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Primeira Edição: Política Operária nº 32, Nov-Dez 1991
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Do leitor Helder Lima Santos, de Espinho, recebi uma “Carta aberta”. Transcrevo-a quase na íntegra. Descontente com o balanço da revolução russa feito há um ano nesta revista (no artigo “Resposta aos comunistas americanos”), H.L.S. aponta como “uma das maiores limitações dessa análise o ter passado como gato sobre brasas pela questão essencial que é a Democracia… durante a construção da sociedade socialista”. O artigo foi apenas, em sua opinião, uma “tentativa desatempada” para revigorar ideias que já fizeram a sua época, uma “variação do canto do cisne do marxismo-leninismo”.
Hoje, após os acontecimentos de Agosto em Moscovo, parece-lhe irrefutável estarmos perante “não apenas a queda de um projecto e de um modelo, mas também de todo um ideário, um estandarte, uma utopia… pretensamente legitimada com uma aura de cientificidade”. “É tempo — aconselha-me — de pôr as suas ideias em dia. Por mais medo que possa ter de cair presa das ideologias burguesas; por mais riscos que corra de ‘fazer o jogo do imperialismo americano’ ou dos seus rivais ou concorrentes. E é mais do que tempo de se deixar de longos percursos retrospectivos porque, se não, acabará por morrer sem ter tempo para chegar sequer a meio do balanço crítico (que há uns anos atrás valia a pena ter feito) do leninismo e dos seus males ou limitações de raiz”.
“Também é mais que tempo para (re)pensar aquilo que é hoje a classe operária, a sua composição e homogeneidade, a sua consciência e visão do mundo, o seu ‘messiânico’ papel de libertadora, a sua vontade, ou alegado projecto, de tomar o aparelho de Estado, ou ainda a magna questão de saber o que fazer depois com ele”. (…). E interroga: “Porquanto tempo mais irá o meu amigo continuar a não querer relacionar a causa do(s) fracasso(s) do movimento comunista com o ideário político em nome do qual se construiu todo um edifício que ruiu? Por quantos anos ainda irão certos marxistas-leninistas continuar a esgrimir contra o ‘espírito do mal’ que se terá apossado sucessivamente das mentes de todos os dirigentes comunistas?… Que alibis mais, para esses ‘grandes teóricos e educadores’ continuarem a fumar o seu ópio ideológico? Melhor fariam se aceitassem o repto do sábio Popper e deitassem cá para fora das suas cabeçorras (se calhar bem metafísicas, no fim de contas) as condições ou pressupostos de validade que o sistema.
Apesar da vulgaridade dos argumentos e dum tom que roça a grosseria, pareceu-me que esta carta não deveria ficar sem referência. Ela é um bom exemplo da campanha com que nós, comunistas, somos agora importunados a cada esquina: “Então quando é que vocês se deixam dessas aberrações revolucionárias e reconhecem que a escolha é só entre democracia e totalitarismo?” Campanha geralmente animada por uns cidadãos que até há pouco viviam “fascinados” pelo marxismo e agora, para se fazerem perdoar desse pecado, se mostram os mais zelosos na recuperação dos incréus. Não sei se é este o caso de H.L.S: Se não é, parece muito.
De que nos acusam? De resistirmos a reconhecer que a fraude do “socialismo” da União Soviética derivou do “ideário marxista”, que o totalitarismo começou em 17, que Staline se limitou a realizar o projecto de Lenine, que o mal veio de raiz…
De facto, não estamos dispostos a “reconhecer” tal absurdo.
Entre o governo revolucionário dos sovietes e a estagnada tirania burocrática que agora se desmorona medeia um abismo — social, político, cultural, ideológico — que só não notam os trogloditas professores de sociologia e os seus discípulos. Para esses, é realmente difícil distinguir Brejnev de Lenine: ambos eram péssimos porque negavam liberdade de iniciativa ao capital privado… Fora disso, não percebem que a ordem social dos produtores é inversa da dos exploradores, que a URSS “socialista” foi edificada sobre os escombros da Rússia dos conselhos operários e camponeses, que a prostituição actual, longe de condenar Outubro, mais o eleva.
Francamente, virem pedir-nos contas ou dar-nos lições pelo que acontece na União Soviética, a nós que temos vindo a descrever a génese desse capitalismo de Estado e que previmos a sua inevitável passagem ao capitalismo privado, é caricato.
Tivemos razão, porque haveríamos de pedir desculpa? Os “comunistas” cor-de-rosa é que andam por aí a choramingar as suas crises de consciência por não saberem explicar para onde se evaporou o seu “poderoso campo socialista” dos aparatchiks e o seu soporífero “marxismo-leninismo”. Apertem com esses, vão ver que os recuperam como bons cidadãos. Connosco, não vale a pena.
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Mas aí atiram-nos à cabeça um outro argumento, ao que parece, esmagador: nós insistimos em defender o regime instaurado em 1917, a tal negregada ditadura do proletariado, que “nunca passou duma ditadura”.
Será que começam por fim a ter umas luzes de marxismo? Era de facto uma ditadura. E tão ditatorial que aboliu os direitos da propriedade e da herança, rasgou os tratados assinados entre as potências, apelou à rebeldia dos oprimidos por cima das fronteiras, criou comunas do trabalho, sujeitou os cargos públicos a eleição e revogação, proclamou o princípio, terrorista entre todos: “Quem não trabalha não come”.
Que atraso, na verdade, ao pé da Democracia popperiana, que garante por lei a todos os cidadãos igual direito a abrir bancos e a fundar empresas, deixando a cada um a liberdade de escolher se prefere ser capitalista ou assalariado!
Ah, mas era totalitária esta ditadura do proletariado! E porquê? Porque reconheceu a liberdade de palavra, de reunião, de imprensa, de partidos, a todos os que acatassem a democracia socialista? Ou talvez porque baniu a servidão da mulher e promoveu a alfabetização dos camponeses? Ou porque inspirou o nascimento de uma arte e uma cultura de vanguarda? Ou porque levantou centenas de milhões de oprimidos pelo mundo fora, numa ânsia de libertação até aí julgada impossível?
Nos escassos meses em que conseguiu manter-se, antes de ser asfixiada pela santa aliança dos burgueses de todo o mundo, essa ditadura esboçou em traços arrojados uma organização social para seres humanos. Explicam-nos agora que era uma “utopia pseudocientífica”. Naturalmente! A grande descoberta, passada de boca em boca neste fim de século, é que só a exploração do trabalho assalariado, o nacionalismo, a guerra e a estupidez industrializada, são “científicas” e conformes à “natureza humana”. Chama-se a isto “pôr as ideias em dia”…
Pois deveríamos dar a mão à palmatória da vossa Democracia, nós que hoje vemos confirmado da maneira mais flagrante o diagnóstico de Marx — a farsa da “vontade popular”, do “Estado de Direito” e da “igualdade de oportunidades” entre os assalariados e os seus parasitas? Com que autoridade vêm vender-nos a vossa banha de cobra democrática no meio desta selva governada por tigres, desta piolheira gerida por imbecis, gatunos e criminosos?
Querem julgar-nos como antidemocratas? Somos nós que vos pedimos contas!
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Mas que se lhe há-de fazer? Os nossos críticos estão traumatizados. Sentem-se vítimas dum logro. De tudo o que lhes tinham prometido, tudo falhou: o campo socialista poderoso, a classe operária salvadora, a revolução com uma boa vida para as classes médias.
E então, com uma lógica enternecedora, voltam-se para a burguesia! Não lhes dá para dizerem: “O capitalismo não pára de devorar gente. É escusado querer domesticá-lo. Já que falhou a primeira tentativa para o abater, preparemos melhor a próxima caçada”. Não! Viram-se do avesso, num espectáculo deprimente: “A culpa foi de Lenine, viva Kautsky! A culpa foi dos comunistas, viva a democracia! A culpa foi da Rússia, viva a América! A culpa foi dos operários, viva a livre iniciativa!”
Pode explicar-se uma tal cambalhota à retaguarda só por desorientação? Não creio. Este vigor nas exortações (ou intimações?) para que renunciemos ao marxismo tem muito que se lhe diga. Há aqui um reflexo que não é apenas individual; é de classe. A burguesia precisa de acreditar que o pesadelo da revolução se desvaneceu no ar; não suporta a ideia de que alguém o queira despertar de novo. Agora, que a URSS já amaldiçoou Outubro, parece-lhe intolerável que se continue a falar em proletariado, revolução, comunismo.
Decididamente, o espírito da “nova ordem” não se dá bem com o marxismo. Esperem só pela primeira agitação operária e vão ver os nossos professores de democracia a reclamar um correctivo aos vermelhos.
Inclusão | 10/06/2018 |