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O livro Classes, identidades e transformações sociais, de Maria Cidália Queiroz (Campo das Letras, Porto, 2005), fornece indicações muito úteis aos que, como nós, procuram conhecer a estrutura actual das classes em Portugal para poder intervir em defesa dos interesses do proletariado e da revolução. Se descontarmos o calão académico, de regra neste tipo de trabalhos (a autora é professora na Faculdade de Economia da Universidade do Porto), a massa de dados e observações aqui coligidos – e de que dou apenas alguns breves apontamentos – permite-nos entender melhor a luta de classes em curso.
Desde logo, a autora não alinha nas teorizações em moda nos meios académicos sobre o “fim das classes”. Em sua opinião, pretender que as classes são um fenómeno do passado e que deram lugar a camadas sem separações nítidas, apenas diferenciadas pelos seus rendimentos ou escalões de consumo, oculta o que se passa na realidade. Sem dúvida, reconhece, as condições em que se trava a luta de classes estão a alterar-se profundamente, mas não podem ser descritas como uma mera oposição entre excluídos e abastados. O eixo em torno do qual giram as relações sociais continua a ser a exploração do trabalho. Só a partir desta realidade, escreve, compreendemos o jogo da luta em curso: os exploradores precisam de limitar os meios de vida dos explorados mas, ao mesmo tempo, dependem deles para realizar os seus interesses; é esta dependência que dá aos explorados capacidade de resistência e que determina que, entre uns e outros, não haja simples oposição de interesses mas uma tendência para a luta antagónica entre classes.(1)
É justamente para explorar mais que são postos em prática os chamados métodos modernos de organização do trabalho, que correspondem, nas palavras da autora, a uma “vigorosa ascensão do poder do capital”.
Com o emprego precário a tornar-se a principal modalidade no mercado de trabalho, acaba o emprego estável e a tempo inteiro, instala-se a incerteza. Há uma fragmentação dos grupos profissionais, a subcontratação cria diversidade de condições dentro do mesmo grupo profissional. Através da multiplicação das hierarquias, estabelece-se uma rígida separação entre a concepção e a execução, impondo condições de trabalho desqualificantes aos operários.
Trabalho clandestino, ao domicílio, à tarefa, empregos de formação, contratos de duração indeterminada – as gradações na relação entre patrões e assalariados tornam-se de tal maneira variadas e flexíveis que permitem ao patrão isentar-se de encargos do emprego. A multiplicação de situações diferentes, com assalariados da empresa a coexistir com trabalhadores subcontratados, estreita as margens de negociação e de reivindicação. A noção convencional da empresa como o local de confronto entre assalariados e patrão é abalada, tudo se passa agora a outros níveis. Muitas vezes a própria empresa cria a sua agência de trabalho temporário. O dono da empresa não é responsável pelos seus trabalhadores. Assim a empresa consegue aumentar o seu volume de negócios ao mesmo tempo que diminui o número dos seus assalariados directos.
A flexibilização provoca a concorrência entre trabalhadores através das cadências e ritmos de trabalho, horários variáveis, trabalhadores a tempo parcial ao lado de trabalhadores a tempo inteiro, trabalhadores de fora ao lado dos assalariados da empresa, etc. Acenando com a descentralização e democratização do poder, maior iniciativa e autonomia de funções para cada operário, trabalho de equipa, etc., a empresa diferencia salários, prémios e condições de trabalho, cria uma multiplicidade de chefias intermédias, fomenta a concorrência, a corrupção, a submissão das equipas ao estado-maior dos gestores que avaliam o desempenho. Objectivo: retomar o controle absoluto sobre a disciplina da fábrica.
Seguindo a estratégia de compressão dos custos por todos os meios, o capitalista reduz o salário real, intensifica os ritmos de produção, lança para o tempo de não trabalho tudo o que não é produtivo e deste modo canaliza os custos de reprodução da força de trabalho para os próprios trabalhadores ou para a sociedade em geral. O interesse em quebrar a força crescente dos trabalhadores proletarizados e concentrados em regiões urbanas leva-o a procurar forma de divisão no interior e no exterior da empresa.
Tudo isto acompanhado por uma campanha de legitimação ideológica da ofensiva do capital, que apresenta a liberdade e os direitos do investidor como uma lei natural, incontornável, da evolução da sociedade, “no interesse de todos”.
Porque não é então mais enérgica e organizada a resistência dos trabalhadores à presente ofensiva do capital? Criou-se uma nova correlação de forças em que se perderam antigas formas de intervenção. A terciarização deu lugar a colectivos menos numerosos, dispersos, com horários diferenciados, horários flexíveis, vínculo precário – tudo isto fomenta uma lógica de submissão e conformismo individual à empresa e torna mais opaca a oposição de classe entre assalariados e empresários. Passa para segundo plano o conflito de classe entre patrão e assalariado, instala-se um espírito de competição entre os próprios trabalhadores pela defesa do seu posto de trabalho e tende a esbater-se o confronto “classe contra classe” que alimentava uma contracultura comum dos explorados.
O desemprego crescente reduz ainda mais a capacidade reivindicativa dos que receiam acima de tudo perder o seu posto de trabalho. O ímpeto reivindicativo dos mais pobres não encontra como se exprimir.
Tudo isto gera uma desorientação dos sindicatos quanto a formas de luta adequadas para enfrentar a ofensiva do capital. Sob a ameaça de deslocalização, tanto os sindicatos como os trabalhadores acabam por aceitar o abandono dos acordos salariais em vigor, o aumento dos horários de trabalho, a precarização, etc. Por sua vez, a incapacidade dos sindicatos para se oporem aos despedimentos e deslocalizações tem como consequência o recuo da filiação sindical e uma menor capacidade de resposta dos colectivos operários.
Esta a situação nova a partir da qual é preciso encontrar vias renovadas de luta e organização. Dou, a seguir, de acordo com os critérios da autora, os números essenciais do peso numérico das classes e da sua percentagem na população activa.
Quadro das classes em Portugal, 2001 | ||
Burguesia | 562.000 | 12,1% |
Inclui a burguesia proprietária (patrões e pequenos patrões) e a burguesia dirigente e profissional (dirigentes do Estado e das empresas, profissões intelectuais e científicas independentes). Ambas as categorias registam crescimento desde 1991, mais acentuado nos pequenos patrões (com menos de 10 assalariados) e nos dirigentes do Estado e das empresas.
Pequena burguesia tradicional | 321.000 | 6,9% |
Inclui agricultores, comerciantes e artesãos e outros empresários independentes. Contra uma ideia muito difundida, não tem aumentado, pelo contrário, tem vindo a atravessar forte redução numérica. Os agricultores independentes passaram para menos de metade, entre 1991 e 2001. Os pequenos comerciantes independentes, que vinham crescendo incessantemente desde os anos 60, entraram em redução a partir de 1991.
Nova pequena burguesia técnica e de enquadramento | 751.000 | 16,2% |
Está em forte expansão. Ao contrário da pequena burguesia tradicional, ameaçada pelo crescimento do capitalismo monopolista, esta beneficia com a concentração. Está presente sobretudo no sector terciário. Também a sua camada inferior (quadros intermédios, capatazes, etc.) está em crescimento. Apesar do seu lugar subalterno e de ser muito afectada pela precarização, esta camada cultiva um imaginário desfasado dos seus reais meios de vida, despreza o trabalho manual, visto como desprestigiante, e procura identificar-se com as camadas superiores.
Nova pequena burguesia de execução | 1.031.000 | 22,2% |
Inclui o grosso dos empregados de escritório e serviços e está a crescer. Sofre um processo de proletarização devido à precarização, desvalorização das tarefas, perda da superioridade que dantes a separava dos operários.
Operariado | 1.977.000 | 42,6% |
A autora inclui aqui, além dos operários industriais, em crescimento lento, e dos operários agrícolas, em forte redução, os trabalhadores não qualificados do comércio e serviços (474.000): trabalhadores dos serviços domésticos, de recolha do lixo, auxiliares dos serviços de saúde e educação, repositores de artigos nos supermercados, serventes e contínuos, etc.
Três observações
1) Trabalhador produtivo não é apenas o que produz uma mercadoria mas todos os que produzem uma mais-valia para o capitalista. Por isso Marx englobou no proletariado os trabalhadores dos transportes, armazenagem e embalagem.
2) A distribuição por classes não inclui as crianças, reformados, estudantes, desempregados, domésticas a tempo inteiro e outros que estão fora do mercado de trabalho. Esses não têm localização directa de classe mas ligam-se à estrutura de classes através das relações familiares, da relação com o Estado, etc.
3) Os marginais, como não dispõem de uma força de trabalho vendável, ficam à margem do processo de exploração capitalista. A modernização capitalista tende a fazer crescer este contingente de pessoas “excedentes”. Como não se pode eliminá-los (à semelhança do que foi feito com os índios americanos), são sujeitos a um controlo social que combina repressão e guetização.
Operariado industrial
Os números deitam por terra a afirmação, hoje muito comum mesmo na esquerda, de que a classe operária “desapareceu”. A sua percentagem na população activa veio crescendo desde os 30% em 1970 até aos 37% em 1991. A partir daí, embora continuando a crescer em número absoluto, recuou para os 32%. De qualquer modo, é a maior classe nacional. Se lhe juntarmos como aliado preferencial o semiproletariado (que a autora chama de “Nova pequena burguesia de execução”), teremos que dois terços da população podem ser activamente interessados no fim do capitalismo.
O grosso do proletariado trabalha na indústria transformadora, mas há também fortes contingentes na Construção e Obras Públicas, nos transportes e comunicações, no comércio, na administração pública, etc. Desde 1991 tem vindo a verificar-se uma subida sistemática dos operários qualificados em relação aos não qualificados. Principais sectores:
Sectores | Qualificados | Não Qualificados | Total |
Têxteis | 87.000 | 12.000 | 99.000 |
Metalurgia | 60.000 | 6.000 | 66.000 |
Alimentares | 39.000 | 11.000 | 50.000 |
Couro e calçado | 160.000 | 17.000 | 177.000 |
Madeira e cortiça | 37.000 | 4.000 | 41.000 |
Química | 19.000 | 5.000 | 24.000 |
Papel e edição | 25.000 | 3.000 | 28.000 |
Minerais não metálicos | 43.000 | 6.000 | 49.000 |
Máquinas e equipamentos | 27.000 | 3.000 | 30.000 |
Equipam. eléctrico | 27.000 | 10.000 | 37.000 |
Material de transporte | 29.000 | 7.000 | 36.000 |
Extractivas | 13.000 | 13.000 | |
Outras transformadoras | 46.000 | 13.000 | 59.000 |
Construção e O.P. | 313.000 | 66.000 | 379.000 |
Transportes/comunicações | 75.000 | 1.000 | 76.000 |
Comércio | 147.000 | 4.000 | 151.000 |
Administração Pública | 37.000 | 2.000 | 39.000 |
Total | 1.240.000 | 174.000 | 1.414.000 |
Notas de rodapé:
(1) É precisamente esta dinâmica de exploração, anota a autora de passagem, que permite entender a relação entre assalariados e administradores nas economias de planificação centralizada (os chamados países socialistas) como uma forma de relações de classe. (retornar ao texto)
Inclusão | 02/10/2016 |