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Primeira Edição: Política Operária nº 63, Jan-Fev 1998
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Em matéria de ditaduras e massacres ao longo deste século, as democracias capitalistas não ficaram atrás do totalitarismo comunista.
Chegou a Portugal a agitação em torno do “Livro negro do comunismo” (ver Visor, P. O. nº 62). Embora demarcando-se do fundamentalismo fascizante de Courtois, a generalidade dos comentadores concorda em acusar o comunismo de uma tremenda onda de crimes, “a pior tirania de sempre”, “por ter pretendido instaurar pela força um paraíso utópico”. A debilidade mental destas opiniões, hoje aceites como indiscutíveis, merece algumas notas.
As convulsões sociais que abalaram a Rússia e o Oriente ao longo deste século assinalam a entrada no capitalismo de vastas regiões atrasadas, cuja evolução fora bloqueada pelo ascenso do imperialismo. Estancada a formação gradual de uma burguesia nacional autónoma, a acumulação primitiva do capital foi feita por via estatal, recorrendo a uma repressão em massa. Aliás, se a constituição do capitalismo europeu exigiu séculos de ferozes guerras internas e a conquista de outros continentes, se na América do Norte teve de se alimentar do genocídio dos índios e da escravatura dos negros, muito estranho seria que na Rússia e na China, feita a marchas forçadas, sob o cerco e as agressões das grandes potências, não fosse acompanhada por enormes catástrofes e actos de barbárie. Seja como for, o que está aqui em causa não é o socialismo mas um novo episódio da expansão mundial do capitalismo.
Acusa-se Lenine e os bolchevistas por terem tentado “forçar uma revolução operária quando sabiam que não havia condições para o socialismo”. É uma grosseira falsificação da história.
A Rússia (como a China) estava grávida da revolução desde o começo do século. Perante a demonstrada incapacidade da burguesia para proceder às transformações inadiáveis, a classe operária foi projectada para primeiro plano. Os comunistas intervieram, não como promotores da revolução (ideia absurda, digna de um Salazar), mas como consciência de um gigantesco movimento social em marcha.
O que agora se condena como ultraje à democracia é que a classe operária tenha surgido nesta revolução (burguesa) com objectivos próprios, organizada num partido próprio, em vez de se limitar ao papel tradicional de força de choque domesticada. É essa organização da classe operária em partido, intolerável para a burguesia, que se apelida de “golpe de Outubro”.
Ao pulverizar toda a velha sociedade até aos alicerces, e sobretudo ao romper o cordão de protecção estabelecido ao longo de séculos pelas classes possuidoras e desmantelar o regime de propriedade privada, os operários russos agiram como poderosas forças de progresso e permitiram entrever em esboço uma nova organização social para além do capitalismo. Se era muito cedo para realizar as suas aspirações socialistas, isso não impediu o acto precursor de Outubro de ficar como referencial do pensamento avançado deste século.
As novas “revelações” sobre o terror revolucionário dos bolcheviques nos anos 1917-21 nada têm de novo e omitem cinicamente que essa foi a resposta defensiva do poder dos sovietes ao assalto feroz a que foi submetido. Tentam inspirar horror pela revolução, como um acto bárbaro que teria vindo interromper a “normalidade”, quando na realidade ela pôs termo a uma situação intolerável para a grande maioria. Em matéria de revoluções, a burguesia só gosta de revoluções derrotadas; estaria hoje pronta a reconhecer grandeza aos bolcheviques se eles se tivessem deixado massacrar como os mártires da Comuna de Paris.
Nesta época de crise, de corrida ao domínio do mundo e de novas guerras coloniais camufladas em “operações de pacificação”, quer-se apagar da consciência dos operários e dos “escravos coloniais” o papel emancipador da Revolução Russa. Apelida-se de “fanatismo” e “irracionalidade” a abnegação revolucionária, a fim de inculcar como “normal” a alienação individualista e a submissão acéfala à ordem burguesa.
Quer-se negar o direito à palavra aos comunistas implicando-os como corresponsáveis nas repressões em massa do chamado “socialismo real”. É uma dupla mistificação.
Em primeiro lugar, a ditadura do partido-estado, na Rússia, China, etc., nunca teve nada a ver com o socialismo nem com a “utopia comunista”; foi o desenlace inevitável de revoluções populares que deitaram abaixo a velha sociedade mas não dispunham de base económico-social para ultrapassar a etapa capitalista. O Partido bolchevique de 1940 não é o de 1917, o regime “soviético” nada tem a ver com os verdadeiros sovietes da revolução. Se a burocracia utilizou a teminologia marxista e a aparente continuidade com o período revolucionário foi porque esse era um instrumento privilegiado para obter a submissão do proletariado no interior e a simpatia do proletariado no exterior.
Pela sua parte, apoiando o campo “socialista” enquanto ele foi um factor de desestabilização e de crise do imperialismo, o proletariado internacional seguiu uma táctica justa, embora estivesse iludido quanto à natureza desses regimes. Não tem de que pedir desculpa por ter lutado contra a sua própria burguesia e por ter confrontado o capitalismo com a aspiração ao socialismo.
Assimila-se o stalinismo ao nazismo para contrapor essas duas “variantes simétricas do totalitarismo” à virtuosa democracia.
A verdade é que, em matéria de ditaduras e massacres, as democracias capitalistas não ficam atrás do “totalitarismo comunista”. A diferença está em que este último exerceu a tirania sobretudo no seu território enquanto as democracias a exportaram (e continuam a exportar) para as regiões submetidas. Coreia, Vietname, Argélia, Indonésia, África negra, América Latina, dão testemunho, só no último meio século, do que vale o “reinado da liberdade”. Quanto aos méritos do imenso matadouro da segunda guerra mundial podem ser repartidos por igual entre o nazismo e as democracias.
A campanha que visa atribuir às ditaduras pseudo-socialistas do Leste as mesmas manifestações bestiais de reacção que exibiu o nazismo, pretende tudo menos a verdade histórica; quer que se condene a origem popular desses regimes, os vestígios das suas criações avançadas, a ausência neles de uma classe capitalista organizada, o empecilho que representaram para o imperialismo. Quer impor a ditadura capitalista como o único regime aceitável.
Ao excomungar mais uma vez os “crimes do comunismo”, o pensamento burguês pretende proibir a violência revolucionária e acenar com a miragem das reformas quando se torna evidente que os destinos da sociedade são governados pela reprodução cega e automática do capital, insusceptível de reforma. A burguesia nega, hoje como no passado, legitimidade à luta de classes, quer santificar a propriedade privada (a que chama “fonte da liberdade”!) e afirma grotescamente que a sua eliminação como classe seria um acto de “genocídio”, semelhante à supressão de uma nacionalidade ou de uma raça.
Em nome da defesa intransigente da “liberdade económica e política” quer garantir o triunfo final da barbárie capitalista sobre o planeta e proscrever o direito à revolução. Mas não poderá impedir que a grande maioria condenada à não existência redescubra no comunismo a perspectiva de uma sociedade à medida dos seres humanos.
A propósito do clamor de aplauso que se levantou em França em torno do “Livro negro do comunismo”, o escritor Gilles Perrault traçou no Monde Diplomatique de Dezembro um primeiro esboço do “Livro negro da França”:
“Passados tantos anos, os números são aproximados e dão apenas uma ordem de grandeza. Para a repressão de Sétif (Argélia) em 1945, os cálculos vão de 6.000 a 45.000 mortos. Em 1947, em Madagáscar, terá havido 80.000 vítimas. Na Indochina, entre 1946 e 1954, os números variam conforme as fontes, de 800.000 a 2 milhões de mortos. Na Argélia (1954-62), de 300.000 a 1 milhão. Mesmo sem tomar em conta as repressões na Tunísia e em Marrocos, mesmo abstendo-nos de evocar as responsabilidades francesas em catástrofes mais recentes, como o genocídio no Ruanda, esta contabilidade sinistra atesta que a França ocupa o pelotão da frente entre os países massacradores da segunda metade do século. E tem demonstrado tal obstinação que um observador externo poderia concluir que o crime é parte integrante do regime político em vigor.”
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Inclusão | 10/06/2018 |