A Esquerda e o Parlamento

Francisco Martins Rodrigues

19 de Janeiro de 2004


Primeira Edição: Política Operária nº 98, Maio-Junho 2004
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Os rumos da esquerda, no Brasil e em Portugal, foram tema de debate numa sessão levada a efeito pela PO, no dia 19 de Janeiro, na Biblioteca-Museu República e Resistência, em Lisboa, com a participação de João Bernardo, escritor e professor, radicado no Brasil, e de Francisco Rodrigues. Na ocasião, Ana Barradas apresentou o mais recente livro das edições Dinossauro, Direito de Agressão.

PT Vinte Anos Depois

Tanto o PT como a CUT, começou por observar João Bernardo, nasceram a partir de dois campos opostos: os movimentos de base (oposições operárias, comissões de trabalhadores, cooperativas de bairro) e a orientação que conferia toda a iniciativa às cúpulas, nos moldes tradicionais. Os subsídios recebidos da social-democracia alemã e do sindicalismo italiano contribuíram para reforçar as cúpulas em detrimento das bases. O determinante, porém, foi a evolução interna. A breve trecho o PT e a CUT começaram a dispor de consideráveis infraestruturas dependentes directamente dos órgãos dirigentes. O PT substituiu a actividade nos bairros pela conquista eleitoral de prefeituras (câmaras municipais) e é neste contexto que surge o Orçamento Participativo, que apresenta ao sufrágio da população, organizada por bairros, aquela pequena parte do orçamento municipal que não está vinculada a despesas fixas. Na grande maioria dos casos o processo tem servido sobretudo para consolidar a relação dos prefeitos com as clientelas locais.

Quanto à CUT, a estrutura assente nas oposições sindicais e nas comissões de fábrica foi abandonada em benefício de um sindicalismo autoritário e fortemente burocratizado, a tal ponto que poucos anos após a fundação da central já os seus dirigentes se queixavam da falta de representação nas empresas… provocada por eles próprios!

O Movimento dos Sem Terra (MST) constitui a excepção. Contando de início com muito pouco apoio, os sem terra, através da sua própria luta, impuseram-se à solidariedade urbana e sindical e acabaram por se converter no ponto de convergência de todos os movimentos de contestação. Isto apesar da sua ambiguidade, pois, embora o MST siga uma táctica aguerrida relativamente aos senhores da terra, a direcção tem uma táctica muitíssimo conciliatória nas suas relações com os sucessivos governos. Nos últimos anos o MST tem procurado estimular um movimento anticapitalista equivalente nas cidades, que leve sem tecto à ocupação de terrenos baldios e de casas, mas por enquanto com escassos resultados.

O governo Lula veio consagrar uma política que, ao longo de vinte anos, serviu para retirar sistematicamente ao movimento dos trabalhadores os elementos mais combativos e os activistas de esquerda, para os inserir em estruturas directivas fortemente burocratizadas e para os promover ao longo dos sucessivos escalões do poder político. E assim um movimento surgido em ruptura com o capitalismo encontra-se hoje a gerir eficazmente o capitalismo. Evolução que não pode ser atribuída à “corrupção parlamentar” mas a toda uma concepção autoritária na relação com os movimentos de base.

A terminar, J. Bernardo destacou que, para a questão fundamental – o que deve ser uma actuação anticapitalista em épocas de refluxo das lutas dos trabalhadores? – não existe uma resposta teórica já elaborada. A resposta é prática, e é diferente de cada vez.

A "Doença da Nossa Democracia"

A obsessão pelas eleições, afirmou Francisco Rodrigues na sua intervenção, está a levar a esquerda do nosso país da política real para a política virtual. Perante um sinal de alerta tão grave como foi o facto de ter sido precisa a intervenção da direita para atalhar a carreira destruidora do “santanismo-portismo”, PCP e BE já estão lançados em nova corrida eleitoral, como se nada de extraordinário tivesse acontecido. Todavia, com governo e parlamento a marchar a reboque das transnacionais e das aventuras imperialistas, pode dizer-se que “nunca corremos colectivamente riscos tão grandes”.

A esquerda está a esquecer que o seu terreno de luta não é o parlamento mas a rua, o único sítio onde os verdadeiros detentores do poder são de facto vulneráveis. Rendidos à ideia de que “a esquerda, para ser credível, tem que apresentar soluções pela positiva”, PCP e BE produzem catadupas de propostas de lei. Mas há que perguntar: impulsionam o movimento popular ou servem-lhe de sucedâneo e de barreira?

É uma pergunta justificada, porque, com o desemprego a crescer, os salários congelados, os direitos laborais recortados, a impunidade do patronato a atingir as raias da obscenidade, o movimento popular, em vez de crescer, declina.

A “doença da nossa democracia” de que tanto se fala, só se cura com manifestações, greves, cortes de estradas, folhas populares, centros de convívio, abaixo-assinados, núcleos de propaganda – com a intervenção directa das massas em defesa das suas reivindicações. E isto não nasce por geração espontânea. Precisa da acção de centenas e milhares de activistas e agitadores, audaciosos, convictos, como já houve no passado. Os quais só voltarão a surgir se a esquerda declarar abertamente a sua razão anticapitalista em vez de fazer propostas de governo. É preciso que a esquerda, em vez de dizer aos trabalhadores: “As coisas só vão melhorar quando votarem em nós”, lhes digam: “As coisas só vão melhorar quando vocês meterem as mãos no poder”.

A terminar:

“No dia 20 de Fevereiro votem em quem quiserem, ou não votem, ou risquem o voto. Como lhes pareça melhor. Com uma certeza, porém: não é disso que depende o nosso futuro”.


Inclusão 01/10/2016