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Primeira Edição: Política Operária nº 97, Novembro-Dezembro 2004
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A aproximação do referendo à Constituição Europeia põe na ordem do dia o lançamento de uma campanha de agitação capaz de levar o “não” à vitória. Com o PS, o presidente da República e o conjunto das personalidades “democráticas” a fazerem coro com a direita pelos “valores europeus”, a campanha pelo “não” só terá à sua frente o PCP, o BE e a CGTP. A questão está em saber se será uma campanha só para “marcar posição” ou se terá como meta real a rejeição do tratado. E aqui há questões políticas a discutir.
O êxito de uma campanha pelo “não” depende da clareza com que se explique à massa da população trabalhadora a necessidade de rejeitar o projecto e as vantagens que poderá obter dessa rejeição. A tendência de há longa data enraizada nas forças da esquerda institucional para procurar a linha da maior abrangência, acenar com utopias e empastar a linguagem para não assustar os sectores intermédios e vacilantes só pode conduzir à derrota.
E é mais que certo que poucos se deixarão convencer pela campanha do PCP quando, a rematar uma enxurrada de críticas, aliás bem merecidas, à UE, propõe que esta se transforme numa “associação dos Estados europeus livres e iguais”, conservando a soberania nacional, unidos na busca do progresso e na defesa da paz, uma “união livre das nações soberanas da Europa”. Este cenário lírico é também traçado por outros partidos europeus, como o PC da Grécia quando defende “a çrjação de um outro pólo, o pólo da cooperação de países e de governos que, desligados da UE, construirão uma cooperação totalmente diferente, em proveito dos povos”. Ou como o PCPE (Partido Comunista dos Povos de Espanha) quando aposta numa “Europa alternativa” “baseada na livre associação de nações e Estados, numa confederação de povos livres e soberanos”, em que “a política económica, monetária e social, de defesa, segurança e relações externas seja da competência dos Estados membros”.
Acenar aos povos europeus com o regresso aos Estados nacionais burgueses, (mais ou menos) soberanos, compartimentados, com o seu espaço económico próprio – àquilo que foi ultrapassado pela própria marcha da vida – é tratá-los como débeis mentais. A UE não é uma invenção maldosa de um punhado de reaccionários, é uma exigência vital do capitalismo europeu para sobreviver nesta nova etapa do seu crescimento. Os que tanto falam no marxismo deviam saber que os tremendos saltos tecnológicos e económicos das últimas décadas têm que se traduzir em mudanças profundas ao nível político: mercados mais vastos exigem Estados de dimensão continental. A Europa mosaico de pequenos Estados rivais ficou para trás. Como dizia Marx, “a força expansiva do capital é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China”. Essas mudanças podem não ser imediatas, mas são imparáveis. E é nesta nova realidade do capitalismo transnacional que temos que dar luta à burguesia, não virados nostalgicamente para o passado.
Os que fixam a atenção só nas críticas, fracassos e disputas após cada reunião da UE não notam que o projecto vai avançando, passo a passo, e que os avanços são sem retomo. Os condutores do processo têm evitado deliberadamente a discussão sobre o objectivo final (que assusta os povos e os pequenos Estados); concentram os esforços num degrau de cada vez, até que a conclusão surja por si: o império Europa.
Naturalmente, permanece incerto o desenlace do projecto unificador conduzido pelo bloco Alemanha-França. São imensos os obstáculos criados ao plano gigantesco de absorção de três dezenas de Estados nacionais numa única entidade imperial; é cedo para sabermos se os promotores conseguirão superar as suas próprias contradições, agravadas pela acção de sapa do império rival. Pode acontecer que as dificuldades de integração levem o eixo Alemanha-França a avançar, atrelando os restantes com um estatuto diferente. Porém, seja qual for a solução política encontrada e o tempo que ela demore, uma coisa é já hoje adquirida: o novo mercado europeu aberto pelas transnacionais é incompatível com o parcelamento e as barreiras da velha Europa.
Uma outra posição, aparentemente mais aberta à realidade, é a que defendem o Bloco de Esquerda e correntes afins, que assumem, contra o passadismo do PCP, uma postura pretensamente audaciosa: estar na UE para corrigir os seus rumos imperiais, criando dentro das suas instituições uma oposição activa e reformadora, capaz de “refundar” a Europa, tomar realidade o “modelo social europeu”, fazer respeitar os direitos democráticos, a liberdade de circulação dos imigrantes, promover a paz mundial e a ajuda ao Terceiro Mundo…
Esta ideia de que o mais inteligente por parte da esquerda será participar no processo, para “valorizar os aspectos positivos e minimizar os negativos”, é bem expressa pelo PC de Espanha quando defende que a esquerda deve entrar nas instituições europeias para, lá dentro, “disputar a hegemonia do processo comunitário às forças conservadoras e ao grande capital transnacional”, a fim de que a UE desempenhe “um papel internacional como factor de paz e de solidariedade”.
Mas a mais pequena apreciação das forças em presença mostra o absurdo desta pretensão. Como podem as forças da esquerda “moderna”, privadas de um alvo estratégico, acantonadas numa oposição marginal em cada um dos países, tornar-se capazes de “disputar a hegemonia ao grande capital” unido à escala da Europa? A união destes partidos, agora a ser negociada, vai multiplicar-lhes as forças e a capacidade de mobilização, ou vai justamente agravar tudo o que neles já há de vacilação e de impotência reformista?
Formular reivindicações sociais para a Europa sem as ligar explicitamente à revolução, ao derrube da burguesia e do seu aparelho de Estado, é burlar os trabalhadores. Se já era absurdo querer melhorar o Estado burguês nacional por meio de reformas, agora, ao nível do império capitalista europeu, esse projecto é simplesmente anedótico. A corrente que em Portugal é representada pelo BE apenas sonha em transferir para o espaço europeu a sua receita tradicional – tornar-se um contrapeso indispensável da social-democracia e por este meio aceder a uma pequena fatia do poder. E anuncia um único resultado prático: a formação de grandes partidos colaboracionistas europeus, a jogar o jogo institucional, a servir de válvula de escape à resistência das massas – justamente o que é necessário ao grande capital transnacional europeu para se consolidar no poder.
Os horizontes oferecidos por estes críticos “progressistas” da UE – voltar para trás, ou melhorar a União – são igualmente utópicos. Não admira que os seus apelos suscitem tão pouca adesão. Numa ou noutra variante, eles propagandeiam a mesma submissão e colaboração de classes que têm praticado à escala nacional – e isto contamina todas as suas denúncias.
A campanha pelo “não”, para ter alguma hipótese de ganhar as massas, deve falar claro: o regresso aos pequenos espaços nacionais é impossível, a correcção da UE por dentro, também – só nos resta abordar desde hoje a luta frontal para minar e desmantelar a máquina política e militar que está a ser montada pelas transnacionais.
Isto significa que a luta pelo fim do capitalismo, pelo socialismo, assume agora uma dimensão europeia – não apenas no terreno da solidariedade mas no da actividade prática diária. Até hoje, por toda a Europa, os proletariados nacionais lutaram contra as suas próprias burguesias. A partir de agora, com o capitalismo a integrar-se num único bloco, a tarefa é fazer emergir um proletariado europeu unido, em luta contra as instituições da UE. A rejeição deste tratado iníquo, sobretudo se o “não” triunfar em vários países, pode ser um primeiro passo para o proletariado europeu sair da crise em que se debate, começar a configurar a sua identidade própria como força continental e animar um vasto movimento, à escala europeia, de oposição popular ao império Europa.
Vai decerto demorar a construirmos uma força proletária europeia com o mesmo grau de unificação que já leva a burguesia. Mas é esse o único caminho para a frente.
Sem alternativa ao que existe, a nossa esquerda reformista não se atreverá a empenhar-se a fundo na campanha pelo “não” ao referendo; já ficará contente com uma votação “honrosa” que lhe sirva de cartaz para as eleições internas que se seguirão. E isto porque é sensível à berraria da direita, com o papão de que, em caso de rejeição do tratado, “Portugal seja excluído da Europa”, ou que a “construção europeia” entre em crise. Embora não o confesse, acha que o tratado pode não ser bom mas é um mal menor…
Este é, além do mais, um receio inepto. Infelízmente para nós, não estaremos em posição, nos tempos mais próximos, de conseguir que o movimento popular, em Portugal ou em qualquer dos outros países membros, force ao abandono do projecto imperial europeu; isso só se faria ao preço de uma revolução proletária, que, para nossa desgraça, não está no horizonte.
Mas uma campanha bem conduzida pelo “não” no referendo poderá mandar para o lixo esta Constituição, forçar os governantes a renegociar os seus tratados, despertar novas forças, ganhar tempo para a organização continental da luta do proletariado, e isso já seria muito importante.
Argumentam também certos sectores da “esquerda” (em voz baixa) que o crescimento da UE, mesmo “imperfeita”, será no fim de contas favorável para as forças democráticas, porque poderá servir de barreira à agressividade brutal do império ianque, ser um factor de paz, etc.
Para estes míopes incuráveis, a Europa, que produziu as duas guerras mundiais, o nazismo, o colonialismo e o neocolonialismo, estaria hoje “purificada” e transformada num factor de paz e progresso — justamente quando no seu interior crescem desmesuradamente as forças do capital! Não vêem o envolvimento da UE na criminosa guerra dos Balcãs, na agonia da Palestina às mãos do sionismo, na pilhagem do Iraque e do Afeganistão, nos golpes e contragolpes em países africanos, na corrida para dominar os mercados da América Latina. Não dão notícia das diligências para criar um Exército Europeu, um programa armamentista, uma central de vigilância.
Esquecem que a natureza do imperialismo é única; a reacção em toda a linha, as aventuras guerreiras, a barbárie, são o produto necessário dos centros capitalistas em luta para derrotar a resistência do proletariado e dos povos e para vencer os rivais. Como notou um dia Lenine, o imperialismo não é uma política, a que se possa opor em alternativa uma outra política mais moderada; o imperialismo é a própria maneira de ser do capital financeiro – quanto maiores os recursos e os interesses em jogo, mais exacerbados os apetites, mais feroz a concorrência, mais bárbaros os conflitos.
A luta contra a expansão guerreira dos EUA exige do movimento proletário europeu, não a colaborção com a sua própria burguesia, mas a luta contra ela. Só opondo-nos ao capitalismo e ao imperialismo em nossa casa reuniremos forças para atacar seriamente o imperialismo rival. Por isso, a única posição favorável para a luta anti-imperialista e anticapitalista é, em todas as circunstâncias, o enfraquecimento do gigante europeu. Lançar desde já uma campanha convicta pelo “não” ao referendo é uma questão vital para a esquerda.
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Todas as grandes orientações da UE – o Mercado Único, o euro, os transportes europeus, o alargamento a Leste, o processo de Lisboa – têm tido a sua origem no clube da Mesa Redonda dos Industriais Europeus (ERT). Fundado em 1983, este clube reúne os patrões de cem das maiores empresas mundiais. Cada associado paga uma quotização de 55.000 euros. “Tenho a impressão de que o nosso papel tem crescido – observa modestamente Daniel Janssen, PDG da multinacional Solvay – agora é a Comissão Europeia que nos vem consultar”.
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Em Julho, o comité dirigente da CES, a Confederação Europeia de Sindicatos, comprometeu-se a “apoiar a Constituição Europeia, como ponto de partida para novos progressos em direcção a valores sociais mais fortes da União Europeia”. O que sejam estes ‘Valores sociais mais fortes” pode perceber-se, sabendo que a supercentral admite a “necessidade da moderação dos salários” e não se opõe à “flexibilização”, desde que “negociada”.
Tão dependente de Bruxelas que mais parece uma engrenagem do aparelho comunitário, a CES está a usar o seu poder de convicção (os fundos!) para levar as centrais sindicais de cada país a votarem “sim” no referendo. Para já, a direcção da CGT francesa parece estar ganha para a causa: “É inegável – disse em Julho o representante da central na CES – que o tratado constitucional representa um avanço real em relação aos tratados actuais”. Perante a comoção causada por estas palavras em certos sindicatos que já se pronunciaram pelo “não”, a comissão executiva da CGT assegurou, em 9 de Setembro, que a atitude final ainda não está definida e que haverá um ‘Verdadeiro debate” sobre o assunto. Começa agora o trabalho subterrâneo de “convencimento” dos renitentes.
Inclusão | 10/06/2018 |