O Erro de Lenine

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 1997


Primeira Edição: Política Operária nº 58, Jan-Fev 1997

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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O tema do imperialismo tem estado ultimamente em debate nas páginas desta revista, através da polémica entre Manuel Raposo e Ângelo Novo sobre a guerra na Jugoslávia e do diálogo travado entre Ângelo Novo e Claude Bitot em torno do “balanço do século”. E uma dúvida tem vindo à baila: corre-se o risco de adulterar o marxismo exagerando o papel do imperialismo e das disputas interimperialistas neste fim de século?

A dúvida, só por si, parece bizarra, tão desbragada é a orgia do capital financeiro pelos quatro cantos do mundo, ameaçando arrastar-nos para o cataclismo global. Algum motivo tem que existir, todavia, para um pensador de boa cepa marxista como C. Bitot se sentir na obrigação de desmistificar toda uma mitologia anti-imperialista em que teríamos andado atas- cados ao longo do século.

As previsões de Lenine não se confirmaram; as de Marx, sim. Esta amarga constatação impele Bitot a pôr em causa mesmo as noções mais óbvias acerca do imperialismo. Observando que “Marx nunca construiu uma teoria do imperialismo, estádio supremo do capitalismo”, parte daí para uma desmontagem em forma do leninismo. A revolução russa foi um “acto voluntarista”, um golpe de sorte e mais valia que tivesse sido liquidada à nascença para não dar o espectáculo que deu. As guerras mundiais não se deveram à partilha do mundo entre grupos financeiros; foram uma guerra civil burguesa entre os portadores do progresso capitalista e os do retrocesso. O fascismo não foi a ditadura terrorista do capital financeiro mas um movimento arcaico e reaccionário, uma espécie de anticapitalismo de direita. Por fim, o imperialismo é um fenómeno do passado, quando a acumulação primitiva do capital exigia conquistas territoriais; hoje, ao contrário do que disse Lenine, “chegado a um estádio superior, o capitalismo desembaraça-se da sua faceta imperialista”.

Em resumo: atravessámos um século de crescimento prodigioso do capitalismo, em luta com as forças da reacção, e nem demos por isso, cegos que estávamos pelas teses do iluminado Lenine sobre a “agonia” do capitalismo, “prelúdio necessário à revolução social do proletariado”.

Crescimento ou Agonia?

O imperialismo acabou? Se o tomarmos na acepção que lhe dá Bitot, de conquista e subjugação de outros territórios, teríamos que concordar que ele correspondeu a uma fase ultrapassada. Simplesmente, Lenine rejeitou essa interpretação restritiva (que era a de Kautski) e sublinhou as características peculiares do imperialismo capitalista: a exportação de capitais, a partilha e repartilha dos mercados e fontes de matérias-primas entre os gigantes financeiros, o abismo crescente entre metrópoles e colónias, as guerras mundiais, as revoluções.

Com isto, não abandonou o modelo marxista de acumulação do capital, como parece supor Bitot, mas justamente esboçou a sua aplicação à escala mundial. Porque este século trouxe algo que Marx não conheceu: o entrechocar brutal das grandes formações capitalistas, disputando ferozmente a presa, cada uma em busca de vantagens na rentabilização do capital que lhe permitam abater o rival. Pelo facto de este “filme de terror” não constar de O Capital deveremos reprová-lo como não marxista?

Lenine teve o mérito de divisar que a dominação do capital financeiro, traço característico do imperialismo, não atenua mas aprofunda a desigualdade dos ritmos de crescimento e as contradições da economia mundial, as quais só se podem resolver pela força; que a forma de existência dos impérios rivais é a partilha e repartilha constantes das suas esferas de influência; e que a exploração de um número crescente de nações débeis por um punhado de nações riquíssimas e poderosas caracteriza o imperialismo como capitalismo parasitário ou em estado de putrefacção.

É certo que o imperialismo não funcionou como Lenine previra. Proletariado e povos oprimidos, em vez de juntarem forças, somaram fraquezas. Ao fim de três quartos de século em que tudo foi avaliado em termos do “avanço do socialismo e do movimento de libertação nacional” e do “declínio irreversível do capitalismo”, a proclamada revolução proletária foi digerida, tal como as revoluções nacionais, por esse capitalismo que Lenine dava como agonizante e reencontrámo-nos face a face com o velho processo descrito por Marx. É o que leva Bitot a pôr de lado o próprio conceito de imperialismo. Não o acompanhando tão longe, A. Novo concorda todavia que o imperialismo “não é nenhum estádio supremo do capitalismo” e que a teoria leninista do imperialismo está “obsoleta”.

É contudo precipitado deduzir que, se Lenine se enganou quanto à viabilidade do poder soviético na Rússia e à iminência da revolução socialista na Europa e da derrocada geral do sistema, logo, toda a sua teoria sobre o imperialismo como derradeira fase do capitalismo estava errada.

Lenine enganou-se, claro está, ao sobrestimar a aceleração da história induzida pela era imperialista; julgou ver condensado numa dúzia de anos um processo que precisa afinal dum largo período histórico para se desenrolar. Mas este é um erro de perspectiva normal para quem vive épocas de mutação. Com Marx aconteceu o mesmo quando tentou prever os desenvolvimentos do capitalismo.

O caso é que, subsistindo mais do que o inicialmente previsto, este não deixa de ser um “capitalismo de transição”, “agonizante”, e isto porque as relações de propriedade privada constituem um invólucro que já não corresponde ao conteúdo socializado da produção, o que dá origem a um crescendo de convulsões económicas e sociais. Esta contradição entre propriedade cada vez mais concentrada e produção cada vez mais socializada, que assume na nossa época proporções vertiginosas, é que fundamenta a definição do imperialismo como o fim da história do capitalismo, como a forma específica que assume a sua agonia.

Sem dúvida, vitórias, não faltam ao capitalismo. Porém, cada progresso vitorioso multiplica os factores de crise, acarreta convulsões mais vastas, acentua a inviabilidade do sistema. Lenine estava já consciente disso quando escreveu no Imperialismo que o crescimento do capitalismo é muito mais rápido do que no passado, mas é um crescimento que acentua a desigualdade e a decomposição.

Sem esta perspectiva geral, como apreender o nexo lógico do tumulto deste século, desde o ascenso dos fascismos à guerra da Jugoslávia e ao genocídio do Ruanda? Se, em nome de uma ilusória pureza teórica, abstrairmos da agonia do sistema, corremos o risco de deixar escapar as linhas de força dos acontecimentos e não perceber em que sentido evoluem.

Puterefação

 Segunda tese de Bitot: o socialismo que esperámos em vão nos fosse trazido pelas revoluções anti-imperialistas radicais da Rússia, China, etc., está agora realmente próximo devido ao esgotamento irremediável do ciclo de reprodução do capital. Marx volta a ter razão contra Lenine.

Aqui vem a propósito o livro de Lenine sobre o imperialismo, quanto mais não seja por ter passado agora o 80º aniversário da sua publicação. Rejeitado em absoluto por Bitot, tratado condescendentemente por Novo como “obra de circunstância, escassamente original”, a sua releitura, e muito em especial a dos capítulos finais, talvez proporcione algumas reflexões úteis a marxistas distraídos.

É que, erigido pelo “comunismo” reformista em livro de cabeceira, remastigadas quase religiosamente, décadas a fio, as passagens referentes ao capital financeiro, à exportação de capitais e à partilha das colónias (o que, de resto, já outros tinham dito, como o próprio Lenine sublinhou), esses aspectos incontestáveis foram usados para fazer esquecer aquilo que nele era inovador: a advertência de que a estrutura social dos centros capitalistas começava a sofrer deformações não previstas por Marx, e isto devido ao “parasitismo” e à “putrefacção” imperialistas.

Apesar da “extrema prudência” (é ele que o dirá mais tarde) com que as formulou para o livro passar na censura czarista, a clarividência dessas notas é flagrante:

Claro, isto hoje nem sequer é muito impressionante. Poderíamos acrescentar-lhe a “terciarização”, a exportação do proletariado, o apodrecimento do regime parlamentar, a alienação de massa, a repressão selectiva… Mas tudo isto significa que as metrópoles imperialistas, embora tendo atingido o máximo desenvolvimento do capitalismo, e precisamente por isso mesmo, como que se detêm no umbral do socialismo. O parasitismo imperialista deformou toda a sua estrutura social, bloqueando nelas o amadurecimento de crises revolucionárias, que, teoricamente, já deveriam ter-se manifestado.

A confirmá-lo, se necessário fosse, a decomposição política, ideológica, moral do movimento sindical, socialista e “comunista” nesses países. Não apenas pela corrupção dos partidos e chefes mas porque, privado de perspectivas de derrubar a burguesia, o proletariado perde o rumo de uma política independente; passa a agir no quadro da ordem e conforma-se a acatar a direcção da pequena burguesia, esse diligente capataz político do capital.

Naturalmente, todos fazemos votos por que se confirme o optimismo de Bitot ao prever a passagem ao socialismo, a prazo relativamente curto, das arrogantes metrópoles imperialistas que hoje governam o mundo. Mas temos que admitir como mais provável que a agonia prossiga por mais algumas décadas, envenenando a atmosfera mundial… até uma viragem por enquanto difícil de prever.

Novo Ciclo

Creio não falsear o pensamento de Bitot (e em certa medida também de Novo) ao resumi-lo como um convite a despertarmos do sonho de emancipação pelas revoluções “terceiro-mundistas” e a procurarmos os anúncios do socialismo lá onde o sistema atingiu o seu máximo avanço; seria um retorno a Marx depois de quase um século de ilusões frustradas em Lenine. Dá a sensação de que vêem os povos das regiões periféricas como comparsas, atrasados na história, de alguma forma negligenciáveis.

À primeira vista, parece difícil dizer algo em abono das revoluções anti-imperialistas, tão mal vistas nesta nossa Europa depois do descalabro ignominioso da União Soviética e da China e da domesticação do movimento de libertação nacional. É tão amargo o desgosto de Bitot com o descrédito trazido ao marxismo pela mentira desse capitalismo de fachada socialista, opressor e obscurantista, que não hesita em formular o voto, paradoxal num revolucionário, de que “o melhor que lhe poderia acontecer [à revolução russa] seria ser liquidada por uma contra- revolução franca e aberta”. (Posso compreendê-lo como uma força de expressão, não para tomar à letra; enquanto o “campo socialista” foi um factor de crise e instabilidade para o imperialismo – até aos anos 50 – não restou aos revolucionários outra alternativa senão apoiá-lo; estava aí apesar de tudo a única esperança de novas e mais vastas rupturas na cadeia imperialista).

Por grande que seja a desilusão, convém “não torcer a vara para o lado oposto”. Reconheçamos que essas revoluções populares, operário-camponesas, de cunho antifeudal, democrático, nacional – isto é, burguesas, embora de denominação socialista – constituíram a primeira vaga de assalto à ordem imperialista, deixaram uma marca poderosa na história deste século e representaram afinal, apesar do declínio sombrio em que se afundaram, a única herança positiva que nos fica para fazer face ao futuro.

Um ciclo terminou, outro começa. Não, obviamente, como repetição melhorada do anterior mas com características imprevisíveis, ditadas pelo nível inaudito de concentração do capital e pelo abismo entre as classes e as nações. Porém, seja o que for que traga de novo, é ainda lá, do atrasado terceiro mundo, que surgem os sintomas de convulsões revolucionárias, lá onde o imperialismo bloqueia e distorce o processo de acumulação do capital, criando estrangulamentos explosivos (e não são ilhas como Singapura ou Taiwan que provam o contrário). Perante a omissão da burguesia nacional vendida, os operários e camponeses estão a ser mais uma vez projectados para a busca do comando das revoluções nacionais, em que se entrelaçam cada vez mais exigentes aspirações socialistas. Irão ao encontro de novos fracassos, de novas imitações de socialismo? É possível, mas decerto tornarão mais insustentável a sobrevivência dos centros do poder mundial e criarão condições para melhores tentativas futuras. Talvez, no fim de contas, Lenine não se tenha enganado tanto como se pensa e a “revolução mundial do proletariado” se contenha nesta sucessão de aproximações que já preencheram um século e se preparam para ocupar outro.

Saibamos nós, os escassos comunistas que tentam  reorganizar-se nesta fortaleza Europa, ter presente que as lutas diárias de resistência ao capital só ganharão poder ofensivo se associadas à oposição intransigente às agressões brutais e ferozes perpetradas pelos nossos governos “democráticos” contra os povos da Ásia, África e América Latina e à solidariedade activa com as suas lutas. A experiência já mostrou que, esquecido da aliança com os povos oprimidos, deixado só face a face com o inimigo, o movimento operário europeu pende irresistivelmente para o regateio de benefícios à custa das colónias e, no fim de contas, para o acordo social-democrata com a sua própria burguesia.


Inclusão 02/10/2018