida em que a ditadura mantinha as camadas populares e a real dependência internacional do país. Foi, desde início, um factor essencial da propaganda nacionalista, que pretendia legitimar a dominação colonial com a evocação de um passado histórico mitificado. A Exposição do Mundo Português, em 1940, foi o momento alto dessa faceta da propaganda salazarista.

Vale a pena recordar que o colonialismo, incluindo o colonialismo português, em todo o seu percurso histórico revelou e aplicou processos e comportamentos que demonstram concepções que, nas práticas nazis do século XX, foram exercidas de forma vergonhosa. Toda a história do colonialismo foi marcada por conceitos de raças superiores e inferiores, por vezes sob máscara de superioridades civilizacionais ou religiosas. «Limpezas étnicas» houve que levaram ao desaparecimento e extinção de populações nativas, como nos Estados Unidos da América do Norte e na Austrália. O tráfico de escravos dizimou as populações africanas num comércio de deportação para as Américas, que se prolongou até ao século XIX. E não deixa de ser significativo que, no início do século XX, os primeiros campos de extermínio alemães tenham sido criados em África, na actual Namíbia (então colónia alemã com a designação de Sudoeste Africano), num processo de extermínio da população bosquimane.

Na fase do estabelecimento do sistema mundial do colonialismo, designadamente com a chamada «partilha de África», na Conferência de Berlim, os processos de dominação política directa foram as formas tomadas para assegurar às chamadas «potências coloniais» políticas de escravização, exploração económica, discriminação social e esmagamento cultural. Os métodos que o nazismo aplicou no Continente Europeu têm esse traço comum, apresentado pelo nazismo como ideologia do Estado, com aplicação universal. Nele se proclamava a superioridade da «raça ariana», destinando as outras raças, por eles consideradas «inferiores», à subordinação, à escravização (eslavos) ou ao extermínio (hebreus).

A ditadura fascista portuguesa, com a sua hipocrisia característica, cobriu o conteúdo da sua versão imperial-fascista do seu colonialismo com um véu em que o racismo, os processos de escravização (como o envio de moçambicanos para as minas do Rand e de «contratados» de Angola para S. Tomé), a discriminação social, a exploração económica, eram apresentados como um paternalismo legitimador, que ocultava a exploração económica e os processos de esmagamento cultural e discriminação social que a acompanhavam.

A proclamação do «Império Colonial Português», bem ao jeito das concepções imperiais dos fascismos europeus dos anos 20 e 30, ganhou corpo institucionalizado com o Acto Colonial dos anos 30 e foi posteriormente integrado na Constituição fascista de 1933. Com a celebração do Acordo Missionário com a Santa Sé o regime integrou-o no quadro institucional em que enquadrou a sua política colonial, visando um processo de aculturação que aproveitava a acção missionária como elemento da dominação portuguesa.

Esses documentos, assim como o «Estatuto do Indígena», são reveladores das concepções racistas de dominação que orientavam o colonialismo. Como observava Amílcar Cabral a propósito das condições exigidas aos africanos para serem reconhecidos como «assimilados» com direito de cidadania portuguesa: eram exigências tais que a maior parte da população de Portugal não as poderia satisfazer.

A importância atribuída pelo regime salazarista à dominação colonial não resultou só do seu papel como elemento do pigmento nacionalista da sua ditadura.

As riquezas e possibilidades de exploração económica que as colónias ofereciam foram factores essenciais da ditadura salazarista. E não apenas pelo peso que a exploração colonial tinha nos sectores financeiros que dominavam o regime. Foram-no também pela importância que os recursos coloniais e a dominação colonial ofereciam para obter os apoios políticos e diplomáticos estrangeiro de que o regime fascista dependia.

Com o fim da II Guerra Mundial a época da dominação mundial do colonialismo entrou em crise.

O direito à soberania nacional ganhou reconhecimento, num novo quadro mundial, como componente e condição da universalidade dos direitos humanos.

Nos anos 50 e 60 do século passado, o sistema colonial ruiu. Perspectivaram-se novas formas de relacionamento internacional, ganharam peso conceitos de respeito pelos direitos de cada povo, num processo que levou à liquidação do sistema colonial.

Tal como tinha feito em relação à ocultação dos sinais exteriores do fascismo, o colonialismo português, embora tardiamente, tentou também, numa operação de cosmética verbal, ocultar a natureza imperial-fascista do seu colonialismo.

Essa operação de cosmética verbal foi iniciada em 1951 com propostas para alterar na legislação portuguesa as designações referentes ao Império Colonial. As colónias passaram a ser designadas como Províncias Ultramarinas e o «Império» como Ultramar Português, «parte integrante e inalienável do território nacional»...

Depois de uma discussão de vários anos nas instâncias do regime, essas alterações foram apressadamente reguladas em 1961 com o início da guerra de libertação em Angola.

Foi na base dessa manipulação formal, benevolamente acolhida pelos aliados do regime, que o fascismo colonial português, numa fase tardia do sistema colonialista já em derrocada, procurou prolongar o seu domínio.

Não o teria podido fazer sozinho.

Com uma guerra que se prolongou por mais de 12 anos, o Governo de um pequeno país como Portugal, economicamente pouco desenvolvido e dependente, internacionalmente condenado, sem dispor de generalizado apoio do seu povo, também ele em luta contra a ditadura, não o teria conseguido sem fortes apoio externos.

As guerras coloniais portuguesas só foram possíveis pelos apoios diplomáticos e militares que o Governo português recebeu por parte das grandes potências interessadas, por razões económicas e estratégicas, na manutenção dessa dominação colonial.

A maioria dos recursos das colónias portuguesas, designadamente em Angola e Moçambique, era detida por grupos financeiros internacionais interessados nas garantias que o colonialismo português assegurava na defesa e manutenção desses interesses. Tal como, no quadro da guerra-fria, nos planos estratégicos do continente africano, países como a África do Sul e as grandes potências da NATO estavam interessados em manter os territórios das colónias portuguesas sob controle de um aliado seguro e dependente, como era o caso do Governo português.

Na agonia do colonialismo as guerras do fascismo colonial português ficaram assim como derradeira batalha e último reduto mundial de um sistema caduco, cruel e historicamente condenado.

O povo português contra as guerras coloniais

As guerras coloniais abriram novas frentes de luta contra a ditadura fascista portuguesa, numa frente que também passava pelo povo português. Enfrentando redobrada fúria repressiva do regime, tornou-se um dos principais temas para as forças da Oposição. Cedo ganhou proporções de massa com a recusa de ir à guerra de dezenas de milhar de jovens anualmente, com manifestações de protesto nos embarques de soldados, recusa passiva de participar nos massacres em África. A ARA (Acção Revolucionária Armada) iniciou acções de sabotagem contra a máquina de guerra colonial: sabotagem do navio Cunene, utilizado no transporte de armamento para África, destruição de helicópteros na Base de Tancos. A luta contra a guerra encontra eco nos quartéis, alarga-se abertamente nas universidades. O direito à independência dos povos coloniais ganhou terreno. Reconhecido em 1955 pelo Partido Comunista Português (Vº Congresso), tornou-se uma das principais reivindicações da Oposição Democrática reunida no Congresso unitário de Aveiro em 1973 e nas farsas eleitorais fascistas. A luta chega aos quartéis e aos aquartelamentos de África. Forma-se o Movimento dos Capitães, de onde nasce o Movimento das Forças Armadas que desencadeia a Revolução de Abril de 1974 e derruba o Governo de Marcelo Caetano. O grito: «Nem mais um soldado para África» percorreu o país. E uma das principais realizações da revolução foi, precisamente, o fim das guerras coloniais e o reconhecimento da independência dos povos das colónias portuguesas.

Uma nova era ficou aberta para o povo português e os povos das colónias portuguesas.

4. O dever de memória perante a História

O dever de memória não consiste só em prestar homenagem aos que contribuíram para deter os recuos e garantir os avanços da sociedade humana, como aqueles que no Tarrafal deram disso testemunho.

Dever de memória é também avaliar os acontecimentos do passado para com eles melhor ir ao encontro do futuro.

Nós, resistentes e lutadores contra o fascismo, não encaramos o fascismo como um episódio conjuntural da História.

O fascismo representou uma brutal regressão no processo de desenvolvimento civilizacional. Mas só uma leviana incompreensão da História poderia levar à convicção de que a derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial, e do fascismo português 30 anos mais tarde, pôs em definitivo o mundo ao abrigo de regimes autoritários ou ditatoriais que restabeleçam os métodos e as políticas que o fascismo quis impor ao mundo na sua versão do século XX.

Não voltará certamente nas formas que assumiu nos anos 20/30 do séc. XX. A sociedade não é a mesma e as suas estruturas são diferentes. Mas o fascismo não é um fenómeno conjuntural, específico de uma determinada conjuntura.

Tem carácter universal, com raízes sociais e económicas que aparecem como resposta desesperada, numa economia em queda, de sectores sociais que pretendem impor pela força a manutenção do seu domínio, subordinando aos seus interesses o conjunto da sociedade e usando para isso a violência e a repressão.

Foi num cenário assim que se preparou e desencadeou no século XX o assalto do nazi-fascismo ao poder, com expressões próprias nos vários países da Europa.

Conceitos como «Nova Ordem» e «Império de Mil Anos«, a divisão da humanidade em «raças superiores», de senhores, e «raças inferiores», destinadas a serem escravizadas; a justificação e glorificação da violência como forma de resolver os problemas sociais (o «poder forte»), indo mais tarde até aos métodos do extermínio em massa (a «solução final») - foram o caldo de cultura da ideologia nazi.

Mas não podem ser esquecidas as suas bases sociais e económicas. Tal como não podemos esquecer as bases sociais, económicas e culturais ligadas às práticas do colonialismo.

Hitler não teria chegado ao poder sem o apoio e a cumplicidade dos sectores que, no seu programa de militarização, expansão territorial e domínio mundial, viam uma ocasião para aumentar proventos. O fascismo foi benevolamente acompanhado e apoiado, mesmo depois do ascenso de Hitler ao poder, por círculos dirigentes económicos e políticos dos principais países, que nele viam um instrumento útil para a contenção, repressão e esmagamento das fortes movimentações sociais que se desenvolviam perante as crises que se registaram no seguimento da Iª Guerra Mundial.

Deturpar e falsificar essa página da história recente da humanidade enquadra-se numa grave ofensa de direitos humanos, em particular relativamente aos jovens, negando-lhes o direito de aprender sem manipulação ou distorção de factos, de conhecer os horrores e o significado do fascismo e do colonialismo, o alcance da luta anti-fascista e anti-colonialista, no seu enquadramento histórico.

A denúncia do significado do fascismo e do colonialismo mantém-se como exigência actual. Mais ainda porque as novas gerações não conheceram, felizmente, as consequências dramáticas da dominação fascista e do colonialismo, nem as abomináveis concepções da ideologia que o fascismo e o colonialismo quiseram impor, matraqueando-a nas escolas e martelando-a na comunicação social amordaçada.

Para uma democracia do nosso tempo

As vitórias sobre o fascismo e o colonialismo criaram condições para os povos darem um salto em frente na luta pelas suas aspirações, por um mundo melhor.

O próprio conceito e conteúdo da Democracia ganhou novo horizonte.

Como todos os conceitos ligados ao desenvolvimento da sociedade humana, a democracia não tem uma condição estática. Desde o tempo da civilização grega tem vindo a ser historicamente construída, desenvolve-se através da própria experiência histórica da humanidade. 

No pensar de milhões de pessoas, o conceito democrático lançado pela revolução francesa, ao proclamar «todos homens nascem livres e iguais», foi alargado para um novo conceito, abrangendo não só os direitos políticos mas também os direitos sociais e nacionais da pessoa humana. A consciência de que os direitos sociais são direitos naturais e inalienáveis do Homem ganhou raízes fortes na consciência das pessoas.

No processo que levou à liquidação do sistema colonial perspectivaram-se também novas formas de relacionamento internacional, desenvolveram-se conceitos de respeito pelos direitos de cada povo. O direito à soberania nacional é hoje reconhecido como componente e condição da democracia e da universalidade dos direitos humanos. E nos direitos do homem, como parte integrante da democracia, passaram a ter lugar os direitos sociais.

A democracia ganhou assim, no nosso tempo, novos horizontes, novas dimensões, novas exigências.

Uma democracia que responda às aspirações dos homens dos tempos modernos deve não só assegurar as liberdades e direitos dos cidadãos, como a melhoria das condições de vida das populações, reconhecer e respeitar os direitos laborais e sociais como direitos humanos inalienáveis, assegurar critérios de justiça social na distribuição dos rendimentos e no desenvolvimento económico. Só assim uma democracia assegura a sua estabilidade e o apoio social de que necessita para ser exercida na sua plenitude.

A democracia, além de ser uma conquista, passou também a ser terreno legitimamente assegurado para defesa e alargamento das aspirações e direitos do ser humano.

É portanto com preocupação que, neste início do século XXI, encontramos retrocessos na garantia desses direitos.

O branqueamento das raízes sociais e económicas do fascismo e do colonialismo, o falseamento do significado e conteúdo da luta travada contra o fascismo e o colonialismo, o retomar de concepções e políticas que estiveram na sua génese, são algumas formas dessa ofensiva de retrocesso histórico.

A violência da exploração, a injustiça social, corroem a democracia, retiram-lhe o apego social. A prioridade dada à concentração dos lucros, com as medidas a que isso obriga e às consequências a que inevitavelmente conduz, leva ao descrédito de instâncias políticas, de conceitos ideológicos, direitos e valores políticos credibilizados com a vitória da democracia. Criam-se assim condições favoráveis à instauração de regimes de cariz autoritário.

É um terreno em que concepções fascizantes, o seu pendor para a violência, o seu ódio à democracia, encontram terreno favorável para a manipulação de descontentamentos, protestos e rancores.

A luta antifascista tem hoje para nós continuação natural na luta por uma democracia com as dimensões pelas quais os povos tanto lutaram.

Na defesa da memória, da democracia e da liberdade não podem estar apenas empenhados os que viveram e conheceram os tempos de opressão que aqui lembramos.

A participação das novas gerações é essencial para que a transmissão da memória se converta em novos avanços da sociedade humana.

Na luta pela liberdade e a democracia, contra as sobrevivências do fascismo, do colonialismo e do racismo podemos confiar na juventude, na força dos povos, da pessoa humana, na consciência de que a humanidade precisa de paz e de um desenvolvimento mais harmonioso, mais justo e mais humano, em todo o planeta.

Tarrafal com Encontro de Memórias

Trinta e cinco anos depois da libertação dos últimos prisioneiros do Tarrafal, este terreno que viu tantos sofrimentos dos nossos povos é também espaço da memória comum.

A libertação do fascismo e do colonialismo abriu para os nossos povos novos horizontes de fraternidade, cooperação, amizade.

Novas perspectivas se abrem hoje aos povos dos países que lutaram contra o fascismo e o colonialismo.

A comemoração dos 35 anos da libertação dos prisioneiros detidos no Tarrafal pelo fascismo colonialista mostra que este espaço é também uma afirmação da fraternidade e solidariedade criada na luta comum.

Para isso a União de Resistentes Antifascistas Portugueses trabalhará, procurando que também em Portugal, por parte dos sectores e forças democráticas, e também das autoridades portuguesas, seja dado contributo para esse objectivo comum dos povos que sofreram o fascismo e o colonialismo e contra eles travaram uma luta comum.

Tal como é comum o lema que mobiliza os antifascistas portugueses:

Fascismo NUNCA MAIS!!

A ele devemos acrescentar: Colonialismo NUNCA MAIS!

 Aurélio Santos, Maio de 2009, Tarrafal, Cabo-Verde


Inclusão: 31/05/2020