Cunhal às Voltas com o 25 de Novembro

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1990


Primeira Edição: Política Operária nº 72, Nov-Dez 1990

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Parece ter passado despercebido o facto insólito de Álvaro Cunhal, no seu último livro, reivindicar para o PCP o papel de aliado dos militares golpistas no 25 de Novembro. Reivindicação decerto chocante para muitos mas que, para nós, testemunha o desabar do escalavrado edifício ideológico da “revolução democrática e nacional”.

O livro A verdade e a mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), Ed. Avante, Lisboa, 1999) faz uma recapitulação do envolvimento de altas personalidades da Democracia nos golpes, conspirações e entendimentos com a CIA que se sucederam ao 25 de Abril. Spínola, sobretudo (ainda seria preciso?), mas também Freitas do Amaral, Sá Carneiro. Mário Soares… até figuras de ‘esquerda'” do PS, como Manuel Alegre. Recapitulação útil mas que não traz novidades e, além do mais, é tardia; teria outro valor há um quarto de século, na altura em que poderia ter eficácia.

O verdadeiro sumo do livro está porém na interpretação que Cunhal constrói para o episódio do 25 de Novembro. Pondo termo à especulação que ainda hoje incomoda muitos dos membros do PCP — qual foi exactamente o alinhamento do partido perante o 25 de Novembro? —, Cunhal escreve, preto no branco, que o desenlace do golpe militar “resultou da aliança, não negociada, não debatida, não acordada, não explicitada, mas aliança com o PCP (…) de chefes das Forças Armadas, defensores da continuação das liberdades e da democracia política.” (p. 228). Desta aliança Eanes—Cunhal por intermédio de Melo Antunes (ele não cita os nomes mas todos sabem que eram estes) teria resultado precisamente a parte boa do 25 de Novembro: a salvaguarda as liberdades e da democracia”, “a formação de um governo em que continuou o PCP” (“com um ministro e seis secretários de Estado, sublinha, ufano) e “a aprovação e promulgação da Constituição”.

Quem foi então derrotado nessa ocasião? Cunhal não tem dúvida: a “saída política do 25 de Novembro” terá sido “a derrota dos objectivos e o relativo isolamento no imediato da extrema direita, com a formação de um governo com participação comunista” (p. 261). E não só: também o PS foi derrotado! “No 25 de Novembro, Soares, de companhia com a extrema direita, sofreu séria derrota política”, por não ver concretizados os seus planos para uma sublevação no Norte que marcharia sobre a Comuna de Lisboa”, “o PS, no 25 de Novembro, acabou por ficar de fora (pp. 228-229).

Visivelmente, Cunhal não se apercebe do escabroso que tem esta declaração de que foi alvado do golpe militar que sufocou o nuovimento popular meteu os militares progressistas na cadeia e deu início â restauração dai ordem burguesa. Nem se apercebe do absurdo de dar o PS como derrotado pelo golpe quando foi o seu principal inspirador e beneficiário. Nem do ridículo de contar entre as “vitórias” obtidas a promulgação da Constituição, quando todos sabem hoje que ela nunca passou de um chamariz para aquietar os autos, de um pedaço de papel para ir rasgando aos poucos. Nem do contra-senso de querer ver a extrema-direita derrotada quando, precisamente após o golpe, ela se lançou numa campanha de terror e retaliação contra a esquerda. Pouco falta para nos dizer que o 25 de Novembro foi a reposição do verdadeiro espírito do 25 de Abril…

Mas esta é a tese que Cunhal encontra para explicar o estranho fenómeno de terem sido os próprios golpistas a reclamar a permanência do PCP no governo e nas instituições. Ele não pode admitir a simples verdade: o PCP foi amparado pelos eanistas e conservou a legalidade e os seus lugares no governo como refém, para garantir que seguraria as massas trabalhadoras durante o período de transição em que a direita se dedicou a “pôr a casa em ordem”.

E como refém se comportou ao longo de todos esses anos em que foram liquidadas a Reforma Agrária, as comissões de trabalhadores e moradores, regressaram Spínola e os fascistas a lugares de topo, etc.; como todos na esquerda puderam observar, o PCP condicionou a resistência proletária e popular ao compromisso que assumira com os militares novembristas. O PCP não foi “aliado” dos eanistas; foi um prisioneiro bem comportado.

Cunhal procura justificar essa capitulação (que começou, ele mesmo o diz, em Agosto de 75, através de um apelo do Comité Central) com dois argumentos: primeiro, o partido desejava resistir mas nada pode fazer face à indecisão e dispersão da esquerda militar, que a tornavam incapaz de se opor aos golpistas; segundo, o perigo de um golpe terrorista que estaria para sair do Norte, e que seria a aposta preferencial de Mário Soares e de Carlucci. Mas estes argumentos não passam de uma má desculpa.

Indiscutivelmente, ao iniciar-se o “Verão quente” o campo popular e a chamada esquerda militar já estavam em dificuldades para fazer frente aos golpistas, o que era devido às concessões e compromissos que vinham de trás – e nesse capítulo ninguém teve mais responsabilidades do que o PCP; justamente as “acusações irresponsáveis” que Cunhal se queixa de terem sido feitas pelos “esquerdistas” eram alertas para o desastre que se estava a preparar, desde Maio de 74, à força de querer aplacar a direita. Mas, mesmo nessa situação de desvantagem a que se chegara no “Verão quente”, uma política frontal de oposição ao golpe e de verdadeira unidade popular, e não de namoro a  Costa Gomes e ao Grupo dos Nove poderia ter travado a marcha da conspiração. Não foi isso que se fez e, de cedência em cedência, os chefes do PC chegaram a Novembro com uma preocupação obsessiva: sair da inextricável bagunça do PREC para conseguir, sem que fosse à custa de um golpe da direita “moderada”, um regime de normalidade constitucional.     

Quanto à ameaça de golpe terrorista e de guerra civil por que teria optado a dupla Carlucci—Soares, os factos mostraram que não se tratava de um outro golpe mas de uma peça do mesmo plano. O facto de Soares se ter refugiado no Porto na véspera do 25 de Novembro, junto de Pires Veloso não prova que houvesse um segundo golpe independente do primeiro, mas apenas que Soares entrou em pânico. A aposta central do imperialismo foi sempre no núcleo forte dos militares de direita, o grupo dos Nove, onde se concentravam, com o conhecimento de todos, postos de comando da conspiração. Os bandos fascistas que queimavam sedes e punham bombas desempenhavam a sua missão clássica de pontas de lança: cabia-lhes a função de semear no espírito da esquerda e das massas (e da direcção do PCP!) a disposição ara ceder aos militares, aos verdadeiros promotores do golpe. Isto é tão elementar na história dos golpes de direita que não se pode admitir que Cunhal não o entenda.

Para resumir, diremos que há algo de indecente nesta tentativa de Cunhal para branquear o 25 de Novembro a fim de ilibar o colaboracionismo do PCP com os golpistas. O 25 de Novembro não foi um “mal menor” nem ressalvou “conquistas” (a Constituição! o PCP no governo!). A viragem contra-revolucionária não começou depois, como pretende Cunhal; foi detonada no próprio dia 25 de Novembro e o PCP acolheu-se sob a sua asa protectora.

Apertado pelo juízo histórico que, pouco a pouco, se vai formando em torno dos acontecimentos, Cunhal acaba por revelar a inconsistência do plano que elaborou, vai para 40 anos, com vista à instauração em Portugal de uma “democracia nacional, rumo ao socialismo”. Com a sua nova tese sobre o 25 de Novembro confirma involuntariamente aquilo que há 35 anos escrevemos, e que ele tem a falta de discernimento de citar neste livro como mais uma calúnia “esquerdista” (p. 64): a chamada “revolução democrática e nacional” mais não foi, por parte do PCP, do que “a teoria e a prática da passagem de Portugal dum capitalismo antiquado a um capitalismo moderno”. Ainda há quem tenha dúvidas, à vista do que aí está?

De qualquer maneira, os esforços de Cunhal para manter a flutuar os seus princípios programáticos não vão ter muita importância na marcha futura do PCP. Os tempos são outros; passou o tempo da luta árdua pela “conquista da democracia”, que foi a alma do pensamento cunhalista; do que se trata agora é de “participar na gestão da democracia” e aí toda a nova geração dos quadros do partido está de acordo em considerar as fórmulas de Cunhal rígidas e insatisfatórias. Muitos dos seus mais destacados companheiros, cansados de uma “oposição estéril”, anseiam por pôr à prova as suas capacidades governativas e parlamentares, como fizeram Pina Moura, Zita Seabra, José Magalhães, José Luís Judas, Osvaldo de Castro…

Não contestado frontalmente, pelo peso que tem na história do partido, nem por isso Cunhal pode travar a diluição da sua imagem de “monstro sagrado”: a vida não perdoa e a autoridade política que lhe permitia pôr em sentido os “renovadores” dentro do partido desmoronou-se inapelavelmente – com o fiasco da “revolução democrática e nacional” e, mais ainda, com o colapso do “campo socialista”, como um saco vazio.


Inclusão 02/10/2018