Novas Lições da Revolução Russa
(Elementos para uma plataforma comunista)
(III)

Francisco Martins Rodrigues

Julho de 1989


Primeira Edição: publicado no Tribuna Comunista, boletim interno da Organização Comunista Política Operária, nº 15 de Julho de 1989 (inédito)

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Staline

38. Andámos a defender Staline como o líder do proletariado mundial, não podemos agora escondê-lo debaixo do tapete. A desculpa de que Staline se limitou a ser o intérprete de determinadas condicões históricas é uma escapatória tão anti-marxista como a dos que atribuem o sentido da história ao livre arbítrio de indivíduos. É uma espécie de ‘culto da antipersonalidade’.

Não vamos fugir à discussão de Staline a coberto da sociologia. As ideias, os escritos, a personalidade de Staline, têm que ser apreciados porque apresentam de forma concentrada uma dinâmica e uma lógica de classe, são a documentação viva da agonia da ditadura do proletariado e do ascenso do regime capitalista de Estado na URSS. É tempo de iniciar o estudo sistemático das obras de Staline.

39. A corrente MI, pró-albanesa diz (de forma cada vez menos convicta, é verdade) que a questão do stalinismo é uma invenção da burguesia adoptada e relançada pelos revisionistas; o ‘stalinismo’ seria apenas marxismo-leninismo.

Que lhes faça bom proveito. É o mesmo que condenarem-se à esterilidade. Mas num aspecto têm razão: as correcções a Staline dão sistematicamente passagem a raciocínios oportunistas e ao espírito de colaboração de classes (Mao é um caso clássico) e o anti-stalinismo continua a ser uma fonte do reaccionarismo mais boçal. Uma crítica pela esquerda a Staline não é para todos. E isto já nos diz alguma coisa sobre o lugar que ocupou na história do movimento operário, primeiro, e do movimento burguês anti-imperialista, depois.

40. Staline acreditava estar a fortalecer a ditadura do proletariado, Julgava sinceramente seguir o caminho de Lenine, adequando-o a condições novas; nunca pensou em renegar o leninismo”, etc. É um tipo de argumento que devemos pôr de lado porque só confunde.

As convicções subjectivas dos dirigentes políticos não servem de critério para aferir o seu papel na luta de classes. O que é objectivo é que Staline, ao procurar ser fiel ao leninismo numa situação nova, activou a consolidação das novas relações sociais geradas pelo capitalismo de Estado. Como representante duma nova classe exploradora — duma classe cuja existência era oculta pela função de ‘vanguarda do proletariado revolucionário’ — não podia aperceber-se da natureza social do seu poder. Nós é que já não temos desculpa para continuar a envolvê-lo em véus justificadores.

41. A embrulhada posição chinesa sobre ‘os erros de Staline’ não assentava em quaisquer princípios. Pretendia avalizar Staline como marxista e dirigente do proletariado revolucionário, sabendo-se que ele liderou o processo em que a sociedade soviética mudou de cor.

Não se pode apreciar a ideologia e a política de Staline como um corpo invariável; o Staline do começo dos anos 20 é um chefe revolucionário e um leninista de mérito; o Staline dos anos 30 e 40 já representa a nova classe burguesa emergente na URSS e já não pode raciocinar em termos marxistas porque funda o seu poder sobre a opressão e exploração do proletariado.

Staline não cometeu erros; fez a transição de chefe do proletariado para chefe da burguesia de Estado, do comunismo para o revisionismo. Os seus chamados erros foram a política necessária da instauração do capitalismo de Estado na URSS.

42. Veja-se por exemplo as Questões do leninismo de Staline, que formaram o pensamento de gerações de comunistas. Renegadas pelos revisionistas, que precisam de pedir desculpa aos sucessores de Bukarine, Zinoviev, Trotski, elas continuam a ser defendidas pela corrente ML como uma obra clássica no combate ao oportunismo.

Para nós, desde logo, é inaceitável que uma obra percorrida pela atmosfera de coacção já imperante no partido possa em caso nenhum ser uma escola de marxismo. Isto deve ser dito, porque durante muito tempo esse género de polémica com adversários amordaçados foi tido como modelo do ‘marxismo-leninismo’.

Mas o mais significativo é a sua tendência para absolutizar e simplificar as noções de Lenine. Staline tinha um fraco pelos esquemas nítidos de estratégia e de táctica, que são, de resto, a parte mais fraca dos seus ensaios (a etapa da revolução. a mobilização das reservas, a direcção do golpe principal…).

Essa visão da luta política como uma sucessão de campanhas militares e a crença de que, em última análise, a luta revolucionária se resume a uma questão de táctica (porque a teoria já nos foi legada pelos clássicos…) definem Staline como um chefe burguês, o primeiro que iria fundar a sua acção no marxismo-ieninismo…

43. O mais revelador em Staline é talvez a sua nova concepção do Partido, exposta nas Questões do leninismo: a unidade de acção terá que ser “completa e absoluta”; o fraccionismo, banido pelo X Congresso, nunca mais pode ser admitido; os oportunistas não têm de ser vencidos pela luta ideológica (essa uma ideia “podre”) mas expulsos.

Estão aqui retratados os tempos novos que faziam ascender Staline; os tempos em que os comunistas se encontravam com a responsabilidade, não de dirigir a luta revolucionária das massas, mas de fazer a revolução, e em que o partido ‘comunista’ sofria uma mudança de qualidade, passando a uma espécie de estado-maior militar.

 O social-imperialismo

44. Começando pela tese de que o revisionismo eia fruto da infiltração de oportunistas na direcção do PCUS, o PC chinês e o PTA em breve concluíram que o problema era muito mais grave: a ruptura era irreparável, a URSS um Estado capitalista e o PCUS um partido burguês, “de tipo fascista”.

Mas o radicalismo desta segunda tese suscitava tanto» problemas como o ‘reformismo’ da primeira. A sociedade soviética não parecia enquadrar-se nem na categoria duma ditadura do proletariado nem da duma ditadura da burguesia.

Assim, depois de ter tentado, em vão, demonstrar que a apropriação privada e o lucro privado caracterizavam a economia da União Soviética, o PC da China e alguns dos seus seguidores puseram em curso a teoria do capitalismo de Estado como um regime em que a classe burguesa exercia a apropriação colectivamente e o capitalismo entrara numa etapa superior, funcionando sem concorrência e sem mercado. Disse-se que Marx e Engels tinham admitido este tipo de capitalismo estatal centralizado. E deduziu-se que ela era um inimigo mais temível da revolução do que o capitalismo clássico, por assentar na planificação e na fusão do poder económico, político e financeiro.

45. A experiência histórica demonstrou o infundado desta hipótese. O capitalismo de Estado (na URSS como na China, Hungria, Albânia, Cuba, Vietname, etc.) revela-se como uma formação transitória que existe apenas enquanto a sociedade percorre o caminho da ditadura do proletariado abortada até à restauração plena da ditadura da burguesia. Torna-se claro que as originalidades do regime soviético, que pareciam excluí-lo tanto do capitalismo como do socialismo, eram apenas a lenta formação da nova classe capitalista da URSS, que agora entra na fase final da gestação.

A vida demonstra que as leis marxistas do capital continuam a vigorar para além das aparentes excepções. A revisão maoísta do marxismo estava errada. O capitalismo de Estado não é um terceiro regime; é a ponte entre os dois únicos regimes do nosso tempo. Não é uma variante; é um período de transição.

46. Donde vinha a aparência de força do capitalismo de Estado? Regime de transição, frágil e instável, ele defendia a sua identidade envolvendo-se na couraça do monolitismo que lhe dava uma aparência ilusória de estabilidade, mas que só teve como resultado o amadurecimento subterrâneo dos conflitos de classe que agora explodem por todos os lados.

Com a cegueira de todas as classes exploradoras, a burguesia burocrática de Estado, embora condenada a desaparecer uma vez cumprida a sua missão de liquidatária da revolução falida, defende a sua existência. A sua natureza social obriga-a a travar uma luta permanente um duas frentes, contra o proletariado, que empurra sempre mais para baixo, para o seu lugar de fornecedor de mais-valia, e contra a burguesia ascendente, em que vê uma ameaça mortal à sua existência, mas pela qual vai sendo corroída, penetrada e assimilada., na medida que as relações capitalistas ocupam o lugar que lhes é cedido pela falência da economia capitalista estatizada.

47. Por ter tardado a compreender o carácter transitório do capitalismo de Estado e a sua marcha em direcção ao capitalismo puro e simples, a corrente ML incapacitou-se para o combater.

A importância desta questão não é meramente teórica. Ela teve um alcance político arrasador para a corrente ML, na medida em que a levou a dividir entre dois inimigos principais o fogo que devia continuar a ser concentrado no sistema capitalista. A luta dos comunistas contra o capitalismo de Estado, em vez de ser conduzida como uma parte da luta geral e invariável contra a burguesia. Tornou-se um derivativo, uma segunda frente.

A chamada luta contra o revisionismo, em que a corrente ML esteve permanentemente envolvida, nunca obteve vitórias significativas junto do movimento operário porque aparecia aos olhos dos trabalhadores como ambígua, como uma diversão na luta contra o capitalismo.

E o pior é que o movimento marxista-leninista cometeu graves erros políticos, apoiando objectivamente em muitas circunstâncias a pressão imperialista para acelerar a restauração burguesa, sob a bandeira da luta contra o totalitarismo, pelos ‘direitos humanos’, pelo apoio ao Solidarnosc, etc.

48. A tese dum capitalismo diferente conduziu à tese dum imperialismo também fora de série, que não assentava em grupos financeiros, nem na exportação de capitais, mas que era, apesar disso, tão expansionista e agressivo como o imperialismo americano. A denominação de ‘social-imperialismo’, recolhida em Lenine (que a usara numa acepção muito diferente) pretendeu simultaneamente fazer crer que se tinham em conta as originalidades deste imperialismo e que se tratava duma ‘aplicação criadora’ do leninismo.

Deste modo, depois de ter revisto a noção marxista de capitalismo, a corrente ML teve também que rever a noção leninista de imperialismo. Os resultados políticos foram ainda mais desastrosos do que no primeiro caso: os ML seguidores do maoísmo fizeram coro com o imperialismo em inúmeras questões internacionais e com isto liquidaram-se como corrente revolucionária. Não podemos progredir sem darmos o balanço, que até hoje evitámos, ao que foi o alinhamento internacional da corrente ML.

É claro que havia quem sentisse o perigo de cair na situação de reserva do imperialismo. Foi o que levou o PTA à versão mais cautelosa e mitigada dos “dois imperialismos iguais”. Mas esta precaução centrista inseria-se na mesma lógica desesperada: se não se atacasse o regime soviético como imperialista e fascista, abriam-se as portas à conciliação com ele.

49. Este dilema só parecia insolúvel porque não se queria admitir que um capitalismo embrionário deveria dar lugar, num país militar e economicamente poderoso como a URSS, a um imperialismo também embrionário, mas sem nenhumas condições para competir com as reais potências imperialistas.

As ambições expansionistas e hegemónicas que marcaram a política externa soviética sob a direcção Brejnev nos anos 60-70, pretendendo enfrentar os EUA taco-a-taco, esgotaram os recursos do regime e confirmaram a impotência total das amplas alianças de ‘forças da paz e da democracia’ para deter o imperialismo. Nenhuma outra força além da revolução proletária poderá destruir o imperialismo.

50. Com a nova etapa de integração plena dos regimes de capitalismo de Estado no mercado capitalista mundial entram em bancarrota as correntes que nas últimas décadas falavam em nome do marxismo. Revisionistas, stalinistas, maoístas, trotskistas debatem-se em contradições insolúveis à medida que as suas teorias caem pela base. E, embora o processo da sua decomposição se arraste provavelmente por vários anos, é inevitável.

Cabe-nos acelerar essa decomposição, alargando o espaço da crítica marxista-leninista a essas correntes. Que os revisionistas se vejam hoje obrigados a aplaudir a visita de Bush à Polónia, onde vai investir capitais para a reconstituição do sector privado (e lamentem apenas que o investimento não seja mais generoso…); que os stalinistas façam o papel de múmias, recusando tomar conhecimento da transformação burguesa da URSS nos anos 30 para não abalar a sua idolatria de Staline; que os maoístas vejam as suas revoluções ‘socialistas’ camponesas afirmar-se como revoluções burguesas; que os trotskistas apoiem com alvoroço cada avanço da liberalização burguesa no Leste como um progresso da ‘democracia socialista’ e caiam no ridículo ao saudar os movimentos democrático-burgueses, que aceleram a restauração capitalista, como ‘revoluções políticas’ a caminho do socialismo — tudo isto deve ser posto por nós em evidência para mostrar a falência destas correntes.

O ciclo

51. Com todo o seu cortejo de desculpas, a corrente ML tenta fugir a esta simples verdade: a sucessão e a interconexão evidente dos desastres na URSS, China, Europa de Leste, Vietname, etc., não se explica por erros, nem por conjunturas desfavoráveis, nem por traições, nem por azares; indica a acção duma lei do movimento histórico.

Toda uma série de revoluções proletárias em países atrasados conseguiram impor a sua existência face aos assaltos do imperialismo mas falharam na tentativa de passar ao socialismo e foram reabsorvidas através duma arrastada agonia em capitalismo de Estado. Se observarmos em acelerado o filme dos acontecimentos que têm passado ao retardador diante dos nossos olhos nas últimas décadas, o sentido do movimento torna-se perfeitamente evidente.

52. As condições em que se malograram as revoluções proletárias deste século são variáveis mas inserem-se numa condição geral: o proletariado em países que entraram atrasados na passagem ao capitalismo consegue explorar em seu proveito, devido à sua organização superior, a revolução camponesa para se elevar ao poder; contudo, a ausência de condições económicas para o socialismo e o carácter objectivamente burguês da revolução obrigam-no a deitar mão ao capitalismo de Estado e, neste processo, a transferir o controle do poder para uma burocracia que entrega os restos da resolução à burguesia. Assim, desde 1917, abriu-se, espraiou-se e por fim encerrou-se um ciclo da revolução proletaria mundial.

53. Mas admitir o fim dum ciclo não é dar armas à propaganda do imperialismo sobre o fim da revolução?, perguntam angustiadas as boas almas. Pelo contrário. Reconhecer o fim dum ciclo da revolução é abrir os olhos para os sinais do novo ciclo que se prepara e cujas características devemos apressar-nos a compreender.

É claro que neste vazio entre o ciclo que terminou e o que se esboça há lugar para uma grande dissolução do pensamento revolucionário, para uma enorme expansão da ideologia reaccionária, que decreta a “morte dos mitos igualitários” e se lança à redescoberta dos valores eternos da Revolução Francesa. A massa, essa, vai à deriva das breves explosões de revolta e das longas resignações.

Mas é precisamente agora que os revolucionários devem aproveitar para fazer o balanço, o mais exacto possível, do que deve ser rejeitado e do que continua válido na experiência que findou.

54. Que modelo de revolução foi esse que se esgotou? É preciso dizê-lo sem rodeios: foi o modelo da aliança operário-camponesa. Durante 50 anos, a condução dum campesinato gigante por um proletariado pigmeu tornou-se de tal forma a lei dos países onde havia revoluções chefiadas pelos comunistas que perdemos a noção do que havia de anormal e de contingente nesta combinação.

O que se passou na União Soviética foi que a revolução operária pôde triunfar porque soube arrastar atrás de si, armar, organizar, uma revolução camponesa antifeudal. A revolução operária, apontada para o socialismo, pondo ao seu serviço a revolução camponesa apontada para o capitalismo — foi esta a singularidade de 1917, própria desta época em que as revoluções burguesas retardatárias começam a ser atropeladas pelas primeiras revoluções proletárias.

Na China, no Vietnam, etc., a combinação ainda foi mais caprichosa, porque o proletariado, para ganhar a hegemonia na tempestade revolucionária que se desencadeava. teve que assumir não só as reivindicações das massas camponesas mas as reivindicações nacionalistas de toda a pequena burguesia, dando à revolução uma envergadura social ainda mais vasta mas também um cunho mais híbrido.

55. O esquema funciona enquanto se trata da luta pelo poder e no período imediato, de reformas democráticas. Mas a desproporção entre a força do proletariado e a das massas pequeno-burguesas é tal que em breve a revolução operária é submergida pela revolução burguesa que pretendia rebocar como sua reserva. A revolução proletária começa por trepar às costas da revolução burguesa, mas esta desforra-se e acaba por levar a melhor.

E isto porque, ao satisfazer as reivindicações pequeno-burguesas dá-se fôlego à sua luta contra o socialismo. Não é pelo facto de ter recebido a terra, a liberdade, uma vida melhor, da mão do proletariado que a pequena burguesia pode mudar de natureza. Se alguém contava com o efeito da persuasão e dos valores morais, teve que se desenganar.

Naturalmente, a única hipótese revolucionária viável era essa mesma. Mas o que interessa registar é que a ambição de conseguir, por um movimento ininterrupto, fazer engrenar a revolução socialista na revolução democrática malogrou-se em todos os casos, por insuficiência da forca do proletariado para remodelar, pela sua iniciativa total (política, económica, ideológica), as massas pequeno-burguesas arrastando-as a caminho do socialismo.

56. Em todos os casos, chega o momento em que a conjunção de interesses entre operários e camponeses cessa de se verificar. A revolução divide-se em dois ramos divergentes, embora ainda não antagónicos: um operário, o outro pequeno-burguês. E embora o movimento operário disponha da superioridade de organização política e da nacionalização da grande indústria, ele é economicamente mais fraco do que o oceano da pequena economia agrícola, comercial, artesanal. Acresce que a pressão do imperialismo circundante ajuda por todos os meios a burguesia a sufocar a revolução proletária.

Nesta luta desigual, estão criadas todas as condições para que o partido operário, que subiu ao poder graças à revolução, procure compensar a desvantagem económica com a vantagem política reforçando o aparelho de Estado, segregando uma enorme burocracia como seu agente, representante e substituto nas tarefas de administração e coerção.

A partir daí, estão reunidas as condições para este aparelho burocrático governante ser penetrado, subornado, remodelado, assalariado pela economia capitalista, que se reproduz imparavelmente, primeiro sob o disfarce estatal ‘socialista’, depois cada vez mais às claras.

57. Podia ter sido salva a revolução russa com uma outra política por parte do partido? Não podia, porque a ditadura do proletariado na Rússia, cercada, atacada e desorganizada pelo imperialismo, tolhida internamente pela massa imensa da pequena produção, não dispunha de forças próprias para romper, estava reduzida a ganhar tempo e a agonizar se não surgisse uma outra revolução em seu socorro.

Quer isto dizer que somos deterministas, que negamos a possibilidade de opção? Não; havia opções mas o socialismo estava fora das opções possíveis nesse momento. Durante as lutas internas de 1923-1928, a alternativa jogava-se entre reforçar o capitalismo de Estado ou restabelecer a economia de mercado, como as duas únicas hipóteses viáveis de ‘edificação do socialismo’. Não houve aí lugar para qualquer plataforma comunista (ainda que evidentemente houvesse muitos alertas lúcidos no que diziam os diversos contendores), porque não existiam premissas para avançar para o socialismo. A ausência de uma linha comunista nas facções em luta serve de contraprova histórica a este facto — a revolução russa estava condenada.

58. Até hoje, as pretensas vias novas para o socialismo (chinesa, vietnamita, cubana…) não fizeram mais do que baralhar o dilema que a revolução russa revelara em toda a nitidez: se o proletariado não consegue exercer a ditadura, como arrastar a pequena burguesia para o socialismo?

As ‘inovações criadoras’ de Mao sobre a edificação do socialismo — ditadura democrática popular, caminhar sobre as duas pernas, comunas populares, solução das contradições no seio do povo, revoluções culturais — foram em grande medida combinações eclécticas da linha stalinista com a linha bukarinista, porque não havia muito mais para intentar nessa questão.

O que o maoísmo trouxe de novo foi ter sabido tirar partido da energia dos camponeses pobres e dum sistema muito flexível de suborno da pequena burguesia e mesmo da burguesia nacional ‘patriótica’. O consenso social assim obtido (sobretudo porque o proletariado não se fazia notar) foi a fonte do breve esplendor da China Popular. Mas também, a reacção burguesa foi aí mais fulminante que na União Soviética, onde as forças vivas do capitalismo tinham sofrido golpes devastadores.

Quanto às inovações de Ho Chi Min, Castro, Guevara, ainda menos acrescentam à questão em jogo, que é simplesmente a da hegemonia (impossível) do proletariado.

59. Se dizemos que a revolução russa não podia triunfar porque era, como a Comuna de Paris, obra dum proletariado ‘lançado ao assalto ao céu’, dizem-nos que isto equivale a condenar a iniciativa do partido bolchevique na conquista do poder, a considerar que Lenine teria sido afinal ‘vanguardista’ e ‘blanquista’, como o acusava Kautski, etc.

É um ponto de vista também ele herdado do stalinismo, esse de ver a revolução como o produto da vontade dos revolucionários e não como uma força da natureza, uma vaga de massas que tem que se espraiar e onde o papel dos revolucionários é essencial, sim, mas para procurar tirar o máximo partido das suas potencialidades, não para decidir se vai haver revolução ou não…

A revolução russa de 1917 foi o acontecimento mais avançado da história da humanidade, a condução dos acontecimentos por Lenine e pelo partido bolchevique foi modelar, toda a história dos nossos dias é condicionada pelas suas conquistas, as suas lições permanecem válidas — mas esta revolução estava historicamente condenada à derrota.

Os comunistas da época não podiam sabê-lo. Sabiam que o seu dever de revolucionários era levar a revolução o mais longe possível, na esperança de que factores imponderáveis (uma resposta revolucionária da Alemanha, por exemplo) desencadeassem uma cadeia ininterrupta de revoluções.

Fim do texto publicado no Tribuna Comunista, boletim interno da Organização Comunista Política Operária, nº 15 de Julho de 1989 (inédito)

Leia a primeira parte

Leia a segunda parte


Inclusão 05/07/2018