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Primeira Edição: Este texto, que se presume escrito no início dos anos 60, preocupou-se em definir claramente as divisões e contradições de classe nos campos em Portugal, obviamente para contestar as ideias e práticas frente-amplistas do PCP, aliás denunciadas por FMR em muitos outros escritos. (Ana Barradas)
Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
a) A Desintegração da Economia Camponesa de Subsistência
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Nos últimos 30 anos a crescente procura de produtos agrícolas no mercado e o investimento de capitais na produção e comercio agrícolas actuaram como alavanca desintegradora da estrutura tradicional no campo; a velha economia agrícola de subsistência e ultrapassada pela produção mercantil que expulsa centenas de milhares de famílias camponesas para a emigração e para as cidades; o operário agrícola e o jornaleiro independente avantajam-se cada vez mais ao camponês independente; a exploração mecanizada, moderna começa a estender-se a largas zonas; o grande proprietário semi-feudal vivendo das rendas, começa a perder a sua antiga omnipotência em face do lavrador capitalista, do comerciante de produtos agrícolas, do industrial, do proprietário citadino.
Mas esta transformação que faz triunfar as relações capitalistas sobre as velhas relações semi-feudais, nada tem de comum com as revoluções burguesas que desde há dois séculos deram nascimento na Europa Ocidental a uma numerosa burguesia rural. O atraso com que o capitalismo chega aos campos, o desnível esmagador entre as cidades capitalistas e os campos somando-se às características parasitarias do Capitalismo português, faz com que a burguesia urbana não ataque frontalmente as camadas semi-feudais mas as desaloje e as asfixie lentamente, entrelaçando-se com elas; resulta daqui que não é o camponês que lança na exploração capitalista da agricultura, mas sim o latifundiário, o comerciante, o industrial, e as diferenças entre a cidade e o campo em vez de se esbaterem acentuam-se brutalmente; o campesinato em vez de ascender ao capitalismo é esmagado por ele, sob o peso da renda, do capital comercial e industrial e da exploração capitalista directa.
Essa desintegração da estrutura tradicional nos campos está patente em todos os aspectos: na mecanização das zonas capitalistas (planícies do sul e região de Lisboa), onde em 10 anos (1952-62), quadruplicou o parque de tractores; no crescimento da produção agrícola submetida ao capitalismo (arroz, cereais e azeite no sul), (gado suíno, etc.) enquanto, estagnam ou diminuem as produções dominadas pelo pequeno campesinato, no aumento regular do arrendamento, que dá lugar a que a que a percentagem de camponeses pagando rendas pela terra que cultivam ("patrões" ou "isolados" rendeiros ou parceiros) tenha passado de 19% em 1940 para 24% em 1950 e 27% em 1960; na emigração maciça que entre 1940 e 1960 levou um milhão de camponeses a abandonar as suas terras e que tem vindo a despovoar largas regiões do Minho, Trás-os-Montes e Beira Alta; finamente na proletarização total de 1/2 milhão de camponeses, o que representa uma das mais altas percentagens de proletários agrícolas na Europa Ocidental.
b) Mas essa desintegração da economia camponesa de subsistência é um fenómeno complexo e demorado que está longe de ter atingido o seu tempo. O desenvolvimento do capitalismo no campo não pede ser reduzido ao estabelecimento de relações latifundiárias—operários agrícolas, predominantes apenas no sul, mas comporta uma diversidade de relações de classe.
O campesinato abstracto a que se referem por vezes como se constituísse uma única classe social, em que, no melhor dos casos, se distinguisse os proletários e os pequenos e médios agricultores, abrange toda uma série de classes, e de camadas sociais: proletariado, semi-proletariado, produtores independentes, pequena e média burguesia. Entre estas classes e camadas sociais existem diferenças que (...) é preciso por a claro.
Aquilo a que se chama os "pequenos e médios agricultores", inclui na realidade exploradores e explorados, patrões e jornaleiros, burgueses e semi-proletários. A pequena e média burguesia camponesa, embora em vias de liquidação, existe em Portugal: ela era ainda representada em 1960, segundo o recenseamento, por 76.000 "patrões agrícolas activos", proprietários ou rendeiros empregando trabalhadores assalariados. Esta burguesia tem interesses diferentes dos da grande massa do campesinato, em cuja exploração participa com as restantes camadas burguesas, embora de forma subalterna. Arruinada em ritmos rápidos nos últimos anos (0 recenseamento de 1950 registava 136.000 patrões agrícolas) é dilacerada entre interesses contraditórios, porque se opõe à burguesia urbana e aos latifundiários mas procura ao mesmo tempo dominar, dirigir e explorar os camponeses pobres.
Uma vez separada a burguesia rural da massa do campesinato, há ainda a fazer uma distinção clara entre as massas semi-proletarizadas (camponeses independentes e cultivadores-jornaleiros) e o proletariado rural: "os pequenos e medios agricultores" não podem ser confundidos com o proletariado rural porque a sua posição de classe, se bem que potencialmente revolucionária, está marcada pelo individualismo, pelo isolamento, pelo atraso típico do pequeno produtor que aspira a tornar-se independente e que sonha vir a ser um patrão.
(...) o proletariado rural (isto é, os operários agrícolas que não cultivam terras por conta própria e vivem só da jorna) subia em 1950 a pouco mais de 1/2 milhão e já não deve atingir hoje os 500.000; o grande peso numérico do proletariado rural não altera o facto de que a massa dominante nos campos são ainda as 700.000 famílias de camponeses independentes e de cultivadores jornaleiros.
Segundo o lugar que ocupam no processo produtivo, e relação à posse dos meios de produção, estas camadas definem as seguintes classes:
Partindo deste critério, vejamos agora qual é a estrutura das classes nos campos portugueses. Utilizaremos dados estatísticos que, embora já desactualizados, podem dar uma ideia aproximada da situação.
Segundo o "Inquérito às explorações agrícolas do continente”, havia em 1952-54, 700.000 explorações camponesas familiares. Isto significa que mais de metade das famílias camponesas de Portugal é constituída por camponeses pobres cultivando pequenas parcelas de terra de sua propriedade ou arrendada. A decadência e a ruína desta massa camponesa estão bem expressas no inquérito referido, o qual indica que mais de 400.000 destas famílias eram obrigadas a recorrer em certas épocas do ano ao trabalho assalariado nas terras de outros cultivadores, nas obras públicas, nas fábricas, etc., formando assim um enorme semi-proletariado rural. Estas 700.000 famílias constituem como se sabe a massa da população camponesa ao norte do Tejo; em certas regiões do Minho, de Trás-os-Montes e da Beira, elas constituem mais de 80% da população. Ao lado dos camponeses pobres situa-se cerca de 1/2 milhão de famílias camponesas totalmente expropriadas de terra que formam o gigantesco proletariado rural português(1). Esta massa de operários agrícolas que tem como única receita a venda da sua força de trabalho, constitue a maioria da população camponesa no Alentejo, no Ribatejo sul, na região de Lisboa, e no Alto Douro.
O proletariado, o semi-proletariado e os pequenos cultivadores independentes (minifundiários) formam assim 9/10 da população camponesa em Portugal; o décimo restante corresponde a burguesia camponesa, constituída por cerca de 150.000 famílias de camponeses médios e ricos interessados na produção para o mercado e utilizando de forma temporária ou permanente o trabalho assalariado, nas suas explorações agrícolas. Uma camada superior desta burguesia e constituída pelos rendeiros capitalistas alentejanos e ribatejanos, que exploram os latifúndios.
No campo português existe, pois, uma diferenciação profunda de classes, que vai do proletariado à média burguesia, passando pelo semi-proletáriado, pelos produtores independentes e pela burguesia. Mas, para compreender a luta de classes nos campos portugueses, é preciso ter ainda em conta a existência de outras classes não camponesas, que exercem sobre ela uma acção retraente. Como é conhecido, Portugal oferece a particularidade de a maioria da terra não estar na posse daqueles que a cultivam e pertencer a classes exteriores ao campo. Não só os assalariados estão desprovidos da terra; segundo o 'inquérito" de 1952-54, mais de 300.000 famílias camponesas (pobres, médias ou ricas) tinham que pagar a renda pelas terras que cultivavam, contando-se ainda por dezenas de milhares aquelas que cultivavam as terras em regime de parceria (pagamento de uma parte da colheita ao dono da terra). Isto significa que o campesinato português é explorado pela classe dos proprietários, vestígio da classe feudal, que não dá qualquer participação à produção agrícola e que vive à custa dos camponeses, quer utilizando o trabalho assalariado, quer cobrando rendas aos rendeiros, "caseiros", seareiros", "quinteiros", etc.
Entre estes proprietários semi-feudais distinguem-se dois sectores diferentes. Em primeiro lugar, um estreito núcleo de 6 ou 7 mil latifundiários, possuidores de enormes extensões no Alentejo, parte sul do Ribatejo, região de Castelo Branco, Louro, etc.. A área apropriada por estes latifundiários está calculada em mais de 3.000.000 de hectares, o que significa que eles possuem mais de 1/3 do país. Estreitamente entrelaçados com a grande burguesia, eles dominam os organismos económicos (grémios da lavoura, comissões reguladoras), assegurando-se de receitas imensas à custa dos camponeses.
Um outro sector é constituído por algumas dezenas de milhares de proprietários ricos e médios, que no conjunto, possuem também grandes extensões no Norte e Centro do país, vivendo à custa das rendas que cobram dos camponeses. Estes proprietários não latifundiários, em grande parte vinculados a média burguesia, formam uma classe igualmente opressora do campesinato, ainda que cada vez mais dependente da burguesia.
Esta primeira apreciação permite-nos, desde já, localizar as seguintes contradições principais no campo português:
Estas contradições principais reflectem, nas condições do campo português, as contradições de classe entre proletariado e burguesia, entre os produtores independentes e as classes semi-feudais, e entre estes últimos e a burguesia.
Notas de rodapé:
(1) O censo de 1950 indica a existência de 842.000 assalariados e empregados na agricultura, mas deve ter-se em conta que neste número estão incluídas algumas centenas de milhares de cultivadores jornaleiros, que fazem parte do semi-proletariado; assim por exemplo, segundo o censo, a percentagem de assalariados na população agrícola activa seria superior a 60%, nas regiões de Bragança, Leiria, Guarda o que, como se sabe, não é verdade. (retornar ao texto)
Inclusão | 23/03/2019 |
Última alteração | 24/06/2019 |