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Convergência das oposições, refundação democrática da UE – os dois apelos da III Convenção do Bloco são propostas de negociação de um lugar no quadro do regime. Caso invulgar de consenso na área da esquerda, há tantos anos amargurada pelo peso das derrotas: a III Convenção do BE, reunida em Lisboa, em 10-11 de Maio, aprovou a linha política do partido praticamente sem debate, em clima quase triunfal. Se não fosse a polémica do primeiro dia, provocada pela disputa de uns tantos lugares na direcção por parte de um grupo de outsiders, a assembleia teria decorrido em perfeita harmonia.
Este sentimento de euforia generalizada até se compreende. Em poucos anos de existência, o Bloco ganhou ampla simpatia devido às suas propostas imaginativas, Louçã afirmou-se como um excelente parlamentar, as intenções de voto crescem e não parece longe o dia em que o BE desbanque o PCP como segunda força da oposição.
E, contudo, se os delegados quisessem olhar para a política real, não lhes faltariam motivos de preocupação, de polémica e até de divergência. Há algum meio de fazer frente à vaga de despedimentos que atira centenas de milhares para a miséria? Que acções são precisas para reactivar a moribunda resistência da CGTP ao pacote do Bagão? Como impulsionar a pressão operária de base sobre as estruturas sindicais aninhadas no burocratismo? Como pôr em marcha uma grande campanha nacional contra a presença dos americanos nas Lajes e pela saída de Portugal da NATO? Como impedir que o grande movimento popular de Fevereiro-Março contra a guerra seja usado pelos pantomineiros Soares e Freitas como trampolim para as suas candidaturas presidenciais? Como minar os alicerces do império UE? Como evitar que um novo referendo sobre o direito ao aborto se salde por nova vitória da direita? Como alertar o povo contra a montagem sorrateira do aparelho de vigilância e repressão europeu? De modo mais geral: como suscitar um movimento popular de intervenção política desdobrado em centenas de comissões, colectivos, núcleos – única esperança de que quando amanhã o governo PSD/PP sair da cena não será para dar a vez a um governo PS em tudo semelhante, mas para impor uma viragem política real?
Estas interrogações, porém, não perturbaram o optimismo dominante nos trabalhos da Convenção. Falou-se, claro, e abundantemente, em “intervenção”, “ideias fortes de mudança”, “alternativas” e “exigências cidadãs”. Só que não se viu nenhuma discussão concreta sobre as causas da fraqueza do movimento popular e as formas de a ultrapassar. Nem isso tinha grande lugar, reconheça-se, a partir da linguagem muito gramsciana e por vezes esotérica das teses (“O Bloco escolheu uma estratégia para a criação dos sujeitos políticos contra-hegemónicos capazes de disputar os espaços de representação…”). Pelo que o mais certo é que tudo continue na mesma: o Bloco com os seus êxitos mediáticos e os trabalhadores com as suas derrotas.
“Sim à globalização alternativa”, “Sim à modernização democrática”, “Sim à União Europeia refundada”. O Bloco procura mostrar que tem uma atitude afirmativa, sem nada de comum com a velha extrema-esquerda do bota abaixo. E haverá quem acredite que esta é uma forma táctica de alimentar as ideias da revolução, nesta época em que marxismo e comunismo são amaldiçoados. Mas engana-se quem assim pensa.
Ao mesmo tempo que anunciam triunfalmente a “entrada do Povo do mundo na política global”, as teses abstêm-se de explicar o mais elementar: quem vai derrotar a quem e como. Não formulam políticas de classe precisas, não distinguem as forças revolucionárias das intermédias, não expõem o que separa o BE dos outros partidos, não dizem claramente em que consistirão as “rupturas” anunciadas. Com o claro objectivo de tranquilizar os temores da pequena burguesia, as teses não só apagam quase por completo as alusões a conflitos sociais como sublinham até à exaustão a continuidade entre o que existe e o que se oferece. As fórmulas engenhosas, como a “Globalização alternativa”, concebidas para “desarmar a direita” recuperando as suas palavras de ordem, têm um resultado previsível: fazer crer que tudo se resolverá por uma mudança de quem está nas alavancas do sistema, quando o problema que está posto é o do próprio sistema.
Europa connosco – Sob o título “Para uma refundação democrática da União Europeia” as teses apresentam um programa “responsável” para as eleições do próximo ano para o Parlamento Europeu, programa detalhadíssimo que nem sequer esquece os objectivos do Banco Central Europeu, a PAC, a nova política fiscal, as redes europeias de transportes e a emissão de títulos de dívida pública pelo Banco Europeu de Investimentos… No futuro, escrevem as teses com toda a seriedade, poderá criar-se uma maioria de esquerda no Parlamento Europeu, que permita a este assumir poderes constituintes e elaborar uma Constituição democrática para a UE. A partir daí, a UE “devolverá aos povos o papel de comando até hoje assumido pelas elites económicas e financeiras” e trabalhará por “um mundo de Paz e Justiça social”.
É, como se vê, uma utopia de mau gosto, sem qualquer ponto de contacto com a realidade. O “plano” de transformar a UE através do Parlamento (graças à “exigência cidadã”, pois claro!) é ainda mais inepto que o velho plano revisionista da “passagem parlamentar e pacífica ao socialismo”. Se, graças à sugestão de “competência” induzida nos eleitores ingénuos por este programa, o Bloco conseguir meter o seu deputado no PE, poderemos estar desde já certos que ele não irá desmascarar e sabotar essa engrenagem ultra-reaccionária mas que se juntará aos outros arautos de boas causas inócuas e bem pagas que por lá andam.
Guerra – A impotência com que o mundo inteiro teve de assistir à brutal invasão do Iraque e a desmoralização hoje reinante nas fileiras pacifistas poderiam ter levado os dirigentes do Blocoa repensar as suas euforias de há alguns meses atrás. Mas não. As teses retomam as mesmas frases bombásticas: “Outra Europa nasceu a 15 de Fevereiro”, “Nada ficará como dantes depois da fantástica reapropriação da política por milhões e milhões de europeus”, “é a política que se reinventa, ligando-se a padrões éticos fortes”.
Como todos seríamos felizes se bastassem umas tantas megamanifestações para os povos se “reapropriarem da política” e romperem a espiral catastrófica em que o sistema agonizante envolve a humanidade! Já em artigo anterior nesta revista (P.O. nº 89) dissemos que estes exageros, aparentemente simpáticos, perante a “jornada que mudou o mundo” têm um efeito pernicioso, na medida em que ocultam a dimensão do tremendo desafio que defronta os povos. Para pôr termo à barbárie imperialista, exige-se um nível de consciência, de meios de luta, de formas de organização, que o movimento pacifista está muito longe de possuir. É isto que temos que dizer às massas, em vez de as adormecer com congratulações.
Terrorismo – O BE condena o terrorismo “com firmeza” ao mesmo tempo que recusa que em nome da luta antiterrorista se limitem as liberdades. A fórmula pode parecer equilibrada a espíritos desprevenidos mas é um artifício para fugir a uma das questões mais escaldantes da actualidade. Trocada por miúdos, quer dizer que o Bloco aprova o reforço da vigilância policial, as condenações dos terroristas, etc., desde que não afectem as nossas liberdades. Ora, em primeiro lugar, um dos objectivos desta luta “antiterrorista” é justamente a limitação das liberdades! Não se pode separar uma coisa da outra. Além disso, ao aprovar a repressão dos actos desesperados que são os atentados está-se a ilibar a acção terrorista e espoliadora do nosso campo, que é justamente a causadora desses atentados! O Bloco tenta sentar-se num inexistente meio-termo para não ter que apontar as democracias imperialistas como a fonte da violência, para não ter que apelar à subversão da ordem capitalista mundial.
Socialismo – Conscientes de que as suas alternativas “razoáveis” cheiram a esturro a alguns aderentes, os dirigentes bloquistas puseram-se a falar com mais afoiteza em “socialismo”, mas num tom poético convenientemente difuso. Para já, sejamos realistas, a etapa é outra: “Uma esquerda socialista moderna deve ser capaz de apresentar uma alternativa consistente ao crescimento extensivo e subalterno que tem vindo a ser praticado por uma modernização conservadora” – o que significa um programa de capitalismo “social”, obviamente utópico. No plano mundial, as teses apresentam como “alternativa socialista moderna ao neoliberalismo” uma série de reivindicações de justeza indiscutível – emprego para todos, livre circulação da pessoas, serviços públicos, anulação da dívida do Terceiro Mundo, combate à fome e à doença”, etc. – mas sem aludir sequer à tremenda batalha e às convulsões terríveis que serão necessárias para interromper a corrida imperialista para o abismo.
Alternativa – Para os males actuais, o Bloco tem a sua alternativa global: “À vontade imperial de um mundo sem lei contrapomos a criação e constitucionalização de contratos globais que apoiem o desenvolvimento sustentável do planeta e o direito internacional”. Esta extraordinária “constitucionalização de contratos globais” parece ser a mais recente descoberta dos dirigentes bloquistas para dar uma resposta “responsável” à escalada do terror imperialista. Eles esperam (será que esperam mesmo?) que as “exigências cidadãs” e o “forte movimento social” do “Povo Global” de Seattle e Porto Alegre forcem os governos a assinar e a respeitar esses tais contratos!
Obrigar a burguesia a ser democrática, pacífica e respeitadora dos direitos humanos – a tal inépcia chegou o Bloco, na sua busca de uma “alternativa moderna”. Enquanto a luta de classes segue o seu curso habitual: greves, despedimentos, fome, exclusão, invasões, massacres, repressão, tortura, crises, guerras…
No terreno da luta contra o governo da direita, a Convenção defendeu a necessidade de uma “plataforma de convergência das oposições”. Como se calcula, as propostas avançadas “para uma governação decente” não causarão polémica: pleno-emprego, semana de 35 horas, melhoria das pensões, reforma fiscal, ampliação dos serviços públicos de saúde, educação, energia, água, transportes… Mais delicada é a questão concreta dos meios para o fazer – ou seja, da materialização da “convergência”, que seria, na prática, todos o sabem, um acordo de incidência parlamentar com o PS. Questão tão melindrosa, dada a desconfiança de boa parte das bases, que os rumores que o Bloco vinha deixando transpirar para a imprensa foram silenciados, o assunto não foi abordado nos debates e Fazenda disse mesmo, no discurso de encerramento, que “cada oposição caminha pelas suas pernas”.
Muito se engana porém quem vir nisto uma travagem na aproximação ao PS; os dirigentes do Bloco não podem abdicar de uma saída que é o coroamento necessário de toda a sua política. Aliás, a UDP disse-o explicitamente no seu congresso de Dezembro: “O desafio do crescimento é estrategicamente exigente”, pelo que “a esquerda (…) tem de estar apta para concluir acordos com os social-democratas e, eventualmente, sustentar governos que impeçam medidas conservadoras e que, nalguns casos, signifiquem algum corte com o neoliberalismo”.
Esta tentação irresistível para a aliança com o PS (única maneira de “pôr à prova as nossas alternativas”), por mais que se tente dar-lhe a coloração atractiva de uma “frente comum democrática contra a reacção”, não consegue esconder o facto óbvio de que, hoje, o neoliberalismo, com mais ou menos enfeites “sociais”, é a política única autorizada pela burguesia globalizada e que, portanto, o PS no governo, amanhã, só poderá prosseguir a política em curso. E aí o Bloco enfrentará a grande batalha da sua existência: dar ou não o alibi de esquerda a um governo “social” ao serviço das multinacionais e do império Europa.
Os dirigentes do Bloco cultivam a imagem de uma “abertura e pluralismo” que lhes dariam disponibilidade para todas as opções. Mas a abertura é só aparente. A linguagem “moderna” do Bloco, voluntariamente evasiva, esconde opções ideológicas muito precisas, com a agravante de não serem claramente formuladas e assumidas.
Se no Bloco vem alastrando uma notória crise de militância e de intervenção de massas e, com ela, cresce de mês para mês o poder de decisão do grupo parlamentar como único corpo de intervenção política do partido, isto resulta, já aqui o dissemos antes, da própria natureza do contrato que lhe deu nascimento. Associação de três agrupamentos interessados em obter representação parlamentar, o BE está a dar muito boas provas naquilo para que foi criado – só que esse mesmo êxito reforça a pressão dos “pragmáticos”, impacientes por cumprir a sua vocação de estadistas, e desmantela as escassas resistências de esquerda. O BE está a marcar pontos sobre o PCP mas pelos maus motivos: porque se mostra mais disponível, mais aberto, mais flexível, mais ágil para a aproximação aos círculos do poder – precisamente porque não tem o lastro operário que ainda tolhe os movimentos do PCP. A burguesia já o percebeu e começa a considerar seriamente o Bloco como uma cartada que poderá ser jogada em caso de necessidade.
O Bloco não é um motor de lutas, é um motor de acesso ao parlamento, às autarquias, ao governo. Quando a FER pretende descobrir-lhe potencialidades de renovar o “processo de reconstrução da extrema esquerda” está simplesmente a dar um tom “principista” ao seu atrelamento a uma empresa que promete notoriedade e fartas “vitórias políticas”.
Conhecemos a resposta dos bloquistas a estas críticas. É a mesma que nos davam, há quase vinte anos, os dirigentes do defunto PC(R). Mais ou menos isto:
“Sonhar com novos Outubros e lançar proclamações revolucionárias pelo derrube do capitalismo só serve para conduzir ao isolamento e à inacção. Devemos assumir a nossa vocação maioritária servindo as necessidades concretas das massas e tendo em conta o seu estado de espírito”.
É uma alegação interessante porque permite captar os pontos de corte entre a esquerda revolucionária e a esquerda reformista.
“Ligação às massas”? De acordo! Mas não aquela que varia na razão inversa do enfrentamento com a lei e a ordem burguesa. Há quem goste da ligação às massas nas “causas” inócuas, mas fuja delas a sete pés quando lhes cheira a conflitos radicais. Porque se evita dizer claramente que a nossa ligação é com as massas exploradas e oprimidas e não a busca de popularidade com “causas” mediáticas e fáceis? “Ter em conta o estado de espírito das massas”, excelente. Mas digam-nos, por favor, se as lutas actuais, necessariamente limitadas, são conduzidas de forma a ajudar as massas a percorrer a sua própria experiência e a acirrar o seu antagonismo com o poder, ou se, pelo contrário, são usadas para semear ilusões na melhoria do sistema.
“Proclamações ideológicas”? Se “proclamações” é indicar aos explorados a origem do mal, repetir-lhes que nada de fundo mudará enquanto não se puser fim ao capitalismo – então nós fazemos proclamações. A questão é: devemos mostrar incansavelmente às massas os seus interesses gerais e a longo prazo ou ajudar a embrutecê-las nas miragens do dia-a-dia?
“Vocação maioritária”? Os fanáticos da “ampliação permanente” nunca souberam explicar como é que a adaptação ao recuo das massas pode produzir outra coisa que não seja a adaptação do próprio partido à ordem dominante. Fazer do alargamento da influência um critério absoluto é um erro fatal para um partido de esquerda. Um partido que realmente queira contribuir para o fim do capitalismo tem que assumir que, em período de recuo das massas e de ofensiva da burguesia, a sua influência terá que ser necessariamente reduzida. Os momentos em que as suas palavras de ordem ganham larga adesão são pontuais. A primeira coisa que um partido de esquerda tem que encarar é se está disposto a assumir a condição de minoria (e mesmo minoria perseguida) pelos anos que for preciso.
Claro, estas respostas não servem aos aderentes do Bloco. Não temos ilusões a esse respeito. Os preconceitos analfabetos que se acumularam contra as ideias revolucionárias chegam a todos os recantos. Também não temos dúvida que se o reformismo indigente do Bloco não suscita uma rejeição generalizada dos militantes é porque corresponde ao estado de espírito timorato, conformado e descrente de si próprio que se instalou na nossa esquerda desde há largos anos. O Bloco não inventou nada: polariza uma cultura de moderação e respeito pela ordem, muito tradicional na nossa esquerda, moderação que descamba por vezes nos estribilhos estridentes mas é sempre profundamente pequeno-burguesa, imediatista, incapaz de prosseguir um plano de longo prazo de acumulação de forças sociais para a revolução.
O Bloco quer ser uma “esquerda socialista moderna” mas só consegue produzir um reformismo já muito visto. Não porque existisse à partida uma intenção malévola de enganar os trabalhadores. Mas porque PSR e UDP casaram erros tão diversos como o arrependimento dos famigerados “excessos” de 75, o pavor do isolamento, o receio de ser apontado como “arcaico” ou “fundamentalista”, a ideia de que o rumo trágico da revolução russa seria culpa do leninismo, a esperteza de fabricar uma espécie de “marxismo pós-moderno”, comestível por toda a gente, sobretudo, o complexo de inferioridade de uma esquerda diminuta, ansiosa por mostrar que também sabe fazer política “a sério” e que não está disposta a “ficar eternamente numa oposição estéril”…
Pela minha parte, já vi demasiadas vezes esta comédia e não quero voltar a repeti-la. A nossa esquerda é outra. Uma actividade diária de resistência operária e popular, permanentemente guiada e iluminada pela meta da revolução, é certamente difícil mas só ela prepara as massas para batalhas de classe decisivas. A sucessão tumultuosa dos acontecimentos, a anunciar a aproximação de uma tempestade social e política de grandes proporções a que o nosso país não ficará imune, avisa para a urgência de definirmos os contornos da nova corrente comunista e de procedermos à sua implantação.
Inclusão | 22/09/2016 |