Cartas

Francisco Martins Rodrigues


Cartas a JV


Carta 1
2/7/1988

Caro Amigo:

Obrigado pela sua carta de 16 de Maio. Li com muito interesse o seu artigo na "Temps Modernes" e tomei a liberdade de publicar um extracto na última "Política Operária". Envio, por correio separado, um exemplar da revista, assim como alguns números atrasados, onde se tratam temas que pensei lhe possam interessar.

Acredito, como diz, que nos coloquemos em terrenos políticos diferentes e que lhe seja estranha a perspectiva de militância comunista que anima o colectivo da "Política Operária". Mas verifico pelo seu artigo que temos em comum a preocupação de uma crítica social levada até às últimas consequências, no espírito do marxismo. Foi precisamente a consciência de que estávamos a deixar perder as inesgotáveis potencialidades críticas do marxismo que nos levou a fundar esta revista. Sei que pouco fizemos até agora, mas aprendemos pelo menos a enfrentar sem medo os fenómenos novos que lançaram a confusão no campo dos marxismos "oficiais". O problema dos regimes pseudo-socialistas e das causas da sua evolução tem-nos preocupado pnrticularmente e temos avançado algumas tentativas de interpretação. Hoje já não fazem sentido para nós as polémicas pró ou contra Staline, Trotsky, etc. Vemos sim o afundamento inevitável de um projecto de socialismo, condenado por não dispor do seu alicerce necessário - o poder real dos trabalhadores, "mil vezes mais democrático do que a mais democrática república burguesa". Acreditamos que a ressaca reaccionária causada pelo fracasso dessa experiência (na URSS, na China, etc,) acabará por ser superada e que novas tentativas, mais avançados, virão repor a dinâmica do processo histórico, agora obscurecida.

Cabe-nos remar contra a maré das renegações e manter agrupado um núcleo crítico e revolucionário, por mínimo que seja. Digo-lhe que o espectáculo da rendição incondicional, aqui no nosso país, é dos mais baixos que se possam imaginar. Apetece zurzir, nem que seja só para termos a certeza de que estamos vivos.

Espero poder ler mais trabalhos seus. E que me dê, com toda a franqueza, as impressões que lhe deixam os que aí lhe mando.

Com as minhas melhores saudações

Carta 2
22/10/1989

Caro Amigo:

Já lá vai mais de um ano que não temos contacto. Isso foi devido em parte à perspectiva que chegou a haver de que um amigo nosso (…) pudesse passar por Paris (…) levar-lhe uma carta minha, perspectiva que infelizmente não chegou a concretizar-se. Eu, pela minha parte, também planeio periodicamente ir aí, mas acabo sempre por ter que adiar.

Espero que esteja a receber regularmente a nossa revista e que ela não tenha desapontado as suas expectativas quanto à discussão dos problemas postos ao marxismo pela falência das sociedades de Leste. Sem dúvida temos um desacordo fundamental quanto ao leninismo, o papel do partido político da classe operária, etc. Estou convencido de que a liquidação final do tipo de regime a que nos habituámos a chamar comunista e o que virá a seguir contribuirão para fazer avançar as polémicas em torno desta questão. Uma coisa me parece indiscutível: é que foi Lenine que chefiou a revolução real que até hoje levou mais longe a expropriação da burguesia e isso parece-me um bom critério para me considerar leninista.

Mesmo com atraso, tenciono fazer uma referência crítica aos seus livros que teve a gentileza de me oferecer e que levantam muitos problemas interessantes. Por correio separado mando três suplementos da PO com traduções em francês de alguns artigos nossos, o que talvez lhe permita levá-los ao conhecimento de camaradas franceses.

Sem mais por agora, envio as minhas saudações cordiais

Observação: Carta nº 3 não existente no blog: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Carta 4
7/10/1990

Caro V:

Não se terá esquecido do livro do [Oskar] Anweiler que me tinha prometido? Eu não desisto e estou bastante interessado em ler mais sobre o assunto. Estou a preparar um artigo paro a próxima PO. No nº 26 que acaba de sair publicámos e sua curta sobre a revolução russa.

Mando-lhe junto alguns artigos que publiquei recentemente na imprensa. A crise do Golfo está a pôr-me em brasa, você não faz ideia do alinhamento dócil de toda a gente com os americanos. Ainda se isto fosse um país imperialista, percebia-se, mas nesta piolheira cheia de fome, aprovar a "defesa da ordem internacional" é sintoma de degenerescência mental. Os socialistas querem um envolvimento maior! Só visto!

Fico a aguardar as suas notícias. E o livro!

Um abraço

Carta 5
11/6/1991

Caro Amigo:

Só depois de nos termos separado, e ao reler a sua carta, vi que ficou por reparar uma falta: o livro de Dawn Raby sobre "A Resistência Antifascista em Portugal", que se perdeu nesses tenebrosos correios franceses. A única solução segura tinha sido entregar-lhe outro exemplar, porque os extravios são frequentes. Há dias o MV queixou-se que, de um outro livro que lhe enviei, só lá chegou... a etiqueta do embrulho! Os envios da P.O. já mais de uma vez se perdem, mas só em França! Vou ver se arranjo um exemplar e mando-lho... rezando à senhora de Fátima, que é boa para estas coisas.

Na P.O. a sair dentro de dias publicamos a primeira parte da sua carta (Golfo), guardando por razões de espaço a segunda parte para o nº seguinte. A. não ser que você entretanto dispare mais umas das suas bombardas que tenham prioridade. Gostámos muito da conversa convosco. Abraços para si e para a S.

Carta 6
24/10/1991

Caro Amigo:

Depois da pausa das férias, voltamos ao ataque... Espero que já tenha recebido a P. O. 31. As suas cartas aparecem em dois sítios, como viu e embora não tenha saído tudo na íntegra julgo que não retirámos nada importante. Se quiser continuar, nós cá estamos. Que tal lhe pareceu este último nº? É muito difícil a uma pequena equipa como nós somos corresponder à diversidade e complexidade de temas que exigem discussão. Você dirá que a dificuldade vem das nossas prisões ideológicas... Veremos. Li na "Batalha" a sua intervenção sobre as revoltas da juventude. Tema que se está a tornar escaldante à medida que a direita fascista lhe mete a mão, segundo leio nos jornais.

Espero que tenha recebido também um boletim MAR  2, feito por nós em colaboração com outras pessoas, para ver se animamos uma campanha contra os malfadados Descobrimentos e, por tabela, contra o racismo, que aqui começa a dar os seus avisos. Brevemente deveremos pôr na rua um livro negro dos Descobrimentos coligado pela Ana e editado pela Antígona. Abraços para si e para a S.

Carta 7
9/12/1992

Caro Amigo:

Registámos a renovação da assinatura e agradecemos também os textos que mandaste junto. Calculo que as minhas reflexões sobre a revolução russa não te convençam nada mas as leituras que vou fazendo mais me confirmam na ideia de que as críticas anarquistas e «comunistas de esquerda» falham ao atribuir ao leninismo os males que resultavam da agonia da própria revolução, agonia inevitável devido aos seus limites económico-sociais. Lenine, sem dúvida, enganava-se quando defendia que aquele regime de capitalismo de Estado sob controlo burocrático ainda era ditadura do proletariado e ainda tinha virtualidades para se reabilitar. Mas não vejo como o reconhecimento desse erro, que aliás retrata o bloqueamento irremediável a que chegara a revolução, nos tenha que levar a pôr em causa as aquisições históricas do leninismo. Quando leio os seus críticos «de esquerda», como Korsch ou Luxemburgo, Ciliga, etc., não posso deixar de sentir um tremendo recuo em relação à clareza de classe atingida pelo leninismo.

Enfim, se tiveres paciência, lerás nas próximas revistas a continuação do meu folhetim. Compreendo que não te sintas motivado para continuar nas colunas da P.O. uma polémica que tende a tomar-se «conversa de surdos». Quando achares que é altura de expores as tuas críticas, estamos abertos a publicá-las. O que não impediria, em minha opinião, uma colaboração tua desde já, em questões de política actual em que estamos largamente de acordo, parece-me. Umas «Cartas da CEE», em que nos desses conta das tuas reflexões sobre o clima político francês, seriam do maior interesse para nós. Se achares que sim e tiveres disponibilidade de tempo para isso, teremos muita satisfação em publicar o que envies. Como verás pelo nº 37, que receberás dentro de dias, temos alguns novos colaboradores e esperamos passar a ter mais alguns. Tentamos manter-nos nas 32 páginas e diversificar a informação e os comentários.

Espero que a vossa vida por aí esteja bem. Abraços para ti e para a S. de todos nós, em especial da Ana e da Beatriz. Meus também, claro.

Carta 8
7/6/1993

Caro Amigo:

Tive pena de não nos termos encontrado devido à minha dor ciática. Melhorei mas custou; passados uns dias, quando já julgava estar bom, voltaram-me as dores e tive que ficar mais dois dias estendido. Se isto começa a intensifícar-se, estou feito. Lembro-me dos velhos que se viam às portas quando eu era pequeno e que me diziam que estavam "entrevadinhos". Ainda vens um dia a Lisboa ver o entrevadinho.

Mas por enquanto ainda dou luta. A P.O. já vai para a tipografia. Devido à minha crise reumática, não pude acabar o artigo sobre o Kautsky, terá que ficar para Outubro. Vamos iniciar uma nova série, em formato A4. Quando tiveres oportunidade, poderemos discutir o que pensas da minha proposta de colaboração. Naturalmente, tão cedo não voltas a Portugal?

Quanto ao texto-inquérito do professor J. M. Lages de Famalicão, a Ana diz que já falou com o homem ao telefone mas não consegue nada, ele diz que está tudo entregue no pelouro da Cultura da Câmara Municipal e que só escrevendo para lá. Temos a impressão de que a Câmara tomou posse da exposição, entre grandes elogios, para a abafar, porque o assunto é explosivo.(1)

Por agora é tudo. abraços de todos nós para ti e para a S.

Carta 9
23/8/1993

Caro Amigo:

Estou a responder à tua carta passados dois meses, mas como foi o tratamento geral que dei a toda a correspondência, divide-se o atraso entre todos... Só agora, em vésperas de partir para uma semana de férias (director de revista sofre muito!), decidi que não podia adiar mais o correio.

Pois, quanto à tua indisponibilidade para colaborar na P.O., eu tenho que a compreender e respeitar, naturalmente. Não tenho dúvida nenhuma de que estamos em correntes políticas bem diferentes e que os pontos de desacordo são mais que muitos. Mas eu julguei que, no terreno da política diária, podia haver um terreno comum, em que considerássemos mutuamente vantajoso publicar comentários teus sobre a actualidade política francesa ou europeia, por exemplo. Isto tendo em consideração a quase inexistência de publicações contra o sistema, aqui em Portugal, e os aspectos positivos que tu, apesar de tudo vês na P.O. Como tu dizes, pelo menos num aspecto estamos lado a lado: ao avisar as pessoas que isto está a rebolar para o abismo. Já é um bom ponto de acordo.

Quanto à questão da argumentação agressiva e de ataque pessoal a que te referes, não me parece francamente que tenha sido esse o caso. Houve vivacidade na tua crítica e vivacidade na resposta da Ana, mas não mais do que isso. Não vejo que ficasse afectada a possibilidade de diálogo de parte a parte. Mas, tudo bem. Ficamos nós a perder, que gostaríamos de incluir na revista maior cobertura de temas internacionais e maior diversidade de perspectivas nas colaborações. Vamos iniciar em Outubro um novo formato (A4), tomado necessário para nos adaptarmos ao computador. Aproveitamos para arejar a maquete, tomá-la um pouco menos compacta. Quanto aos temas da revolução russa, será o último artigo (espero) da série que tenho vindo a fazer. Há que pensar noutros assuntos. O pior é a falta de tempo para estudar seriamente.

Aceita abraços meus e da Ana, para ti e para a S. Da Beatriz não posso dizer nada porque tem estado a dar aulas fora de Lisboa e há um tempo que não a vejo. Julgo que vai voltar para cá em Outubro.  

Carta 10
8/12/1993

Caro Amigo:

Não sei donde partiu o atraso mas a tua carta datada de 22 Novembro só me foi entregue no Correio em 6 Dezembro. Já temos a P. O. na tipografia e não nos foi possível incluir nada dos elementos que mandaste. Sobre a greve da Air France, felizmente, o MV mandou uns comentários que publicámos com destaque. Aqui também houve “bernarda” com os trabalhadores da TAP, mas o pessoal mostrou muito menos combatividade que o daí. De qualquer modo, o apertar da crise obriga o ambiente social a mudar lentamente. Para já, quem aparece na ribalta são os estudantes, cujas manifestações devem ter obrigado o Cavaco a uma remodelação governamental,, que deu um sinal de fraqueza. O homem até agora fazia gala da sua firmeza de rocha, de modo que esta cedência talvez lhe vá tirar muita da confiança quase supersticiosa que a pequena burguesia tinha nele - a admiração pelo “homem forte”. A oposição está ao ataque, tentando capitalizar tudo o que puder dos resultados das eleições autárquicas - a campanha eleitoral, desta vez, é um carnaval imbecil, com “debates” na televisão com as claques a gritar por um ou por outro dos candidatos e a agitar bandeirinhas, numa algazarra infernal em que se faz tudo menos debater seja o que for. Um espectáculo miserável, que dá bem a medida da democracia a que temos direito.

De qualquer modo, por enquanto é cedo para saber se é irreversível a crise do governo. Só se a situação económica tiver agravamentos dramáticos. Para já, além da TAP, houve alguns protestos operários (que a imprensa, como de costume, “desdramatiza” o mais possível), nomeadamente uma marcha de fome de vidreiros da Marinha Grande para Lisboa e uma greve “selvagem” dos portuários de Setúbal, greve na Lisnave, etc. As centrais não assinaram a concertação social (ou 4% ou nada, disse o governo) e falam em greve geral mas de forma mole e indecisa. Em Espanha já está marcada para Janeiro, mas lá a situação é sempre mais agitada e desperta do que aqui. Aqui, num resumo que pode ser muito subjectivo, eu diria que o governo está mais ameaçado pelos estudantes, médicos, juízes, empresários agrícolas, do que pelos operários e assalariados. E no entanto, a situação destes vai-se tomando dramática. Coisas...

Pela nossa parte, de novo apenas um convite que recebemos, a Ana e eu, para intervirmos numa semana de debates sobre o centenário de Mao, realizada pela Biblioteca-Museu da Resistência, organismo dependente da Câmara de Lisboa. Outros participantes (em dias diferentes!) são o Arnaldo de Matos, Pacheco Pereira e Pedro Baptista (ex-OCMLP). Pelo menos, estão convidados, não sei se vão. Decidimos aceitar, embora o público seja restrito, para valorizar o Mao revolucionário dos primeiros anos e fazer fogo contra a bronca ironia com que os tipos do PS e do PC falam da revolução chinesa, como se fosse uma anedota.

Espero que a Fora do Texto mande o teu livrinho (costumam mandar sempre) e far-lhe-emos referência sem falta. Também espero poder aproveitar a tua sugestão de publicar algum extracto dos teus artigos como carta. Faço votos por que tudo vos corra bem. A P.O. deve estar a sair da tipografia. Abraços para ti e para a S. de todos nós.

Carta 11
9/2/1994

Caro Amigo:

Agradeço os jornais e documentos que tens mandado.. A P.O. deve vir hoje da tipografia e ficamos com um breve período de pausa, para respirar e sobretudo ler material que se vai acumulando. O teu reparo sobre o homossexualismo chegou quando se estava a fechar a redacção e ainda deu para o metermos em carta do leitor. Aguardemos as reacções. Se queres que te diga, nunca nos dedicámos a discutir muito o assunto e creio que existem opiniões diferentes entre nós. Talvez a tua carta nos obrigue a discutir o problema. A posição que saiu no artiguinho que referes não pretendeu obviamente dizer que a homossexualidade seja uma doença, mas apenas apontar o seu florescimento nas prisões como um dos índices da situação degradante em que os presos se encontram, privados duma vida sexual normal. Não concordas?

Por cá, a situação económica agrava-se lentamente, embora não tanto como alguns previam. O desemprego oficial é de 6% mas este número tem pouco a ver com a realidade. Será 8%, 10%? O funcionalismo público vai fazer a segunda greve no espaço de um mês, porque o governo pretende dar-lhe um aumento de 0% a 2%, omitindo a inflação, ou seja, um "aumento" negativo. Dos sectores operários há algumas acções de protesto, mas até agora dispersas. As duas centrais estão a radicalizar a linguagem mas não mais do que isso, é só para absorver o descontentamento. Qualquer delas, mas sobretudo a UGT, estão escandalosamente vendidas às verbas da Comunidade, a pretexto dos cursos de formação profissional, e ficam na dependência do governo para embolsar as massas. De modo que berram muito mas arrastam os pés e procuram dispersar as lutas. É a modernização que chega à ocidental praia lusitana.

Será que nos encontramos na sessão do aniversário da Batalha em 26 deste mês? Eu vou lá. Abraços meus,  da Ana e da Beatriz, para ti e para a S.

Carta 12
31/1/1996

Caro Amigo:

De facto, a tua assinatura caducou mas não cortámos o envio. Mandamos sempre mais alguns números com a proposta de renovação. Se não recebeste, a culpa deve ter sido dos teus amigos grevistas dos correios aí de França, são uns malandros que não querem trabalhar, só querem privilégios à nossa custa. O Chirac é que os topa. De toda a maneira, os teus 100 francos são bem-vindos, e ficas inscrito por mais um ano.

Se vieres em Abril, vais encontrar Lisboa completamente mudada, respira-se um ar novo desde que o socialismo subiu ao poder. Em todo o lado há plenários, saneamentos de capitalistas, ocupações de casas e fábricas, desfiles populares com bandeiras vermelhas e vivas ao Sampaio... Espero que não acredites.

A P.O. vai para a tipografia, espero que desta vez a recebas e que aprecies. Mando também o número anterior, para não ficares privado da nossa prosa. Abraços para ti para a S.

Carta 13
14/7/1996

Caro Amigo:

Lamentavelmente, a tua estadia em Portugal quase se sobrepôs com uma saída minha para o Norte, a gozar umas curtas férias. Ainda telefonei no sábado e domingo (dias 6 e 7) para os teus números de Lisboa e do Algarve mas ninguém atendeu; devias estar na praia a aproveitar o famoso sol português. Ficaremos assim a aguardar que se complete mais um ano para nova tentativa...

Recebi e agradeço os materiais que ofereceste. A entrevista do Paul Mattik Jr., digo-te já, é forte de mais para a minha estrutura ideológica. Vou voltar a lê-la e gostaria de te pôr por escrito algumas das objecções que me levanta. Embora conhecendo muito mal o conselhismo, duvido de que os pontos de vista dele correspondam aos dos “fundadores”. Mas esta é questão para uma mesa redonda, quando calhar. Por aqui, a revolução continua... na ordem e na paz dos espíritos, como recomendava o Botas. Os telejornais abrem e fecham com as últimas da bola, no meio da ansiedade das famílias. Pelo meio, para cortar a publicidade, lá metem umas breves imagens de operários postos na rua ou de guerra no fim do mundo.

Como está a S.? A Ana e a Beatriz mandam cumprimentos. A Beatriz trabalha agora no novo jornal Já. Qualquer dia, temos toda a comunicação social sob controlo e então...

Um abraço.

Carta 14
14/2/1997

Caro Amigo:

Os teus materiais cá chegaram em boa ordem. No nº 57 metemos um extracto das “Chinoiseries”, dum tal Charles Reeve, conheces? Elucidativo. Sobre a greve dos condutores de camiões, tivemos um artigo programado para o nº 58 (está a sair), demos os teus e outros elementos ao MC (suponho que conheces), mas ele envolveu-se de tal forma num comentário a um recente livro do Dr. Álvaro Cunhal que acabou por nos deixar descalços quanto aos camionistas. Cunhal é fundamental, claro, mas não sei se foi boa a troca. Eu não li o livro do homem, mas a televisão tem-lhe dado algum reclame e ouvi que vai sair uma grande entrevista com ele no Jornal de Letras. O homem quer acabar a carreira como literato, pulir a imagem para a posteridade. E ele e o Soares, a tomarem as últimas disposições para garantir que o funeral será muito concorrido. Aprenderam com o Mitterrand.

Voltando aos camionistas. Agora são os espanhóis que estão a bloquear as estradas. Âs novas realidades proporcionam possibilidades inesperadas de paralisar e economia dum país. E se uma (futura) Federação dos Camionistas Europeus resolvesse bloquear as estradas do continente? O que a televisão dá da greve em Espanha são os protestos dos nossos compatriotas camionistas, ansiosos por trabalhar e indignados com os grevistas que lhes partem vidros, furam pneus, etc. Ontem, dia 13, estimulados pelo ambiente, alguns dos nossos camionistas tentaram bloquear a estrada à entrada de Vilar Formoso mas a GNR atirou-lhes com os cães para cima e a tentativa fracassou, pelo menos para já. Dizia um deles no telejornal: “Não está certo; em França e em Espanha bloqueia-se as estradas e a polícia não intervém; aqui atiram-nos logo com os cães”. É que ele não sabe que à Europa só vamos buscar o que é bom, não os hábitos relaxados. Polícia aqui não brinca. Apareceu mais um rapaz morto, depois de ter sido levado para a esquadra, em Vila Franca. Parece que estava bêbado num bar e molhou um guarda com cerveja. O que é que ele queria? De resto, os polícias juram que não lhe fizeram mal nenhum. Aguarda-se o resultado da autópsia.

Quanto ao material sobre a Guiné-Bissau, lamentavelmente não temos para lá contactos, não lhe pudemos dar destino. As nossas edições é que estão a coxear dos dois pés. O distribuidor impõe-nos condições cada vez mais duras, quer asfixiar-nos, e nós não vemos possibilidade de lançar nada novo pelos tempos mais próximos. O livro do Che “Viagem pela América" vendeu razoavelmente, mas já o último, “Os meus anos com o Che”, da ex-mulher, está a sair pouco. Cada livro é um agravamento dos prejuízos, nada a fazer. Precisávamos de uma rede alternativa de distribuição, apontada para o público que ainda consome coisas destas. A revista é que não pode falhar; por acaso, este número vai sair com duas semanas de atraso, porque os meus problemas familiares têm-me bloqueado.

Se calhar queres que te fale da actualidade nacional, mas não estou em condições. Entre enredos da bola, enredos internos dos partidos, enredos da droga, os telejomais são desmobilizadores. PS e PSD ultimam o acordo para a revisão da Constituição; reina um saudável consenso democrático, pelo menos... Podes pelo menos dormir descansado: quando vieres a férias encontras tudo na mesma. E quando vens? Dá notícias. Abraços nossos para ti e cumprimentos para a S.

Carta 15
16/6/1997

Caro Camarada:

Recebi o teu recado para nos encontrarmos mas foi-me completamente impossível. Ainda telefonei para a casa do Bairro Alto (tua prima, julgo) mas ela disse-me que não estavas lá e eu não tenho o outro telefone. Vão por esta via as minhas desculpas. Nos últimos meses os meus problemas familiares têm tomado um tal volume, aceleração e imprevisto que com frequência me obrigam a cancelar compromissos. Uma família onde só há terceira idade e não se procedeu em devido tempo à renovação dos quadros pode ver-se em grandes apertos, sou eu que te digo.

Fiz uma pequena recensão (também muito à pressa) do teu livro, que li em diagonal e me pareceu bastante interessante. Sai na próxima PO. que receberás na semana que vem. Tens editor em vista cá no burgo?

E a tua estadia, que tal? Fizemos a nossa passeata e lanche do 1º de Maio, correu bem, na medida do possível. No próximo ano, espero que nos encontremos no nosso café, para nos embebedarmos e conspirarmos em conjunto, como bons extremistas que somos. Perguntas se Lisboa ainda existirá para o ano? Decerto existe mas talvez já esteja promovida a capital de província. Os castelhanos estão a tomar posse de tudo. Falta-nos cá o Nuno Alvares Pereira, esse é que lhes fazia ver. Enfim, haja confiança na revolução mundial. De mais a mais agora, que o semicamarada Jospin chegou ao poder e meteu 4 camaradas em ministros, vai ser imparável. Um abraço.


Nota de rodapé:

(1) José Manuel Lages foi promotor e director científico do Museu da Guerra Colonial de Vila Nova de Famalicão. Criou a exposição itinerante  "Guerra colonial - uma história por contar", com base nos conteúdos dos “baús de guerra” dos antigos soldados coloniais. (Nota de AB) (retornar ao texto)

Inclusão 14/06/2019