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Primeira Edição: Política Operária nº 8, Jan-Fev 1987
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Mais do que duvidosa a autenticidade deste “diário político” de Hoxha (“LAS SUPERPOTÊNCIAS. 1959-1984. (Extractos del diário político)”. Enver Hoxha. Tirana, 1986). Tal como nas “Reflexões sobre a China” e noutras memórias recentemente publicadas, procura-se demonstrar a perspicácia infalível do falecido dirigente albanês, o que obriga a evidentes arranjos no texto original.
Arranjos por vezes caricatos, como a supressão do nome de Mehmet Shehu, cujo posto de lugar-tenente fiel é agora tomado por Ramiz Alia. Arranjos outras vezes descuidados, como o que põe Hoxha a descobrir, já em 1959, que Kruchov “urdeplanos horrendos”acerca da Albânia (pág. 10), mas, apesar disso, a referir-se meses mais tarde, como se nada fosse, a encontros de trabalho com o mesmo Kruchov “e outros camaradas soviéticos” (pág. 15). Arranjos intrigantes, por fim, quando não se encontra uma palavra acerca da anteriormente alegada conspiração do embaixador soviético Ivanov para derrubar o regime albanês.
É pois muito limitado o valor histórico que se pode atribuir a esta edição retocada (em muitos pontos talvez forjada) das notas de Hoxha. Trata-se de material ideológico de consumo, produzido pela actual direcção albanesa para legitimar a sua autoridade interna e junto da cambaleante corrente marxista-leninista. Resta o seu significado político, e esse não é de desprezar.
A política externa albanesa costuma ser citada, a Ocidente e a Leste, como sinónimo de um stalinismo obstinado e obtuso, único no mundo actual. Há nesta estranheza um elogio involuntário à teimosa independência de que têm dado provas os dirigentes albaneses ao longo de circunstâncias muito difíceis.
As notas de Hoxha contêm muitos testemunhos indiscutíveis dessa independência que permitiu à Albânia manter-se à margem dos blocos, denunciar na ONU as manigâncias da diplomacia secreta e a grande mentira do “desanuviamento”, boicotar a Conferência de Segurança Europeia de Helsínquia, etc. Hoxha capta com agudeza as contradições da política soviética na Europa oriental, mostra como a URSS sacrificou em 1970 os interesses da RDA para satisfazer Bonn, põe a nu as pressões para arrastar o Vietname a um compromisso na guerra com os EUA, a farsa do “não-alinhamento” jugoslavo, etc.
Mas a lógica anti-imperialista de Hoxha tem tanto de radical como de acanhada. Revela uma estreiteza de vistas sobre a luta de classes internacional que não abona em nada o “prisma marxista-leninista” de que se julga detentor.
Estreiteza de vistas particularmente chocante no que se refere à degenerescência da União Soviética e do movimento comunista, que é o tema quase exclusivo do volume, apesar do seu título.
Que Hoxha em 1960 ainda atribuísse a viragem do 20.° Congresso a manobras pouco ortodoxas de uma equipa incapaz, é um erro de perspectiva que não surpreende. Todos os comunistas foram colhidos de supresa pelos novos ventos de Moscovo e não foi fácil compreender que a mudança de política era o produto necessário de novas relações sociais.
Mas já é muito sintomático que nos anos seguintes, com a nova situação perfeitamente delineada, o dirigente albanês ainda continuasse a depositar “confiança nos bolcheviques da União Soviética” (pág. 64), continuasse convicto de que os partidos comunistas só não se desligavam da União Soviética por “ainda não saberem” quem era Kruchov, e, mesmo em 1968, ainda esperasse pelo “levantamento dos marxistas-leninistas revolucionários checos” contra a ocupação soviética (pág. 226).
Durante a primeira metade da década de 60, Hoxha lutou na esperança de que em breve se faria no movimento comunista “a luz da verdade” acerca de Kruchov. E mesmo depois de se lhe desvanecerem as ilusões num sobressalto regenerador dos comunistas da velha cepa, continuou a não entender o revisionismo moderno como ideologia de uma classe.
Para ele, a URSS caiu depois da morte de Staline “nas mãos de bandidos sem escrúpulos” (pág. 49), cuja traição “arrastou consigo a degeneração moral, política, ideológica e a das estruturas” (pág. 266-267). O quadro aparecia-lhe de pernas para o ar: não foi a constituição gradual de uma nova burguesia, durante o auge do “socialismo” stalinista que elevou ao topo do Estado os seus representantes; foi a infiltração sub-reptícia de um punhado de traidores que fez degenerar toda a sociedade soviética e, atrás dela, todo o movimento comunista!
Esta grosseira visão antimarxista não se deve só à deficiente formação dialéctica de Hoxha. Ela era-lhe necessária para não pôr em causa o período de Staline. Staline “foi e continua sendo um glorioso leninista, independentemente de algum pequeno erro que tenha cometido” (pág. 123). O socialismo e o poder soviético estariam florescentes até 1953. Inclusive, não passariam de lendas “o pretenso terror, cadeias e campos do tempo de Staline” (pág. 294).
O stalinismo não podia ser posto em questão porque era o próprio alicerce das ideias políticas de Enver Hoxha. Como chefe e ideólogo de um poder de transição semelhante ao de Staline, Hoxha era de facto a pessoa pior colocada para explicar a génese social do revisionismo moderno: não podia entender o que se passara na URSS porque isso o forçaria a criticar os fundamentos do seu próprio regime.
Daí que a crítica apaixonada de Hoxha aos “traidores”, com toda a sua retórica de princípios, tenha sido incapaz de armar a classe operária do Leste para a luta contra a nova escravidão assalariada. Era guiada pela perspectiva, não de uma ruptura revolucionária, mas do retorno a uma etapa ultrapassada, que só a Albânia ainda percorre: o equilíbrio operário-pequeno-burguês mantido ferreamente pelo aparelho burocrático de Estado em nome da ditadura do proletariado.
Esse cordão umbilical que une o “verdadeiro socialismo” de Hoxha aos seus irmãos mais velhos degenerados patenteia-se com crueza na apreciação que faz das greves polacas de 1980. Para o dirigente albanês, trata-se de um movimento “ao serviço da reacção”, de “grevistas contra-revolucionários” (pág. 589). Não apenas pelas conhecidas ligações das cúpulas do Solidarnosc ao Vaticano e à CIA, mas porque a exigência de sindicatos livres e a rebeldia dos operários contra o aparelho do partido, mesmo que esse partido seja tão podre como é o POUP, lhe surge como um ultraje insuportável. Vê-se bem quais eram os seus receios profundos…
Esta ideia de que a União Soviética caiu nas mãos de “chacais pérfidos” que se dedicam a “manobras diabólicas” falseia necessariamente todo o quadro das relações entre as duas superpotências. Hoxha volta durante anos, uma e outra vez, à versão que lhe parece mais lógica: Kruchov é um “aliado e agente dos americanos” (pág. 103); EUA e URSS combinam de mútuo acordo o papel a desempenhar por cada um nos assuntos internacionais (págs. 170, 180-181); a camarilha kruchovista é uma “poderosa agência de espionagem” ao serviço do capitalismo mundial (pág. 267).
A ânsia por desmascarar os “traidores” encapotados leva-o por vezes a forçar a nota para além de todo o senso. Os russos fornecem ao Vietname “armas sabotadas que não funcionam“ (pág. 133). E se a Roménia se finge de independente é porque recebeu uma “tarefa especial” na estratégia do Kremlin, motivo por que “está autorizada a dar coices no patrão” (pág. 403).
Como se compreende, esta redução da política soviética a um enredo de espionagem não podia durar sempre. A partir de 1968, com a invasão da Checoslováquia, e sobretudo depois que a China passa a denunciar a URSS como “um novo nazismo”, Hoxha oscila nas suas convicções simplistas. Não acompanha os chineses na suspeita promoção da URSS a “inimigo mais perigoso dos povos” mas vê-a como um imperialismo “novo, pujante, agressivo” (pág. 459), cujos mecanismos seriam decalcados pelos dos EUA: conquista de mercados, exportação de capitais, guerras de rapina. Continua a escapar-lhe a dinâmica própria e a raiz das contradições em que se enreda o social-imperialismo, porque receia abordar a questão explosiva — a base social dos regimes de Leste.
Ao mesmo tempo, a tese de que a revolução marcha de vento em popa.
1965: “Tudo marcha a favor do marxismo-leninismo, da revolução, do socialismo e do comunismo” (pág. 167).
1966: “Os povos verão cada vez mais claro o perigo desta traição [revisionista] e lançar-se-ão na revolução. Essa será a luta final” (pág. 184).
1968: “A situação mundial evolui sempre a favor da libertação dos povos, a favor da revolução” (pág. 237).
1980: “Acentua-se continuamente o enfraquecimento das duas superpotências, estranguladas pela luta revolucionária dos povos” (pág. 542).
Este optimismo empedernido, que todos os que passaram pela chamada corrente M-L bem conhecem, será para muitos a prova da confiança inabalável de Hoxha na revolução. Parece-nos, pelo contrário, o traço mais típico do seu idealismo popular-democrático-nacional de fundo pequeno-burguês.
De facto, para Hoxha, o fio condutor da política mundial não está na luta entre proletariado e burguesia mas na “defesa pelos povos dos seus interesses nacionais supremos face à ameaça das duas superpotências”. Esta é a ideia a que volta constantemente ao longo do volume. O próprio socialismo seria, ele também, um derivado natural dessa luta pela independência: “Os povos querem a democracia e a soberania e marchar na via do socialismo” (pág. 484).
Hoxha nunca foi capaz de reconhecer que o movimento anti-imperialista se desdobra em componentes antagónicas: a luta tortuosa e vacilante das burguesias patrióticas, que querem dispor do seu mercado nacional e explorar o seu próprio proletariado e campesinato; e a luta, ainda embrionária, dos proletários e semiproletários contra a exploração capitalista externa e interna.
Esse novelo de contradições transforma-se na sua pena numa homogénea luta nacional anti-imperialista. Assim, a propósito da Unidade Popular no Chile, em que não tem uma palavra de crítica para o suicida reformismo allendista (págs. 366-370). É a velha ilusão de que, minimizando as lutas no seio do “povo”, se obtêm uma força maior contra o inimigo comum.
E como este mito popular não pode manter-se estático, ele começa a evoluir, na última fase da vida do dirigente albanês, para o apoio à componente mais activa do povo — a burguesia nacionalista. A partir de 1980, Hoxha abre fogo contra
“esses autodenominados marxistas-leninistas que acham que não se deve classificar como patriota o povo afegão e os elementos da média burguesia e mesmo da grande burguesia que lutam contra os ocupantes soviéticos… Não vêem os aspectos anti-imperialistas da luta dos povos árabes, do povo iraniano. do mundo muçulmano… Exigir que estes povos em revolução abandonem. da noite para o dia, as suas crenças religiosas, usos e costumes, demonstra imaturidade” (págs. 568-569).
Como temos verificado, estas “crenças, usos e costumes”, ao descerem à terra, tomam a forma dos Khomeini, dos coronéis turcos e outras personagens sinistras, promovidas pelo PTA a heróis anti-imperialistas. Em nome da defesa da revolução anti-imperialista, Hoxha defende já abertamente a hegemonia burguesa no movimento e exige que se cale toda a crítica aos seus aspectos reaccionários. Para os operários, o papel de força de choque:
“A classe operária, mesmo que não consiga afirmar as suas posições dirigentes, deve estar na vanguarda da luta e dos sacrifícios” (pág. 571).
Eis um preceito “marxista-leninista” que não hesitarão em subscrever os patriotas burgueses de todo o mundo…
A perspectiva popular-democrática-nacional da luta de classes arrastou assim Enver Hoxha, apesar de todo o seu radicalismo, para o nacionalismo burguês puro e simples. Falta só mais um passo para a ideologia hoxhiana desabrochar numa nova variante do revisionismo. É esse passo que estão em vias de dar os novos dirigentes albaneses.
Inclusão | 02/10/2018 |