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Primeira Edição: Política Operária nº 66, Set-Out 1998
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Muito se falou, nos anos da luta contra o revisionismo, da criação de um “partido de tipo novo”, “bolchevique”, “leninista”. Porém, aquilo que, na realidade, o movimento marxista-leninista conseguiu gerar foram partidos sem dúvida mais radicalizados mas moldados no mesmo unanimismo dogmático dos anteriores.
Reclamando-se dos “princípios leninistas de partido”, não se atreveram a recriá-los, na maioria dos casos por nem sequer os conhecer. Não é de estranhar por isso que rapidamente perdessem o vigor inicial e se revelassem terreno fértil para o burocratismo e para a proliferação de tendências oportunistas. A dissolução ideológica em que soçobraram resultou do receio a uma verdadeira ruptura com a experiência anterior.
Hoje, quando se começa novamente a falar na necessidade de criação de um partido comunista, há razão para voltarmos às lições que se podem colher na experiência organizativa dos velhos partidos e dos partidos “M-L” dos anos 70. Com estas breves notas, procuro retomar uma reflexão já iniciada nestas páginas(1), para evitar que amanhã “bolcheviques” de vistas curtas recaiam em velhos erros.
É sabido, mas muitas vezes esquecido, que o partido comunista, corpo estranho na sociedade burguesa que proclama pretender derrocar, sofre uma tremenda pressão da parte desta para ser digerido e destruído: pressão policial e militar quando necessário, mas também política e ideológica, na actividade legal de todos os dias. Pressão que provém não apenas do aparelho de poder burguês mas também das cantadas pequeno-burguesas contíguas ao proletariado e das flutuações no seio do próprio proletariado, como resultado da ditadura a que está submetido.
É essa pressão que causa, nos períodos “normais” de desenvolvimento pacífico da luta de classes, a dificuldade extrema dos comunistas se inserirem na política diária, actuarem ao nível das massas, fazerem uma utilização revolucionária da luta por reformas, sem se deixarem subverter pela tendência envolvente para a adaptação às regras e limites do sistema. As mais das vezes, cria-se um verdadeiro fosso entre os objectivos estratégicos a que o partido procura ser fiel e as necessidades imediatas da táctica. Daí a tendência para surgir em quase todos os partidos comunistas uma ala “esquerdista, sectária, dos que tentam preservar a natureza revolucionária do partido pelo isolamento, e uma ala oportunista (quase sempre maioritária), dos que tentam ganhar influência política adaptando-se ao movimento espontâneo e sacrificando os objectivos revolucionários.
Compreende-se, nestas condições, que a defesa da unidade do partido em torno do seu programa revolucionário seja para o PC uma exigência vital. A questão está em saber por que meios se alcança essa unidade.
Os partidos da Internacional Comunista procuraram preservar a unidade interna através do modelo organizativo a que chamaram “centralismo democrático”, copiado do PC da URSS. Nos anteriores partidos social-democratas houvera uma desastrosa tolerância para com o oportunismo e o reformismo. Agora, os novos partidos comunistas queriam-se, segundo uma definição de Staline que fez escola, “monolíticos”, “fundidos numa só peça”, a fim de garantir que não recairiam nos mesmos erros. Começava a era do partido de aço, onde não haveria sombra de dissidências, não um “clube de discussões” mas o estado-maior da revolução em cujo interior reinaria a ordem perfeita.
Trata-se na realidade, como bem sabem todos os que lhe fizeram a experiência, de um centralismo não democrático mas antidemocrático. As células e comités funcionam sob rigorosa vigilância dos emissários da direcção, a comunicação entre os membros do partido é severamente restringida, o medo à iniciativa é geral, a manifestação de opiniões próprias é desencorajada, as divergências são punidas, as eleições abolidas ou falseadas, os congressos e assembleias programados, a crítica e autocrítica transformadas numa espécie de confissão religiosa dos pecados. Neste tipo de organização, todas as pretensas garantias democráticas consignadas nos Estatutos – eleição de baixo para cima, direito de crítica, prestação de contas de cima para baixo, congresso soberano de delegados livremente eleitos pela base, direitos iguais para todos – acabam por se esvaziar por completo, como em qualquer partido burguês. A instância suprema de direcção exerce não apenas o poder no partido, como seria legítimo, mas um poder absoluto, que não é temperado por qualquer possibilidade de fiscalização ou contestação.
Durante meio século, os partidos comunistas em todo o mundo colheram como frutos desse centralismo antidemocrático a esterilização teórica, o oportunismo político e o maquiavelismo organizativo. A vida mostrou que o abafamento da democracia interna, que deveria, na mente dos burocratas, evitar os desvios e garantir a unidade, acaba por favorecer a degeneração reformista. Mas foi justamente esse modelo de organização que o movimento “marxista-leninista” adoptou nos novos partidos que começaram a surgir a partir dos anos 60, na convicção de que assim ressalvava o “legado de Lenine e Staline”.
Como é possível fazer vigorar em partidos com milhares de membros esta disciplina própria de uma seita?
Em primeiro lugar, naturalmente, pela submissão voluntária dos membros do partido. A discriminação, as calúnias e as perseguições a que a actividade dos comunistas está sujeita, mesmo nos regimes mais democráticos, predispõe os militantes a aceitar, num conceito equivocado de lealdade, a obediência sem reservas, “para não criar mais dificuldades ao Partido”. Os órgãos dirigentes, pela sua parte, fomentam activamente este estado de espírito, que lhes poupa muita controvérsia e trabalho de convencimento e lhes dá uma reconfortante ilusão de coesão interna.
Fazem mais: teorizam-no. Quando nos anos 50 militei no PCP, o regime ultracentralizador era justificado pelos dirigentes não apenas como uma necessidade da clandestinidade (o que não oferecia dúvidas a ninguém), mas como uma manifestação da ordem proletária, que não tolerava a “bagunça das polémicas entre intelectuais.” Lisonjeava-se o atraso político como manifestação de espírito de classe. Impedidos de participar em verdadeiros debates políticos, de confrontar opiniões, os operários do partido apegavam-se a uma confiança submissa nos dirigentes e acabavam por subscrever as posições mais oportunistas desde que envolvidas em palavreado e atitudes “comunistas”.
A disciplina de seita, da obediência sem discussão, ainda hoje seduz o espírito de certos militantes, inclusive operários, que julgam assim tornar-se bons soldados na guerra de classes. Mas nem a guerra entre as classes pode ser reduzida a um confronto militar, nem o partido pode ser reduzido a um exército. É um idealismo tosco supor que o partido comunista possa deixar de espelhar no seu interior a luta de tendências que se processa no movimento operário e a luta de classes em geral.
De facto, o sonho do partido a funcionar como um relógio representa já a ideia do partido como exterior à classe. Quanto mais fraca é a autoridade do partido perante a classe, quanto menor é a confiança dos seus dirigentes na classe, quanto mais frouxos os laços do partido com a classe, tanto mais emerge a tendência para compensar essa fraqueza através da disciplina rígida. Dirigentes incapazes de orientar a classe nos grandes confrontos gostam de controlar com rédea curta os membros do partido.
Um segundo expediente, forjado pelo PC da URSS e adoptado pelos partidos de todo o mundo, consistiu em atribuir a Lenine a autoria deste “centralismo democrático”, que Staline, como bom discípulo, teria sistematizado. Deturpou-se a história do POSDR e do partido bolchevique para fazer crer que Lenine se batera durante toda a vida pelo partido “monolítico”.
Ocultou-se que Lenine, só nos últimos anos, arrastado pela agonia da revolução, começou a deslocar-se para os conceitos da disciplina de tipo militar no partido, mas que essa nunca fora a sua prática durante vinte anos de luta revolucionária. As excepcionais qualidades de polemista de Lenine formaram-se num clima de ardente confronto de opiniões no interior do partido, polémicas na imprensa operária, consultas e votação de moções concorrentes nas organizações do partido, congressos que duravam semanas e em que batalhavam tendências opostas…
“Unidade na acção, liberdade de discussão e de crítica”, “permitir ao partido medir a profundidade ou a insignificância dos desacordos”, “que o partido saiba tudo”, “os desacordos não poderão deixar de se manifestar num partido que se apoia sobre um prodigioso movimento popular” são algumas das formulações de Lenine sobre o assunto que ficaram clássicas mas que os comunistas portugueses desconheciam.
Também não é verdade que a formação do partido bolchevique, em 1912, tivesse posto termo aos debates internos. As actas do comité central no ano de 1917 revelam um partido em permanente debate. Mesmo em vésperas da revolução, assembleias de militantes escutavam intervenções de membros do CC que se opunham à tomada do poder. Nos primeiros anos após a revolução manteve-se este espírito de liberdade de discussão.
Mas os argumentos ideológicos não bastam para impor esta supressão da democracia. É preciso um cimento, que é dado pelo “aparelho” de “controleiros” e funcionários. De facto, no partido pseudoleninista, os militantes dispostos a dedicarem-se integralmente à acção revolucionária tornam-se mão-de-obra da direcção para submeter a base do partido a uma obediência incondicional.
A espinha dorsal do partido fica assim constituída por uma pirâmide de pequenos chefes, viveiro de autómatos, quando não de caciques, mais atentos a acertar o passo pelo poder que está em cima do que às questões de princípio e ao sentir da base. O essencial da vida partidária fica concentrado nas mãos de militantes que não participam na elaboração da linha do partido nem na sua aplicação, mas apenas a transmitem, verdadeiras “correias de transmissão” cuja capacidade mais apreciada é a prontidão na execução das directivas e a vigilância sobre eventuais dissidentes.
A “formação ideológica” que é ministrada a estes “quadros” visa fomentar a memorização acéfala, matar o espírito crítico e corrompê-los como uma “elite comunista”.
Dizia Marx, a propósito da organização secreta animada por Bakunine:
“Eleva-se a princípio a necessidade de depravar uma pequena minoria bem escolhida de operários a quem se lisonjeia separando-os da massa pela iniciação misteriosa, fazendo-os participar no jogo de intrigas e de imposturas do governo secreto.”(2)
Como não pensar nos “cursos de formação” e nas “reuniões dos quadros proletários” que o PC(R), durante a sua breve existência, se afadigou a copiar do PCP?
A prática do centralismo antidemocrático, fenómeno universal em todo o movimento “comunista”, não pode ser explicada por “erros”, pelo “culto da personalidade” ou por um pendor para o burocratismo.
Ela foi a solução necessária forjada pelo PC da URSS para pôr de pé o regime altamente centralizador do capitalismo de Estado. Erigido em alicerce da máquina do Estado, quando a ditadura do proletariado era apenas uma aspiração impossível, o velho partido bolchevique perdeu a sua tradição de partido operário revolucionário, vivo e combativo, e foi forçado a instituir normas internas opressivas, indo até à paranóia, à delação, aos processos sumários, etc. O espírito tirânico de Staline só assumiu proporções desastrosas porque veio ao encontro de necessidades reais da sociedade “soviética” nessa altura: fazer uma acumulação acelerada de capital sob a bandeira do “socialismo”.
Naturalmente, a direcção do partido russo não tardou a exportar a sua concepção de “centralismo democrático” para os partidos comunistas de todo o mundo. Convinha-lhe a concentração burocrática de todo o poder em reduzidos órgãos dirigentes para garantir que esses partidos não escapariam à sua tutela e defenderiam os seus interesses no exterior. Por seu lado, a menoridade do movimento comunista na maioria dos países, por ausência de uma base operária revolucionária como a que existira na Rússia no começo do século, o seguidismo face à “pátria do socialismo”, o terror fascista, criaram condições propícias para a adopção generalizada deste falso “centralismo democrático”.
Foi só quando os partidos começaram a distanciar-se da tutela soviética, a partir dos anos 60, que as normas do “centralismo democrático” começaram neles a ser questionadas e afrouxadas. Mas aí foi para regressar ao estilo social-democrata, de convivência com o oportunismo, e para dar livre curso ao revisionismo.
Não se corre justamente o perigo de, ao combater os excessos de centralismo, vir a recair no estilo liberal social-democrata, na liberdade para os grupos e fracções, na indisciplina, na perda de espírito militante e de vigilância, em todas as taras próprias dos partidos burgueses?
Sim, esse perigo está sempre presente mas o partido não está condenado a optar entre o ultracentralismo ou o liberalismo. Se tiver um programa marxista e se ligar aos destacamentos mais combativos do proletariado e semiproletariado encontrará forças para praticar a verdadeira opção comunista: o centralismo democrático.
Tudo depende de saber conjugar o centralismo com a democracia. Como se escrevia na P.O. há treze anos, no artigo citado, “a luta pela unidade política, o centro único e a disciplina, a unidade de acção e a aplicação das decisões maioritárias são absolutamente necessários na vida do comunista” mas “a vontade única só se atinge pela prática da democracia”. A luta interna não tem que ser negada ou proibida, tem que dispor de mecanismos apropriados para se exprimir.
Para já, as perspectivas da criação de um novo partido comunista realmente revolucionário não parecem favoráveis em Portugal (e talvez por toda a Europa). Isto não significa que se deva cruzar os braços. Importa, como escrevi num artigo anterior, concentrarmo-nos aturadamente no trabalho preparatório do partido: núcleos comunistas, intervenções pontuais na luta de classes, trabalho de propaganda, debates, que implantem na parte avançada da classe uma nova corrente de ideias comunistas, entre as quais se conta o método do centralismo democrático.
Notas de rodapé:
(1) “Centralismo sem democracia”, de Paulo Meneses, nº 2. Out./Nov. 1985. (retornar ao texto)
(2) “Marx/Bakunine: Socialisme autoritaire ou lihertaire, ed. 10/18, Paris, 1975, tomo II, p. 294. (retornar ao texto)
Inclusão | 02/10/2018 |