MIA> Biblioteca> Francisco Martins Rodrigues > Novidades
Primeira Edição: Política Operária nº 21, Set-Out 1989
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Pouco ou nenhum entusiasmo despertou entre as forças de esquerda o 40.° aniversário da vitória da revolução chinesa. O descalabro do maoísmo foi tão estrondoso que hoje ninguém dá nada pelas ideias políticas de Mao, nem pela revolução que ele dirigiu. Por nós, somos críticos do maoísmo mas não concordamos com esta atitude que acaba por deitar para o lixo as experiências duma revolução gigantesca que mudou a face do mundo.
Já não é a primeira vez que em nome da crítica a etapas ultrapassadas do movimento revolucionário se regride para posições mais recuadas. E, de facto, muitos dos que há vinte anos papagueavam a cartilha maoísta, superam hoje Mao pela direita.
Há um género de crítica “marxista” particularmente estúpida e pretensiosa: é aquela que se lança a descobrir em todo o passado de Mao os sintomas do que depois viria a suceder, numa espécie de pesquisa aos germes da doença. Em vez de se analisar simultaneamente a revolução como obra de Mao e Mao como produto da revolução, procuram-se culpas para provar que tudo estava errado desde o princípio…
Diz-se e escreve-se hoje, por exemplo, que a teoria da guerra prolongada seria uma invenção antimarxista de Mao; que Mao conduziu a luta armada “duma forma burocrática, que a via leninista da revolução de Outubro seria a única correcta; etc. Esta crítica põe tudo de pernas para o ar: o génio de Mao como chefe revolucionário consistiu precisamente em não ter tentado copiar a revolução russa (como outros fizeram, com trágicos resultados) e ter ousado elaborar a estratégia da guerra prolongada a partir das insurreições camponesas que sacudiam a China. Que era esse o caminho viável (naquele país, naquela correlação de forças de classe) ficou demonstrado pelos acontecimentos. Discutir ainda hoje se a guerra prolongada, a Longa Marcha, as bases revolucionárias, o cerco das cidades pelos campos, foram ou não correctos é caricato.
Alegam alguns dos críticos, porém, que, ao adoptar a estratégia da guerra camponesa, Mao comprometeu a hegemonia operária, a única que asseguraria o desenvolvimento vitorioso da revolução na China. Esta crítica não é menos absurda que a anterior. Porque pressupõe que a “linha proletária” consistiria em sacrificar a revolução nacional camponesa que amadurecera na China e que esperava ser feita. Se os comunistas chineses se tivessem dedicado a fazer trabalho clandestino e sindical nas cidades, como queria Liu Chao-chi, as insurreições camponesas teriam sido massacradas e a revolução popular chinesa simplesmente não teria existido.
A História provou que a revolução conduzida pelo PC da China roubou ao imperialismo (temporariamente, é certo) um quarto da humanidade, desencadeou uma explosão de forças produtivas e levou a civilização moderna aos confins da Ásia. Só reaccionários podem condenar Mao por isto.
Como se explica então o descalabro tão trágico dos últimos vinte anos? Nós vemos a fonte desse descalabro no fôlego económico-social da própria revolução chinesa, que era curto. Uma vez concluídas as tarefas nacionais burguesas da revolução, a burguesia era segregada por todos os poros da sociedade e aspirava ao poder. Derrotá-la numa nova batalha dependia do apoio do proletariado mundial, que não existiu. O que existiu (como algumas décadas antes acontecera com a URSS) foi um cerco implacável destinado a fazer emergir as forças mais retrógradas, o que de facto aconteceu. A partir daí, a continuidade da revolução estava condenada, a passagem à etapa socialista ficava bloqueada.
O próprio impasse em que se debatia a revolução era a fonte donde brotavam os erros dos seus dirigentes. E, ao contrário do que se disse, os erros de Mao foram sobretudo de natureza conciliadora perante a burguesia e não tanto aventureiros. Para nós está hoje claro que a teoria maoísta da Democracia Nova e da aliança das quatro classes foi uma adaptação-deturpação do marxismo, tentando cobrir a revolução burguesa com as cores da revolução proletária, o que iria afastá-lo cada vez mais do marxismo.
Procurando respostas novas perante a derrapagem já então evidente da União Soviética, Mao introduziu inovações sobre a edificação da sociedade “socialista” que foram, duma forma geral, tentativas falhadas de corrigir a experiência da URSS num sentido mais moderado e gradualista. Foi o caso da condução da reforma agrária, da associação dos capitalistas à gestão das empresas estatais, da recuperação dos inimigos, da tolerância de grupos dentro do partido, da “justa solução das contradições no seio do povo” e das “cem flores”.
Mao lançou também inovações de outra natureza. Com as comunas populares, o grande salto em frente e a revolução cultural, ele tentou fazer correcções à experiência russa num sentido inverso, mais radical. E foram essas experiências, particularmente a última, que acabaram por revelar a fragilidade interna do “socialismo” chinês, tão assente no capitalismo estatal como o da URSS. Alguma razão tinham os revisionistas soviéticos quando avisavam que os “esquerdismos” de Mao trariam desgraças…
Quando as massas operárias proclamaram a comuna de Changai, Mao perdeu os restos da sua velha ousadia revolucionária, já vacilante. Voltou o exército contra a corrente de esquerda que se levantava, acelerando a perda das conquistas revolucionárias e o triunfo fulminante da ala burguesa de Deng.
As responsabilidades de Mao perante a revolução chinesa (tal como as de Staline perante a revolução russa) são pesadas. Mas isto não nos leva a misturar a avaliação dessas responsabilidades com a infantil negação dos seus méritos na fase revolucionária da sua vida; muito menos com a estúpida negação de uma das mais gigantescas revoluções de todos os tempos.
Inclusão | 02/10/2018 |