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Primeira Edição: Politica Operária nº 74, Mar-Abr 2000
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Na última P.O., Mariano Castro insurge-se contra dois artigos publicados no número anterior da revista, “Eleições, que mudança?” (do colectivo Emancipação do Trabalho) e “Doença incurável”, da responsabilidade da redacção, os quais considera como “uma falsificação das posições dos comunistas (marxistas-leninistas) sobre as eleições” e “uma revisão ao marxismo sobre os parlamentos burgueses”, já que poriam em causa “a posição de princípios dos comunistas relativamente à sua participação em eleições ou em parlamentos contra-revolucionários”. Em apoio desta opinião, faz longas citações do Esquerdismo de Lenine que ocupam a maior parte do artigo.
Os termos com que M. C. nos castiga são fortes mas, ao que me parece, a crítica é precipitada e superficial. O facto é que nem um nem outro dos artigos citados se pronuncia sobre a concorrência ou não concorrência dos revolucionários às eleições e sobre a participação ou não participação no parlamento. Os artigos simplesmente constatam que o parlamentarismo perde credibilidade aos olhos das massas, e arrasta uma decadência miserável e isto será difícil de contestar, pois é um facto de verificação diária.
Aliás, o próprio M. C. concorda que “a denúncia do parlamentarismo “é hoje mais necessária do que nunca” (sublinhado meu). Então porque o choca a crítica feita naqueles artigos? Não foi oportuno termos deitado um pouco de água na fervura da euforia parlamentar-reformista criada pelos êxitos eleitorais do Bloco de Esquerda com algumas palavras de simples bom senso e realismo? — problema, parece-me, é que M. C. sabe que a crítica do parlamentarismo é obrigatória para nos demarcarmos do reformismo, mas, na prática, receia que a má imagem que damos do parlamento (“decadência indigna”, “ausência de credibilidade”, etc.) impliquem a ideia de que este deve ser boicotado pelos comunistas. E o receio é tão grande que o leva a fulminar uma vulgar crítica do parlamentarismo como uma “falsificação do marxismo”.
A meu ver todos ganharíamos se M. C. deixasse de dar tiros à toa, ele não precisa de andar a procurar “desvios” nesta matéria Com uma lupa; tem à sua disposição outros antigos já há bastante tempo publicados nesta revista, esses sim, dedicados ao tema que o preocupa: quando devem os comunistas concorrer às eleições e participar no parlamento? Lembro, nomeadamente, os artigos “Porque não votámos Guterres e não vamos votar Sampaio” (P.O. nº 52, Nov./Dez. 1995) e “O malogro da Internacional Comunista” (P.O. n9 39, Mar./Abr. 1993). Adiantei aí duas opiniões, que gostaria de ver discutidas por M. C. (e, naturalmente, por quaisquer outros camaradas):
Tentarei de seguida recapitular esses dois pontos, acrescentando-lhes mais algumas explicações. Com uma advertência prévia, porém. Penso que uma resposta comunista às questões da estratégia e da táctica actualmente em aberto só pode ser encontrada se prescindirmos de rótulos altissonantes e intimidatórios de “revisão do marxismo” e “falsificação das posições de princípio”, inteiramente deslocados quando se inicia um debate. A dura experiência passada demonstrou-nos que a revisão do marxismo não nasce só do desprezo pelo nosso património teórico; também as proclamações a torto e a direito de fidelidade aos “princípios” podem servir para bloquear o debate e a análise das situações, e abrir caminho a derivas reformistas, camufladas sob a bandeira da “ortodoxia”. Discutamos primeiro os argumentos, sem preconceito, para depois chegarmos a conclusões sobre o que é e o que não é marxista.
A discordância de Mariano Castro não é quanto à nossa abstenção nas últimas eleições, visto que reconhece não termos forças para uma intervenção independente. Mas, fora dessa incapacidade actual, ele considera que não deveríamos deixar dúvidas sobre a nossa disposição de participar nas eleições. E baseia-se numa extensa citação do Esquerdismo, doença infantil do comunismo, na qual Lenine afirma em substância, e de forma taxativa, que
“enquanto não tiverem forças para dissolver o parlamento burguês, os comunistas devem obrigatoriamente trabalhar nele”.
Daqui deduz M. C. que se trata de uma norma invariável, verdadeiro “princípio marxista-leninista”. Mas engana-se. E, já que tem tanto apreço pelo Esquerdismo, deveria ter notado que, noutras passagens desse livro, passando em revista a táctica dos bolcheviques, Lenine escreve:
“A sucessão dos métodos de luta parlamentar e não-parlamentar, da táctica de boicote do parlamento e da participação nele, das formas legais e ilegais de luta, as suas relações recíprocas e os laços entre elas tudo isto se distingue por uma assombrosa riqueza de conteúdo.”
E ainda:
“Na combinação das formas parlamentares e extraparlamentares é por vezes conveniente, e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares”.(1)
Obviamente, Lenine admitia situações em que os comunistas deviam boicotar o parlamento. Acaso poderia ser de outro modo? É até um insulto à inteligência de Lenine pensar que, com a sua genial percepção da acumulação de forças para a revolução, ele alguma vez se amarrasse a padrões fixos em matéria de táctica.
Ao contrário do que pensa M C, o boicote ao parlamento é perfeitamente conforme ao leninismo em muitas circunstâncias. A avaliação das vantagens ou desvantagens de participar no parlamento em cada caso concreto é uma atitude comunista que nada tem a ver com o ultra-esquerdismo ou o anarquismo dos que proclamam “parlamento, não, nunca, em caso nenhum”.
Aquilo que muitas vezes se esquece quando se cita (mal) o Esquerdismo em abono da obrigatoriedade de concorrer às eleições parlamentares é que esse livro foi escrito no momento em que os primeiros grupos comunistas europeus (holandeses, alemães, ingleses, etc.), entusiasmados pela revolução russa mas totalmente inexperientes, julgavam poder “caminhar a direito para a revolução, sem compromissos de qualquer espécie”, excluindo do seu campo de acção o parlamento, os sindicatos, as associações, e criando os seus próprios “sindicatos vermelhos” e “sovietes”, novinhos em folha… no seio da sociedade burguesa. Lenine usou por isso os termos mais cortantes para fazer compreender a esses jovens que tinham pela frente, não uma brincadeira “revolucionária” de seitas, mas uma dura luta pela conquista das massas e que esta passava também pela acção parlamentar.
Não adivinhava porém Lenine que o seu manifesto contra a “doença infantil do comunismo” iria ser, ao longo dos anos, transformado em versão exclusiva, unilateral e deturpada da táctica comunista, e que, à sombra do seu justo combate ao revolucionarismo pequeno-burguês, questões como a participação no parlamento iriam ser promovidas à categoria de preceitos invariáveis. Doravante, a apreciação concreta das vantagens ou desvantagens de participar no parlamento conforme a conjuntura da luta de classes iria ser proibida nos partidos europeus, em nome de um pretenso “princípio leninista” de “parlamento, sempre”.
Como é bem conhecido, uma vez adoptada como norma a concorrência às eleições em quaisquer circunstâncias, os partidos comunistas passaram a ser comandados pela lógica eleitoral: programas, palavras de ordem, actividade prática, passaram a guiar-se pelo objectivo de captar votos e de eleger deputados. E para angariar votos numa situação de estagnação das tendências revolucionárias no proletariado, os partidos resignaram-se a pôr entre parênteses as suas posições de princípio, passaram a encarar o movimento de massas do ponto de vista da utilidade eleitoral, tornaram-se intérpretes das aspirações democráticas pequeno-burguesas —, degeneraram, em suma, em partidos de esquerda da burguesia, enganchando a parte do proletariado que os seguia à pequena burguesia “avançada”. Tudo isto oculto pelos álibis “comunistas” que lhes proporcionava o apoio à URSS.
É fácil ver hoje que não foi por mera inexperiência que os partidos comunistas adoptaram a actividade parlamentar como uma obrigação e uma frente central de actividade em todas as circunstâncias; foi porque isso vinha ao encontro da tendência espontânea para a integração na ordem burguesa. A mentalidade oportunista dominante em todos os partidos europeus, por óbvias razões sociais (afinal, estamos no coração do imperialismo), sentiu-se encantada por poder brandir a acção parlamentar como prova de ortodoxia. Qual o oportunista que não adere com entusiasmo à perspectiva de se “bater contra a burguesia”… no âmbito dos discursos e moções parlamentares? Resultado: a “utilização revolucionária do parlamento burguês” caminhou a par da expansão do oportunismo nos partidos e foi, se não a causa, uma das mais fortes alavancas para a sua reconversão à social-democracia.
Por estranho que pareça à primeira vista, até nos países onde reinava o fascismo, o engodo pelo parlamento burguês fez os seus estragos, e bem grandes, nas fileiras comunistas. Vimo-lo entre nós, com Cunhal a teorizar, ao longo de quatro decénios, a saída não-revolucionária do fascismo e a restauração da democracia parlamentar como a “próxima etapa da revolução”. Teria isso sido possível sem séria oposição interna no partido se a crítica do parlamentarismo tivesse realmente sido feita neste país?
Três quartos de século de trajectória dos partidos comunistas mostram portanto que o engodo pelo parlamento sob o álibi da crítica ao “esquerdismo” desempenhou um papel devastador na corrupção social-democrata dos partidos. É nossa obrigação, se quisermos dar vida a uma nova corrente comunista, procurar clarificar as condições em que os comunistas devem ou não devem recorrer à intervenção no parlamento.
O EQUÍVOCO DE LENINE trabalho de massas (inclusive nos sindicatos, parlamento, etc.). Na ausência dessas respostas, a campanha anti-esquerdista abriu o caminho à recuperação das concepções oportunistas que interpretavam o trabalho de massas como a adaptação à legalidade burguesa e ao parlamento burguês — e não eram as 21 condições de adesão à Internacional Comunista, ditadas por Lenine, que podiam impedir essa viragem.
Subsiste uma pergunta: como pôde o oportunismo dominante no movimento comunista europeu apossar-se da crítica de Lenine em 1921 e desfigurá-la (aliás, não apenas no tocante ao parlamento mas também a outros aspectos da táctica)?
Quando Lenine fez a crítica ao “esquerdismo” dos jovens partidos comunistas europeus subsistiam ainda grandes esperanças na iminência de uma crise revolucionária europeia, na qual se afundaria o capitalismo, em resultado do apocalipse da primeira guerra mundial e da bandeira levantada pela revolução dos sovietes. Se a Rússia atrasada se lançara na revolução, o que dizer da Europa, dotada de um poderoso e experiente proletariado? (Naturalmente, a premência desesperada com que o país dos sovietes procurava socorro do Ocidente pesou muito nesta análise).
Convictos de que as massas europeias viravam costas à social-democracia e caminhavam “a passos de gigante” para a insurreição e para o poder soviético, os comunistas russos reclamavam que os jovens partidos europeus se lançassem, em verdadeira corrida contra o tempo, à conquista da massa do proletariado. Daí o livro de Lenine. Quando o poder parecia estar ao alcance da mão, o “esquerdismo” das jovens seitas comunistas aparecia como o maior perigo de se gorar uma situação revolucionária excepcional.
Sabemos hoje que estes pressupostos eram equivocados. A situação social na Europa era radicalmente distinta da da Rússia; correspondia a outra etapa e exigia outras soluções. A Europa capitalista passava então de uma primeira a uma segunda fase da sua expansão imperialista, através de uma transição decerto tumultuosa mas muito distante das condiçoes para a instauraçao da ditadura do proletariado.
Por isso, a tarefa que os jovens grupos comunistas tinham pela frente era bem mais recuada do que se supunha na época: tinham que reconsiderar as lições facultadas pela traição da social-democracia e nomeadamente a forma de libertar o proletariado do envolvimento da pequena burguesia imperialista e de lhe encontrar aliados seguros (o semiproletariado e os povos coloniais), traçar as vias para uma demorada acumulação de forças começar por entender a sociedade que queriam revolucionar.
O “esquerdismo” dos grupos comunistas não passava de uma entre as muitas manifestações da crise de um movimento que não sabia ainda como reerguer-se depois da traição histórica da social-democracia. Só uma luta de tendências prolongada (como a que se travara na Rússia) teria permitido fazer uma separação de águas entre o caminho da revolução e o do oportunismo e fornecer resposta novas para o trabalho de massas (inclusive nos sindicatos, parlamento, etc.). Na ausência dessas respostas, a campanha anti-esquerdista abriu o caminho à recuperação das concepções oportunistas que interpretavam o trabalho de massas como a adaptação à legalidade burguesa e ao parlamento burguês e não eram as 21 condições de adesão à Internacional Comunista, ditadas por Lenine, que podiam impedir essa viragem.
De resto, tivemos entre nós, há um quarto de século, uma experiência instrutiva sobre as vantagens, limitações e armadilhas da acção parlamentar.
Foi acertada, sem dúvida, a concorrência dos grupos marxistas-leninistas às eleições durante os anos de crise social consecutivos à queda do fascismo; o 25 de Abril fizera renascer nas massas trabalhadoras a esperança de poder utilizar o parlamento em apoio das suas reivindicações; era nosso dever acompanhá-las nesse movimento, participar nas eleições e procurar ganhar lugares para combater lá dentro a direita, desmascarar os reformistas e fazer agitação revolucionária. A presença no parlamento do deputado da UDP em 75-78 deixou-nos (apesar das vacilações desse partido) uma experiência valiosa e original do que pode ser a acção parlamentar comunista.
Mas isto era possível porque havia um movimento na rua que lhe dava sentido. A partir dos anos 80, consagrada a derrota do movimento popular, submetidas as massas à normalidade democrático-burguesa, perdido o lugar de deputado, a participação da UDP nas eleições teria que ser reenquadrada na perspectiva de um novo período de lento e paciente trabalho de acumulação de forças. Como se sabe, faltava ao PCR/UDP o arcaboiço para enfrentar a passagem a uma situação de refluxo do movimento. Com a derrota das “grandes esperanças”, desalentados pela contínua redução da base de apoio do partido, temerosos ante a perspectiva de uma longa “travessia do deserto”, os dirigentes e activistas do PCR voltaram-se para o parlamento como uma bóia de salvação que limitasse a perda de influência.
Ora, a tentativa de ganhar um deputado por qualquer preço teria naturalmente que provocar, e provocou, um rebaixamento ainda mais acelerado das posições políticas. Para não repelir eventuais eleitores indecisos, adoptou-se uma linguagem moderada e submeteu-se a censura o anterior “populismo”. A seguir veio a crença supersticiosa nos “trunfos” da campanha eleitoral, nos discursos, nas personalidades, nos golpes eleitorais. Depois, o medo e a vergonha de não ter lugar entre os partidos “a sério”… Gradualmente, a participação nas eleições induziu o abandono do universo de valores em que a UDP nascera o das comissões de base, dos plenários de fábrica e das assembleias de moradores, da oposição radical à organização social existente e da guerra aberta ao reformismo do PCP e a entrada num outro universo o da política “responsável”, alimentada de alternativas “credíveis”, que se medem pelos votos adquiridos. Quase sem sentir, a UDP passou do campo revolucionário para o campo da ordem.
Desta experiência tira-se como lição, parece-me, que uma representação parlamentar comunista, se não for apoiada numa séria implantação no proletariado, alimentada por uma corrente de luta, guiada por uma estratégia revolucionária, facilmente se torna um instrumento de corrupção. Não falemos portanto com ligeireza sobre a “luta parlamentar”, como se atacar o sistema burguês na sua própria casa fosse a coisa mais simples deste mundo. De “audácias” dessas está cheio o cemitério dos partidos comunistas.
Enquanto os comunistas portugueses não chegarem ao ponto de se reorganizar em partido, a questão da atitude face ao parlamento não poderá, naturalmente, ir além das generalidades. A única questão prática que se pode pôr por enquanto é saber se convém ou não votarmos num ou noutro dos partidos existentes e a nossa resposta a esse respeito tem sido com razão negativa, por essa hipótese prejudicar a demarcação das tendências e atrasar a afirmação da nossa corrente, que é o que mais importa para abrir perspectivas de mudança. Só em circunstâncias excepcionais (uma ameaça de extrema direita, por exemplo) seria admissível apelarmos à convergência de votos num “mal menor”.
Mas, mesmo admitindo que os comunistas já estivessem organizados em partido, eu tenho as maiores dúvidas de que fosse acertado, enquanto durar esta correlação de forças sociais, concorrer às eleições legislativas. O mais certo seria introduzirmos no novo partido, débil e tacteante, o vírus mortal do eleitoralismo. Perante o espectáculo que nos rodeia, é impossível não ver que o perigo principal para o movimento comunista no nosso país (e não só) continua a ser o de se deixar domesticar pelas instituições a pretexto de as utilizar.
Posso compreender a vantagem de apresentarmos candidaturas próprias, se isso permitisse fazer chegar a nossa voz mais fundo na massa, mas na condição de que toda a propaganda eleitoral fosse guiada pelo ataque à própria instituição, de modo a tornar claro que não estávamos a lutar pela conquista dos votos mas apenas a aproveitar a campanha eleitoral para desacreditar o sistema.
C. está convencido de que a abstenção é sempre errada, pois abster-se da luta no parlamento “equivale a deixar as massas atrasadas ainda crentes na democracia burguesa à mercê do cretinismo parlamentar e dos partidos ‘democráticos’ da burguesia”. Depende. Pode haver situações em que justamente a participação dos comunistas no parlamento contribua para atrasar as massas, para lhes incutir ilusões nefastas na capacidade de regeneração deste; há situações em que a participação no parlamento afasta os comunistas das massas inferiores, mais radicalizadas, e os aproxima das massas intermédias, mais vacilantes; e há casos em que à burguesia convém que os comunistas entrem no parlamento, para os neutralizar. Cada caso tem que ser analisado por si, sem nos apegarmos a fórmulas feitas.
Em minha opinião, o parlamento que temos hoje em Portugal não pode ser utilizado pelos revolucionários enquanto estes não agirem fora dele para modificar a correlação das forças sociais e políticas e a sua própria têmpera de revolucionários, que anda muito por baixo.
De resto, não penso que se possa ver hoje no parlamento uma frente decisiva para a consciencialização e radicalização das massas; na época actual, o que as neutraliza é sobretudo o facto de não vislumbrarem nem as condições da reorganização socialista da sociedade nem o caminho do derrubamento da ordem burguesa. Seria bom que concentrássemos aí a nossa atenção e nos impressionássemos menos com a poeirada eleitoral.
Por último, parece-me de referir a mudança de qualidade do parlamento, ainda frequentemente esquecida. Pretende M. C. que o parlamento continua igual a si próprio e que não há motivo para introduzirmos agora o argumento da sua decadência, putrefacção, etc. De facto, se já Engels no seu tempo lhe chamava a “estrebaria”, que novas taras se lhe podem encontrar?
O que há de novo, simplesmente, é que o parlamento se transformou num saco vazio pela passagem de Portugal a província da Europa.
Aparentemente, a instituição permanece inalterada: acesas campanhas eleitorais, vitórias ora da “esquerda” ora da “direita”, debates… Mas o que há de comum entre o parlamento de há cem anos, baluarte dos direitos de cidadania conquistados à autocracia, porta-voz da nação burguesa, e a assembleia fantoche que hoje subsiste como um adorno da integração de Portugal no império europeu? Todos os poderes reais de decisão passaram para comissões “comunitárias”, não eleitas. Este parlamento já não é palco da luta entre facções burguesas; funciona apenas para manter o simulacro da soberania popular e como lugar de negociação e ajustes entre as mafias concorrentes à gestão dos negócios públicos.
O descrédito que rodeia o parlamento não é casual, nem mero sintoma de atraso político das massas; corresponde a um fenómeno real a agonia do sistema de democracia parlamentar. Tendo agido ao longo de século e meio como o mais poderoso estímulo à concentração do capital e à subjugação do trabalho assalariado, o parlamentarismo promoveu o gigantismo do poder económico e o consequente “atropelamento” das fronteiras e das nacionalidades a que se chama a “globalização” a qual está a esvaziar de funções o parlamento. O círculo fecha-se. Emerge o regime, de contornos ainda mal definidos, de uma nova autocracia do capital financeiro.
Deste esvaziamento do parlamento resultam novas dificuldades para a sua utilização revolucionária, as quais estão longe de ser avaliadas nas nossas fileiras. Para já, está a degradar-se ainda mais o papel da chamada esquerda reformista. Os deputados e outro pessoal dos aparelhos do PCP, do Bloco de Esquerda ou dos Verdes, que se empenham alegremente nos debates, nas comissões de trabalho, nas delegações internacionais, assumindo como autêntica uma soberania fictícia, aceitando como normais as ordens vindas de um centro não sujeito a nenhum controlo ou eleição, estão na prática a prolongar junto das massas a ilusão num sistema representativo que deixou de existir.
Naturalmente, muitas mudanças políticas podem ocorrer, e devemos estar preparados para as enfrentar. A concorrência às eleições poderia tornar-se obrigatória para nós mas nesse caso deveríamos ter claras as condições em que poderíamos atacar o sistema capitalista no seio deste pseudo-parlamento, não correndo o risco de ser figurantes de uma mascarada. Já que Mariano Castro levantou o problema, espero que nos dê um contributo nesse sentido.
Notas de rodapé:
(1) Lenine, Esquerdismo, ed. Pequim, 1975, pp. 10 e 21. Sublinhados meus. (retornar ao texto)
Inclusão | 02/10/2018 |