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EU NÃO ESTIVE no Rossio a festejar a vitória democrática de Mário Soares. Sou talvez pessimista mas achei alguma coisa de fúnebre em toda aquela alegria popular. Afinal, o povo foi regozijar-se por ter conseguido pôr na presidência o político que mais bofetadas lhe deu na última década.
Ou será que Soares não foi o inspirador obstinado do 25 de Novembro, o inimigo frio dos direitos operários, o desmantelador da reforma agrária, o agente dos capitalistas, o aliado do CDS e do PSD, o grande corruptor, o comissário subserviente do FMI, da CEE e da NATO? Sim, ele foi tudo isso mas mesmo assim teve honras de herói do povo.
Dir-me-ão que na vitória de Soares os trabalhadores celebraram sobretudo a derrota do Freitas tenebroso. Mas esse é que é o problema! Para o Freitas não passar, tivemos que ficar calados quando os pobres ingénuos gritavam “Soares é fixe”; fizemos causa comum com os dirigentes de “esquerda” (!) da UGT; compartilhámos a alegria da vitória com o Carlucci, o Spínola, o Barreto e o Gama, mafiosos mas, pelos vistos, amigos da Democracia. Para a direita não passar tivemos que chafurdar na nossa própria degradação.
Os entendidos na política não vêem nisto nada de dramático: face ao mal maior, opta-se pelo mal menor. Simples questão de realismo. O pior é que, com tanto realismo, já ninguém sabe onde acaba a esquerda e começa a direita.
E não me venham com a história de que foi só um voto útil, sem ilusões. Soares ficou a partir de agora investido na missão de protector da democracia. É ver os rapapés que já lhe faz o Cunhal, o tal que prometia que a luta contra ele ia continuar no dia seguinte ao voto. É ver o PS a receber paternalmente o PCP, o MDP e os outros. É ver a saudação respeitosa e eufórica da UDP. É ver a convergência dos intelectuais ex-esquerdistas, subitamente despertados do seu torpor e das suas angústias pelo novo ideal social-democrático-liberal-atlantista-europeu.
Não nos iludamos. O voto da esquerda em Soares não foi uma manobra táctica. Foi uma capitulação. Um voto independente contra Freitas só era possível se a esquerda tivesse uma identidade própria, um projecto, um combate seu a continuar para além das eleições. Ora, isso é o que não há. Tácticas temos nós a dar com um pau. Projecto, objectivo, programa que é deles?
Por fraqueza, cobardia, conformismo, pusemo-nos nas mãos de um inimigo que se vai dar ao luxo de fazer o que quiser agora que renovou o penacho de pai da democracia. “A maioria que me elegeu, esclarece ele, esgotou-se no acto da eleição”. Que é como quem diz: não contem comigo. Votaram porque quiseram.
Ou eu me engano muito ou com esta vitória estrondosa vamos ficar ainda mais incapazes de resistir à ofensiva capitalista que continua, mais divididos e confusos, mais resignados a todos os atropelos, mais dispostos a descobrir virtudes no primeiro parlapatão que apareça a oferecer-se como o mal menor.
Contra a onda direitista ameaçadora que se levantou em torno de Freitas do Amaral é precisa uma resposta de esquerda. Que não tem nada a ver com o pântano que aí está. A dinâmica “democrática” destas eleições que tanto alegra os papalvos só vai servir para daqui amanhã nos encontrarmos unidos atrás do Freitas para salvar a legalidade contra um qualquer fascista furioso.
Acham que é anedota? Então deixem-se ir!
Inclusão | 28/12/2016 |