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Primeira Edição: Política Operária nº 1 e 2, 1985, Caderno PO n.º 6
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
É impossível aprender seja o que for do Verão de 1975 se não se puser no centro da análise a oposição de interesses entre o proletariado e a pequena burguesia “revolucionária”. Isto parece insuportavelmente “sectário”. No entanto, o êxito demasiado fácil do 25 de Novembro obriga a examinar com mais atenção a política seguida pelo PCP, pela ala esquerda do MFA e pelos grupos da “esquerda revolucionária”.
Por uma série de abalos em cadeia, o projecto regenerador e ordeiro do movimento dos capitães fora-se desmoronando. Num ano, a vaga das ocupações, saneamentos, manifestações e greves tornara o país irreconhecível. Era uma vaga pacífica, que vitoriava inebriada o MFA, mas que galgava mesmo assim todos os diques. A bela revolução dos cravos descambava em pesadelo para os amantes da ordem.
No Verão, a “originalidade da via portuguesa para o socialismo” atingia o limite extremo. Coexistiam em fantástico equilíbrio ocupações maciças de terras e leis anti-greve; sequestros de patrões e convites ao investimento; órgãos de “poder popular” e declarações de fidelidade à NATO. O país parecia encaminhar-se para uma situação de duplo poder e para um confronto revolucionário.
Seis meses mais tarde, tudo estava terminado e a burguesia felicitava-se por ter dominado a “ameaça totalitária” sem efusão de sangue. O que se passou afinal nesses seis meses para tornar possível uma tal reviravolta? Ou, em termos mais gerais: como pôde o proletariado português, mantido em menoridade por meio século de circunspecta oposição democrática ao fascismo, atingir tão facilmente os píncaros de 75? E como pôde deixar-se expulsar deles de forma tão infantilmente vergonhosa, até chegar às misérias do tempo actual?
É impossível aprender seja o que for do Verão de 75 se não se puser no centro da análise a oposição de interesses entre o proletariado, motor dos acontecimentos, e a pequena burguesia “revolucionária”, sua condutora.
Isto, é claro, parece à primeira vista insuportavelmente “sectário”. O 25 de Novembro foi obra de uma amálgama de forças social-democratas, liberais e reaccionárias, animadas pelo PS e apadrinhadas pela social-democracia alemã e pelo embaixador Carlucci. A que propósito lançar responsabilidades sobre as forças de esquerda, que podem ter cometido erros mas foram, de qualquer modo, a vanguarda possível do movimento?
E, no entanto, o êxito fácil demais do 25 de Novembro, que é a sua principal originalidade, obriga a examinar com mais atenção a política seguida pelo PCP, pela ala esquerda do MFA e pelos grupos da “esquerda revolucionária”. O objectivo destas notas é mostrar que essas forças aplicaram, em nome dos interesses populares, uma táctica que lhes era contrária e que exprimia, em última análise, a ânsia pequeno-burguesa por encontrar uma saída intermédia entre revolução e contra-revolução.
Aquilo a que se assistiu no Verão de 75 foi a uma grande vaga de fundo, espontânea, anárquica, mas perfeitamente coerente, pela qual a pequena burguesia “revolucionária” começou por manietar politicamente o proletariado, para poder ser ela a dirigir o processo, e acabou por assistir, angustiada mas também aliviada, à parada dos Chaimites.
Por muito impopular que esta conclusão apareça aos olhos dos últimos fiéis da aliança Povo/MFA, é a ela que os factos conduzem. Há que examiná-la. Porque é ai, na avaliação do papel da pequena burguesia “revolucionária”, que se pode entender o fundo da luta de classes em 75 e destrinçar, no nebuloso terreno das “conquistas de Abril”, o que era a favor e o que era contra o proletariado.
O fiasco do 11 de Março mostrou a senilidade irremediável da velha direita. Os banqueiros nacionais e estrangeiros retraíram-se, descoroçoados: aquele imbecil do Spínola só servia para espicaçar a esquerda cada vez mais para diante.
Mês e meio depois, contudo, as eleições para a Constituinte deram o toque de clarim para uma nova direita, mais consistente, agrupada em torno dos partidos “ordeiros”, que recolheram 3/4 dos votos. A burguesia sentiu renascer a esperança. As eleições vinham contrapor ao “povo unido” imaginado pela exaltação colectiva o povo real, desejoso de estabilidade e legalidade. O PS, com os seus 116 deputados, confirmou-se como o baluarte natural da ordem, tanto mais que o PPD não atinava com um líder e uma linha de rumo. Por uma lógica intuitiva de concentração de esforços, boa parte da burguesia e a massa da pequena burguesia aderiram ao “socialismo” e lançaram-se a disputar para o seu campo a ala moderada do MFA.
Mas o MFA, entretanto, fora ganho por uma onda radical, em reacção ao 11 de Março: criação do Conselho da Revolução e da Assembleia do Movimento, prisão dos figurões reaccionários até aí intocáveis, começo das nacionalizações, anúncio da Reforma Agrária, lei do arrendamento rural, proclamação da “via socialista”. E não ficou por aqui: divulgou os relatórios do 28 de Setembro e do 11 de Março, extorquiu aos partidos um Pacto que os amarrava aos objectivos da Revolução, congelou os preços dos artigos de primeira necessidade e as rendas das casas. Uma semana antes das eleições, grandes manifestações populares vitoriavam a aliança Povo/MFA. O PS podia ter a maioria dos votos mas os oficiais “revolucionários” tinham ganho a iniciativa das operações.
A “revolução” viveu então os seus breves dias de esplendor. Ao assumir o comando, o MFA pareceu superar-se a si próprio e libertar-se da vacilação que o paralisara desde o 28 de Setembro e o levara a convocar a Constituinte. Até os grupos revolucionários se sentiram ultrapassados pela esquerda.
Lisboa parecia transfigurada. Os bancos exibiam faixas: “Nacionalizado, nosso!” Discutia-se a “apropriação colectiva dos meios de produção”. Dirigentes do PCP cumprimentavam, num comício de homenagem a Catarina Eufémia, a nova GNR democrática e faziam palestras educativas à PSP. Os soldados descobriam estupefactos que podiam comer na mesma messe com os oficiais. Os engenheiros trajavam como operários. Pacatos democratas saudavam de punho cerrado nos comícios. Até os merceeiros, encantados com o respeito e o maior poder de compra dos trabalhadores aprovavam a “passagem ao socialismo”.
Numa palavra, o MFA parecia escapar às leis da luta de classes e instituir esta coisa nunca vista: uma revolução sem ruptura da ordem, sem guerra civil, sem combates ferozes entre esquerda e direita. O professor americano Paul Sweezy exprimiu o sentimento geral da esquerda nesses dias quando comentou que o MFA não podia ser entendido como uma mera variante da intervenção dos militares na política . Era, por qualquer milagre inexplicável, a “vanguarda da revolução”.
Bem podia o MFA repetir, para se tranquilizar a si próprio, que era “o motor da Revolução”. O 11 de Março modificara muita coisa. A táctica de capitalizar a indignação popular contra a direita em apoio patriótico ao MFA já não aquietava o povo. As barragens nas estradas, o saque às sedes dos partidos de direita, a nova onda de ocupações de casas, as ocupações de terras a alastrar no Alentejo, as armas passadas de contrabando para fora dos quartéis, ridicularizaram dum dia para o outro Costa Gomes, cuja primeira reacção fora relacionar o golpe com a ‘indisciplina social explorada por agitadores profissionais”, e o PCP, que saíra a condenar pressuroso “as violências e destruições anárquicas praticadas à sombra da luta contra a reacção”.
Os tempos mudavam. A iniciativa da rua, libertada pela crise do poder, não só bloqueava a reprodução normal do Capital, como abria fendas em todo o imponente edifício das instituições, leis e costumes. Os ideólogos que hoje aparecem a querer explicar os acontecimentos pelo conflito entre as instituições, só para não admitirem a fragilidade do poder sob o embate do movimento de massas, talvez se desforrem assim das humilhações que na altura lhes impôs a “populaça”. Mas condenam-se a não entender nada do jogo das forças políticas que conduziu à crise do Verão.
De facto, começava a acontecer algo de que ninguém suspeitara e que ninguém planeara: as massas, tomando à letra a Democracia, ameaçavam fazer desmoronar o regime burguês. A burguesia ainda fingia acolher com democrática serenidade as moções explosivas dos plenários, mas via que o respeito pela ordem era uma capa cada vez mais fina, que já mal encobria a impotência real dos órgãos do poder.
O povo já constatara que a GNR e a PSP, suspeitas de envolvimento no golpe, eram desautorizadas pelo MFA e que as forças do Copcon se recusavam a reprimir as suas iniciativas. Logicamente, não levava a sério os apelos à disciplina e as ameaças de severas penas para as ocupações ilegais. Alargava a brecha o mais que podia. Exprimia a sua vontade nas comissões e plenários e tratava de a levar à prática. Aproveitava os rasgões no controlo burguês da imprensa e da rádio para as usar como órgãos das suas denúncias e exigências.
Era esta impetuosa aspiração de mudança das massas avançadas que lhes permitia marcar o andamento da política e cilindrar a resistência medrosa da direita e a inércia da grande massa, indecisa e flutuante. Era ela que engrossava dia-a-dia a ala esquerda do MFA, dava vida aos grupos revolucionários e condicionava a política do PCP.
Este movimento que começava a descobrir a sua voz e a sua força estava contudo ainda longe de descobrir a sua identidade política. Aceitava o MFA, o PCP, o MDP, em parte até o PS, como seus representantes. Só as franjas mais radicalizadas seguiam os grupos revolucionários, opostos a toda a autoridade estabelecida. Esses grupos, porém, não passavam de parcelas confusas da nova corrente revolucionária que fermentava na luta de classes.
O MFA pôde assim adiantar-se à rua e proclamar o “socialismo” e o “poder popular” antes que ela o fizesse. Sancionou com a sua autoridade as iniciativas populares que nunca supusera possível admitir. Cedeu a tudo com o justo instinto de que o mais vital era não perder o controlo do poder. A força do movimento tornara-se tão indiscutível que a luta contra o proletariado só podia ser travada em nome do socialismo e da revolução.
Esta súbita conversão do MFA ao socialismo, seria um erro vê-la como uma manobra maquiavélica para confiscar a bandeira da revolução aos operários e assalariados. A luta de classes não é assim tão simples.
O MFA viera aprendendo à sua custa que o nobre projecto de “devolver a liberdade ao povo” não escapava à acção devastadora da luta de classes. Dividia-se em tantas tendências quantas as forças políticas que do exterior o solicitavam. De momento, estava dominado pela corrente radical.
Acicatados pela sabotagem económica dos capitalistas e pelas conspirações reaccionárias, comovidos pela razão das exigências populares, desejosos de se manter coerentes até ao fim com as suas promessas democráticas, os oficiais progressistas deslocavam-se para a esquerda a cada luta que eram obrigados a travar contra a direita e contra os militares moderados. Sentiram-se encantados por poder dar uma lição aos monopolistas, latifundiários e grandes colonos que até aí tinham escarnecido do 25 de Abril. Em breve, ganharam a hegemonia nas Assembleias do MFA e reconheceram-se embriagados como protagonistas de uma revolução “a sério”. O fim do império colonial e do fascismo seria também o fim do capitalismo português.
As nacionalizações e as intervenções estatais nas empresas, exigência objectiva para afastar o perigo de bancarrota do sistema, apareceram-lhes como a prova de que se entrara em plena revolução socialista. Declararam solenemente a “opção socialista da revolução portuguesa”. E como, obviamente, não se podia avançar para o socialismo com uma Constituinte dominada por partidos retintamente burgueses, anunciaram, perante o pasmo indignado do PS e PPD, que “democracia socialista não é votação formal mais nacionalizações, mas sim poder popular”. Estava lançada a ideia do ‘poder popular”, que viria a constituir o cerne da luta de classes nos meses seguintes.
A euforia reinante não deixava perceber aos oficiais progressistas a falsidade paternalista do seu projecto, que advinha deste facto muito prosaico: eram eles que conservavam o comando dos soldados e o controlo das armas e, por sua vontade soberana, se arvoravam em libertadores do povo. Dizer que o MFA era “o povo armado” ou que as Forças Armadas estavam em vias de se transformar num Exército Popular não passava de flores de retórica.
Na realidade, as comissões do “poder popular” que mais tarde vieram a reunir sob a presidência benévola dos oficiais, vinham na linha de continuidade das campanhas de “dinamização cultural”, que tinham percorrido a província, a explicar às populações o que era bom para elas. Eram uma reminiscência sublimada da “acção psicossocial” em África. Ansiosos por se resgatar da ignomínia colonialista, os oficiais progressistas exultavam por julgar estar a dar a libertação, desta vez verdadeira ao seu próprio povo. Não sabiam que estavam, mais uma vez e em condições diferentes, a afogar uma revolução.
Mas nem tudo era ingénuo no projecto “socialista” do MFA. A luta surda entre a ala esquerda e a direita do Movimento era arbitrada pelo bloco central “gonçalvista”, que aprendera em meses de governo a defender-se das massas e a desconfiar dos seus impulsos destrutivos. A teoria do MFA como “motor e garante da Revolução”, reafirmada por Vasco Gonçalves em 7 de Abril, foi aclamada como a decisão de não entregar o poder à social-democracia. Na realidade, expressava já em embrião a luta em duas frentes em que o Conselho da Revolução se iria empenhar: impor as reformas democráticas de estrutura contra a resistência da social-democracia e da direita; mas também manter sob controlo os impulsos anárquicos da rua.
As iniciativas imprevistas dos trabalhadores, a quem nada parecia capaz de satisfazer, a recusa insolente dos grupos de extrema-esquerda a assinar o Pacto, as exigências “irrealistas” de que se expropriassem as fortunas e se submetessem a julgamento os anteriores governantes e os pides, a reivindicação “provocatória” do abandono da NATO, a ‘falta de respeito” que começava a contagiar os soldados, eram outros tantos golpes na confiança de Vasco Gonçalves no civismo do povo.
Os dois meses seguintes fizeram amadurecer rapidamente esta atitude. À direita, o PS, apoiado em grandes comícios e manifestações tornava-se cada vez mais audacioso na exigência do lugar que lhe correspondia pelas eleições. À esquerda, as comissões de trabalhadores e moradores criavam conflitos e sobressalto permanente com as suas reivindicações insaciáveis, sem quererem saber do estado catastrófico da economia.
Para agravar as coisas, o ELP fazia a sua aparição em público e os pides fugiam da cadeia, enquanto Otelo, sempre impulsivo, declarava que teria sido melhor se no 25 de Abril os contra-revolucionários tivessem sido encostados à parede ou metidos no Campo Pequeno.
A necessidade de encontrar um partido que lhe servisse de suporte político para navegar gradualmente para o “socialismo”, evitando os escolhos da reacção e da revolução, começou a impor-se ao CR. Inviabilizada a ideia inicial de apoiar o MDP como grande frente unitária ao serviço do MFA e sem perspectivas de ver materializado o projecto de um novo partido da esquerda socialista , a maioria do CR teve que optar pelo apoio no PCP. Apesar de todos os inconvenientes que isso acarretava (o medo ao comunismo, a retracção dos capitais, a hostilidade da NATO), o PCP era a única força capaz de enquadrar o movimento de massas e já com provas dadas de “responsabilidade”.
Nada mais longe da verdade do que a acusação de que o PCP teria tentado, após o 11 de Março, “queimar etapas” e impor uma Democracia Popular em Portugal. Dizer que Cunhal tentou “seguir rigorosamente as pisadas” dos Partidos Comunistas da Europa Oriental ou atribuir a fractura do bloco militar em Agosto à manipulação e desvirtuamento dos movimentos sociais populares pelo PCP, é verdadeiramente injusto.
Na realidade, Álvaro Cunhal já não sabia se devia felicitar-se ou alarmar-se pela marcha imparável dos acontecimentos. Todas as suas metas, previstas para um largo período histórico, realizavam-se em marcha acelerada, de forma tumultuosa e imprudente.
A impaciência e temeridade das massas, que facilmente davam ouvidos aos incitamentos “esquerdistas”, ameaçavam romper todo o delicado equilíbrio requerido pelo projecto da “Revolução Democrática e Nacional”. As acções na República e na “Rádio Renascença” eram uma provocação gratuita ao PS e à Igreja. A torrente incontrolável das comissões suplantava as direcções sindicais e autarquias, conquistadas em luta árdua como pilares do novo poder democrático. O entusiasmo ingénuo da ala esquerda do MFA, e sobretudo do Copcon, pelo poder popular (“o povo tem sempre razão”, declarava Otelo por essa altura) dava rédea solta à anarquia e acentuava perigosamente o retraimento dos militares moderados. Em princípio de Julho esteve-se à beira de uma ruptura no CR.
O pior é que o PCP, se previa atormentado o perigo fatal da desunião das forças democráticas, previa também o perigo de ver fugirem-lhe pela esquerda amplos sectores do proletariado da região de Lisboa, do Alentejo, do Porto. A jornada de trabalho da Intersindical a 10 de Junho caíra no ridículo. A 4 de Julho, a Siderurgia veio para a rua, sem querer saber dos avisos dramáticos de que se poderia dar pretexto a um golpe fascista. Muitos militantes operários do partido, perturbados por se encontrarem a cada passo na cauda do movimento, começavam a vacilar na luta contra o “esquerdismo”.
Foi necessário portanto apurar a táctica para tentar aquilo de que nenhum outro partido seria capaz: enganchar na mesma dinâmica o ascenso operário e o recuo pequeno-burguês. É isso que dá sentido à política do PCP no Verão de 1975 e não o plano para um imaginário “golpe de Praga”.
A acusação, lançada pelo PS para galvanizar os pequenos patrões e a massa intermédia das cidades (e também para estimular o empenhamento mais directo dos americanos), apresentava como provas a insaciável ocupação de lugares pelos quadros do PCP – na comunicação social, no aparelho económico estatal, na 5ª Divisão. A verdade, porém, é que a hipótese de um golpe “comunista” estava excluída à partida pelo lugar de Portugal na NATO.
Mesmo antes de ir a Moscovo conferenciar com Brejnev, Cunhal já o sabia.
Alarmado pela tendência para desintegração da aliança Povo/MFA em facções antagónicas, o PCP procurava ganhar influência a todos os níveis do aparelho – para persuadir a burguesia liberal à colaboração, dissuadir a burguesia reaccionária de tentações golpistas e impedir os trabalhadores de se lançarem em “aventuras”. A recente lição do Chile, para Cunhal, não era obviamente o fracasso estrondoso da táctica reformista em fase de crise revolucionária mas a necessidade de aperfeiçoar essa táctica. O Chile ensinava que era preciso levar mais longe as medidas preventivas contra uma reviravolta imprevista da direita ou uma explosão de “esquerdismo”. Por um momento, pareceu que iria consegui-lo.
Julho começou com um novo salto do PREC (o “processo revolucionário em curso”), quando a Assembleia do MFA institucionalizou, após dura luta interna, a aliança Povo/MFA como base da construção do socialismo. Os militares outorgavam às Assembleias Populares o direito de partilhar o poder e reconheciam as organizações unitárias de base como “embriões de um sistema de democracia directa”, passando o parlamento para segundo plano. Do MFA-motor, passava-se para a aliança Povo/MFA “binómio-motor da Revolução”.
A convicção de que o MFA rompera definitiva mente com a social-democracia desencadeou uma explosão de entusiasmo. No dia em que o PS abandonou o governo, uma enorme manifestação da Inter foi a Belém aclamar o CR e Vasco Gonçalves. Manifestação semelhante teve lugar dias depois no Porto. A TAP suspendeu a greve em sinal de boa vontade. No Alentejo, romperam-se os últimos diques que ainda retinham a ocupação maciça dos latifúndios. As cooperativas e UCPs, somando-se às novas nacionalizações, ao controlo de gestão, às Assembleias Populares… – que mais era preciso para acreditar na realidade do socialismo? Além disso, o reconhecimento sucessivo da independência das colónias não provava a boa-fé e habilidade do CR para pôr termo também ao pesadelo de Angola, afastando o perigo de uma explosão chauvinista reaccionária?
A avalanche das ilusões num socialismo redentor permitia ao boletim do MFA enumerar nas “classes trabalhadoras interessadas em caminhar para a revolução socialista”, “os pequenos e médios agricultores, comerciantes, industriais, os funcionários públicos, intelectuais, técnicos”… Um pais inteiro feito “classes trabalhadoras” dispostas a marchar para o socialismo!
Não era difícil porém divisar, sob a demagogia arrevesada do “binómio-motor da Revolução”, a inconsistência suspeita do Programa de Acção Política do CR. “Esquecia-se” de definir como funcionaria a “democracia directa” nos quartéis, especificava que “não serão admitidas organizações civis armadas” e prometia reprimir por igual as actividades contra-revolucionárias e o “esquerdismo pseudo-revolucionário”, contra o qual admitia, inclusive, o recurso à ”acção armada”. A repressão sobre os manejos obscuros do MRPP “maoísta” poderia servir de precedente para uma real perseguição à esquerda em caso de necessidade.
Os militares estavam conscientes do risco deste novo passo “irreversível” para o socialismo.
Com a oferta de um poder fictício às Assembleias Populares esperavam descomprimir de novo a pressão da rua e recuperar espaço de manobra para enfrentar a campanha do PS e da direita. Mas sem perder o controlo da situação. “Urge inserir os órgãos populares na aliança Povo/MFA”, alertava a 5.ª Divisão, “de modo a prevenir o seu desenvolvimento anarquizante ou aventureirista” . Não tardaria muito que o ascenso paralelo à esquerda e à direita espalmasse os bons propósitos dos socialistas militares.
A ressaca ao “poder popular” não se fez esperar. O PS, na oposição, arrastou o PPD para fora do governo e iniciou uma grande prova de força. Gigantescas manifestações nas Antas e na Alameda, a 18 e 19 de Julho, comprovaram a base de apoio do “socialismo democrático”. Já não se podia pretender que a oposição ao CR era obra só dos saudosistas do antigo regime. O PCP iria pagar cara a tentativa de impedir estas acções por meio de barragens, como se elas fossem uma mera repetição da “maioria silenciosa” do 28 de Setembro.
Não havia qualquer exagero nas denúncias de Cunhal acerca de uma escalada reaccionária orquestrada. Os assaltos e incêndios do ELP articulavam-se com as manifestações católicas, com a agitação promovida pelas confederações patronais, com a ofensiva separatista nos Açores e com a conspiração febril dos colonos de Angola, dispostos a tudo para salvar os seus bens da independência. Mas o ataque geral da direita fazia-se agora, ao contrário do ano anterior, a coberto de um grande movimento de massas da pequena burguesia e em nome da defesa do “verdadeiro espírito do 25 de Abri!”. Já não se podia ocultar que a “revolução de Abril” se fraccionara em dois ramos antagónicos.
O PCP, contudo, respirava confiança inabalável na Revolução. A ocupação do Alentejo pela vaga dos assalariados rurais, o congresso da Intersindical presidido por Costa Gomes e Vasco Gonçalves, a nacionalização do grupo CUF, não eram a prova da vitória? Cunhal triunfava em comícios delirantes. Demonstrava aos que o tinham suspeitado de timidez que tudo vinha a seu tempo. A ideia de que estavam em curso conquistas “irreversíveis” e de que o partido avançava imparavelmente para o poder (“em aliança com os militares revolucionários, os democratas e patriotas”) embebedava a base proletária do PCP.
Uma espessa tradição de reformismo crónico ocultava-lhe o quadro real da luta de classes. Convenciam-se de que todos esses avanços, à sombra do MFA e do respeito pelo capital estrangeiro e pela NATO, formavam um matreiro plano revolucionário para roubar uma a uma as bases de apoio da burguesia, até deixá-la suspensa no ar, sem a assustar com excessos “irresponsáveis”, como fazia a extrema-esquerda.
Era esta ilusão de que estavam a fazer uma revolução “pela surra” que levava os operários mais combativos do PCP a alinhar com fervor na “batalha da produção”, a aclamar os discursos lacrimejantes de Vasco e a minimizar a força de massas do PS. Não entendiam que, ao entregar-se nas mãos dos “militares revolucionários” e ao instalar-se no aparelho de Estado em vez de o desmantelar, o seu partido os conduzia para uma derrota certa.
Em Julho, a extrema-esquerda começava a abrir espaço no impasse a que chegara a crise política. À medida que se definia a ameaça de direita e a incapacidade do PCP, maiores sectores da vanguarda operária e popular se voltavam para as palavras de ordem da esquerda revolucionária. Começavam a reconhecer a justeza das suas denúncias acerca dos alçapões da aliança Povo/MFA e da necessidade de luta mais radical.
As manifestações de 16 e 18 de Julho (Lisboa e Porto) e sobretudo a de 20 de Agosto, promovidas por comissões de moradores e trabalhadores e apoiadas por contingentes de soldados, projectaram para primeiro plano a aspiração de uma unidade popular renovada, por cima da divisão cavada entre os blocos do PS e do PCP. As suas palavras de ordem centrais eram a efectivação do poder popular e a passagem à ofensiva contra a direita. O seu documento programático, a Proposta de Trabalho do COPCON, divulgada em Agosto como alternativa ao V Governo e ao Documento dos Nove.
Havia contudo muito pouca convicção nesta exigência de poder popular. As comissões de moradores e trabalhadores (estas últimas já em grande parte neutralizadas pela influência moderadora do PCP) tinham feito um largo caminho desde o ano anterior, mas estavam longe de querer assumir realmente o poder. Rodeavam as instituições como órgãos de reivindicação, pressão e vigilância, mas não se atreviam a substituir-se a elas.
Faltava-lhes a força para o fazer. Não se chegara de nenhuma forma a um quadro político em que as comissões, apoiadas em órgãos armados, se pudessem apossar do poder pela força. Por isso, o objectivo político difuso que inspirava as manifestações pelo poder popular e a articulação das comissões em Assembleias Populares era ainda o de tentar encontrar essa força nas unidades do COPCON. No fundo, a corrente do “poder popular” cingia-se a tentar revitalizar e “revolucionarizar” a aliança Povo/ MFA, descolando, pela pressão das massas, uma nova ala esquerda do MFA. A lógica democrático-revolucionária pequeno-burguesa, mesmo levada ao limite, não se transformava em lógica proletária, soviética.Teria sido necessária a intervenção massiva da classe operária conduzida por um partido comunista que não existia.
Esta timidez tinha raízes na base social confusa da corrente do “poder popular”: sectores operários avançados em fusão com moradores pobres, estudantes, pequenos comerciantes arruinados, intelectuais de esquerda – toda uma massa popular amorfa sem espinha dorsal de classe. Isto mesmo se traduzia na poeira de grupos políticos que lhe disputavam a direcção, nenhum deles capaz de ganhar hegemonia: maoístas, socialistas de esquerda, trotskistas, anarquistas.
Na ausência de uma força política dirigente, o movimento era levado a buscar no prestígio popular de Otelo a coerência unificadora que lhe faltava. Otelo, porém, não era mais do que um intérprete vacilante de um movimento vacilante. Tentava manobrar entre os ataques que lhe eram desferidos pelos Nove e pelos gonçalvistas, pelo PS e pelo PCP, em busca de um espaço político que nunca chegou a encontrar. Em mais de um momento, as suas oscilações levaram-no a aproximar-se dos Nove. A sua decisão conciliatória de reintegrar Jaime Neves, saneado pelos soldados dos Comandos, viria a ser-lhe fatal.
A corrente do “poder popular” não tinha táctica porque não tinha um projecto real de poder. Tão depressa apoiava os ataques do PCP contra o PS como os do PS contra o PCP, o que a conduzia à desagregação. Se, em vez de denunciar o V Governo como um “governo fantoche”, tivesse sido capaz de enunciar as condições para uma luta comum contra o PS e os Nove, ela teria certamente deslocado para si uma boa parte das massas que se agarravam com desespero ao PCP e ao “gonçalvismo”. Assim, a luta ficou de facto cingida à disputa entre o PCP e o PS.
Fracassadas as negociações para um novo governo de coligação, Agosto serviu para a disputa febril do apoio de massas a cada um dos diversos programas de saída da crise. Frente a frente ficaram o V Governo, que apostava no prolongamento da aliança Povo/MFA, e o Documento dos Nove, defensor da passagem à “normalidade democrática”. Tornou-se claro desde logo que a terceira via defendida pelo Copcon com a sua Proposta de Trabalho não dispunha de força para triunfar.
Quem contasse o número de manifestantes e de moções que se pronunciavam em apoio de cada uma das correntes seria inclinado a atribuir a vitória ao V Governo. O Documento dos Nove foi repudiado e estes foram suspensos do CR. Vasco Gonçalves produzia uma enxurrada de leis “socialistas” e tentava incendiar as massas com discursos sobre a “batalha da produção”. O PCP garantia-lhe o apoio com os Comités de Defesa da Revolução. No Século, Miguel Urbano Rodrigues reclamava “um governo que governe” e que se apressasse a “criação do Poder Revolucionário”.
Na realidade, as aclamações ao “companheiro Vasco” mobilizavam multidões mas não podiam suprir a impotência real do V Governo. Com as massas operárias desencantadas pela carestia e o desemprego, os camponeses exasperados pela ausência de medidas de apoio à produção, a pequena burguesia em pânico com a desordem, o V Governo só consolidaria uma base de apoio sólida se adoptasse medidas políticas e económicas eficazes em benefício dos trabalhadores à custa da burguesia e as impusesse pela força.
Só o conseguiu em relação aos assalariados rurais do Sul. No conjunto do país, as suas indecisões, em vez de desarmarem a hostilidade do PS e da direita, como ele esperava, semearam a vacilação nas massas e tornaram cada vez mais afoita a ofensiva unida para o derrubar. A força maioritária aparentada pelo centro gonçalvista era fictícia. Apostar na estabilização da luta de classes no ponto a que esta chegara era puro suicídio.
Incapaz de desmantelar o ELP e as conspirações militares que fervilhavam, de golpear seriamente os especuladores, os patrões sabotadores, a padralhada, de dissolver a Constituinte, o V Governo revelava-se como um “tigre de papel”.
Isso mesmo entendiam social-democratas, liberais e reaccionários. O Documento dos Nove e o Programa de Acção Imediata do PS, ao exigir o fim do “anarcopopulismo”, das “formas selvagens e anarquizantes do exercício do Poder”, das “usurpações e vandalismo” no Alentejo e a concentração do poder na Assembleia Constituinte, galvanizaram as massas burguesas e permitiam-lhe puxar à sua órbita largos sectores de camponeses pobres, assalariados, desempregados, desejosos do retorno à estabilidade. O PS e os Nove dispunham de vantagem esmagadora: eram os únicos que apresentavam um modelo de organização social, contra o marasmo do centro gonçalvista e as indecisões da esquerda.
Entrou-se então no penúltimo acto da comédia revolucionária. Sob a fachada das proclamações cada vez mais exaltantes, Álvaro Cunhal começou a procurar uma plataforma de compromisso com o PS e os Nove. As imponentes manifestações de fins de Agosto, em Lisboa e Porto, de apoio ao Copcon, serviram-lhe de capital de negociação. O PCP aderiu à última hora às manifestações, procurando inflecti-las para o apoio ao V Governo. Em seguida, foi mais longe e entrou com alguns grupos da extrema-esquerda na chamada Frente de Unidade Revolucionária (FUR). Os ingénuos incorrigíveis exultaram com o “passo decisivo” que se dava para a unidade da esquerda. Três dias depois, estabelecido um acordo básico com o PS sobre a distribuição de forças no futuro governo, Cunhal negou qualquer apoio à FUR e apelou a uma conciliação entre as três tendências do MFA. Era o fim do V Governo.
A partir daqui, estava aberto o caminho para golpe de Tancos e para a morte política de Vasco Gonçalves. Os Nove tomaram o controlo do CR e acabaram com as subversivas Assembleias do MFA. O PS redobrou de energia no ataque ao movimento popular. O 25 de Novembro estava em marcha. Nem sequer a extrema-esquerda lhe conseguiu ser obstáculo.
Tem sido fácil ridicularizar os grupos de extrema-esquerda pela desproporção entre as suas exigências radicais e a escassez das suas forças. Seria necessário concluir, pelo contrário, que foi a moderação das suas proposta políticas que os impediu de ganhar a direcção do movimento no Verão de 75.
Tudo o que os grupos tinham feito de positivo pelo movimento nos meses anteriores, levando-lhe ideias novas, avançadas, ensinando-lhe anti-imperialismo militante, impondo-lhe saltos para diante, estilhaçando o bronco conformismo legalista e sindicaleiro do PCP, tinha que ser elevado a um nível novo que eles não se atreveram a franquear.
De facto, apesar do radicalismo exasperado da sua linguagem, o arsenal estratégico dos grupo não tinha nenhuma resposta coerente para o cerco à revolução, montado pelo duelo entre as duas alas pequeno-burguesas agrupadas em torno do PS e do PCP.
Se excluirmos a ala direita da corrente maoísta (MRPP, PCPML/AOC), que viera evoluindo com o seu “anti-social-fascismo” assanhado, para reserva do PS e da reacção (também a OCMLP enveredou por esse caminho a partir do Verão) e a ala esquerda social-democrata (FSP, LUAR, LCI), que se limitava a flutuar na esteira do PCP e do CR, as forças que constituíam a extrema esquerda propriamente dita (UDP, PRP, MES) não passaram além da busca de um impossível arranjo popular-militar.
A UDP, por exemplo, uma das forças então mais influentes da esquerda revolucionária, tentou corresponder à nova situação com a proposta de um “Governo de Independência Nacional, em aliança com o Terceiro Mundo”, numa tentativa nítida de ganhar o apoio de parte da pequena burguesia. A verdade é que a UDP começava a recuar perante a perspectiva de um confronto: por isso entrou em campanha contra o “aventureirismo”, pela atracção das camadas médias e pela “unidade do povo contra o fascismo”, quando o que estava em jogo era saber se se avançava ou não para derrubar a burguesia. Por isso também, a sua breve agitação a favor de milícias populares não foi levada à prática. A UDP viria a acabar logicamente no defensismo impotente do “não à guerra civil” de Outubro.
Mais radical soava a proclamação da revolução socialista anunciada pelo PRP e a sua iniciativa de constituir comités revolucionários (CRTSM), inclusive alguns deles armados. Mas o seu primitivismo político, formado na escola da acção directa, não dava ao PRP estofo para ganhar sectores significativos do proletariado. O mais que conseguiu foi um corpo de brigadas girando em volta dos quartéis e a reunião de algumas assembleias populares, tão tumultuosas como indecisas. O seu revolucionarismo “activo” era afinal tão impotente como os apelos unitários da UDP. Para já não falar do MES, que se evadia das tarefas revolucionárias com uma combinação aberrante de “socialismo militar” e “revolução cultural”.
A raiz desta capitulação estava na linha centrista, maoísta-estalinista, em que se traduzia o marxismo-leninismo dos grupos comunistas. A sua perspectiva de uma revolução democrático-popular já não tinha nada para lhes dar, no ponto a que chegara a luta de classes. Baseava-se na esperança de uma aliança operário/pequeno-burguesa que a vida demonstrava ser inviável. Era essa ausência de estratégia revolucionária que os impedia de arrancar o grosso da vanguarda operária ao PCP e constituir o novo Partido Comunista que reconheciam como sua principal tarefa.
Pelo seu lado, a corrente “anti-estalinista”, num leque que ia do PRP ao MES e aos trotskistas, condensava todos os preconceitos da social-democracia de esquerda: uma fé mística na “auto-organização das massas e nos órgãos de “poder popular”, como se deles pudesse sair espontaneamente o partido dirigente da revolução; o namoro aos oficiais revolucionários como chave da conquista do poder; como pano de fundo, uma incapacidade absoluta para diferenciar os interesses do proletariado dos da pequena burguesia. Resultava daqui o pragmatismo invertebrado que os levou à armadilha da FUR.
Numa palavra, a extrema esquerda nunca foi além de extrema esquerda das ilusões de Abril. Estava condenada a assistir impotente ao 25 de Novembro.
No Verão de 75 tratava-se de saber se a classe operária era capaz de enfrentar o desafio que a História inesperadamente lhe apresentava: reconhecer a morte do MFA, uma vez esgotada a tarefa democrática que lhe dera origem e levar audaciosamente o confronto a um plano superior: pelas nacionalizações, pela reforma agrária à escala nacional, pelo castigo dos contra-revolucionários, pela solução da crise económica – todo o poder às comissões de trabalhadores, soldados e moradores, dissolução da Constituinte, formação de um governo revolucionário, armamento do povo, controlo operário, expropriações sem indemnização, ruptura com a NATO.
Para se poderem manter, as conquistas de Abril tinham que ser levadas mais longe. O próprio desenrolar dos acontecimentos demonstrava que não havia lugar para qualquer “revolução democrática e nacional”, “revolução socialista de todo o povo” ou “revolução democrático-popular”, todas elas imaginadas na base de um impossível bloco unido operário-burguês. Os factos mostravam que a revolução só se tornaria realidade se rompesse o casulo da aliança Povo/MFA e ganhasse a envergadura de uma luta definitiva dos produtores contra os exploradores, dos soldados contra os oficiais, das comissões contra as instituições – em suma, uma revolução do proletariado contra a burguesia, uma revolução socialista.
Poderia essa revolução triunfar sobre a ameaça de guerra civil e de cerco e invasão imperialistas? Pode-se duvidar. Mas não restam dúvidas de que era essa a única revolução que havia para fazer. Fora dela, só ficava o que efectivamente ficou – a reorganização da ordem burguesa.
Saber se a revolução era ou não possível não era questão que tivesse resposta antecipada. Dependia da capacidade do proletariado para assumir a direcção dos acontecimentos, disposto a vencer a todo o preço, e nesse processo arrastar para o seu lado as grandes massas semi-proletárias e retirar margem de manobra à pequena burguesia.
Essa situação não chegou sequer a esboçar-se . Acima de tudo porque faltou ao proletariado um partido revolucionário, comunista, capaz de se assumir e fazer reconhecer como a direcção política da revolução. Esta é naturalmente a conclusão imediata que se impõe a todo o marxista. Mas é preciso ir mais além e perguntar por que não chegou esse partido a formar-se, nem sequer como embrião, numa situação tão propícia, que não só favorecia como exigia o seu aparecimento.
E aqui entramos na questão-chave das relações políticas entre proletariado e pequena burguesia. Enquanto o proletariado procurava às apalpadelas o caminho da revolução, a pequena burguesia, dividida num arco-íris de tonalidades, tratou, toda ela, de lhe bloquear esse caminho. Criticar as “vacilações” da pequena burguesia, como habitualmente se faz, é ainda uma maneira de dourar a realidade. A pequena burguesia não vacilou nunca no essencial para a sociedade estabelecida, que era salvar o Estado.
Isso ficou evidente quanto à massa pequeno-burguesa alinhada atrás do PS e da direita contra a “anarquia”. Mas já não ficou claro quanto à fracção radical da pequena burguesia, precisamente pelo seu comportamento pseudo-revolucionário. Guiada pelo instinto seguro de que o mais vital era ficar junto das massas revolucionárias para evitar uma convulsão irreparável, a pequena burguesia de “esquerda” montou uma fraude política de grandes proporções.
Todas as reivindicações revolucionárias dos operários e restantes trabalhadores foram por ela esvaziadas em palavras de ordem de fantasia: aliança Povo/MFA em vez de aliança dos operários, camponeses pobres e soldados; “poder popular” tutelado pelos quartéis em vez de poder popular autêntico; “batalha da produção” em vez de expropriação da burguesia; respeito pelos compromissos internacionais em vez de saída da NATO; unidade popular em vez de partido operário revolucionário; “transição para o socialismo” em vez de revolução violenta.
Face ao bloco da ordem, comandado pela burguesia, forte do apoio imperialista, alinharam-se assim as hostes desgarradas de um “exército operário-pequeno-burguês, cujas energias se esgotaram nas mãos de chefes de empréstimo, mais receosos da vitória do que da derrota.
Em vez de ser o proletariado a encostar a pequena burguesia à parede e forçá-la a escolher entre dois campos, foi a pequena burguesia que se arvorou em árbitro da crise. O resultado estava traçado de antemão. Nem chegou a haver batalha.
Hoje, a dez anos de distância, é evidente que a missão histórica da pequena burguesia “revolucionária”, agrupada no PCP e na ala gonçalvista do MFA, era promover a transição do regime fascista-colonialista defunto para a democracia burguesa, afastando o perigo de uma revolução. O que fez com êxito.
Naturalmente, uma vez cumprida essa missão, a pequena burguesia “revolucionária” foi empurrada sem cerimónia para fora do poder que lhe fora dado provisoriamente pelas forças do Capital. Álvaro Cunhal, Vasco Gonçalves, Costa Gomes têm boas razões para se sentir vítimas de uma injustiça histórica. O serviço que prestaram à “democracia” jamais será reconhecido.
Resta-lhes uma consolação. É que a sua sabotagem da revolução pôde manter-se oculta aos olhos das grandes massas graças à incoerência e fraqueza da esquerda revolucionária. Ao cair pelo ultimato da direita e não ultrapassado pela esquerda, o V Governo santificou-se com uma enganosa auréola revolucionária que permanece até hoje no espírito do movimento operário. Não admira a crise ideológica em que este se debate: todo o sentido da luta de classes em 75 lhe permanece oculto.
Tornar claro o antagonismo de interesses entre proletariado e pequena burguesia de “esquerda” é afinal a lição de Abril que continua por tirar. Admitir ou não a necessidade do proletariado se libertar da hegemonia pequeno-burguesa, como questão central da luta de classes nacional, é o que distingue, em última análise, o marxismo revolucionário do reformismo.
O 25 de Novembro foi, à sua maneira, tão original como o 25 de Abril. Se a “Revolução dos cravos” se distinguira por ter derrubado o fascismo sem combates e sem vítimas, o golpe militar que lhe pôs termo pareceu não querer ficar-lhe atrás em cavalheirismo. A repressão, restrita à área militar, foi relativamente branda, o Conselho da Revolução manteve-se em funções, a legalidade democrática foi prontamente restabelecida, o PCP, alvo de acusações de ter tentado uma insurreição, permaneceu no governo. Cinco meses após o golpe, o país era dotado com uma Constituição avançada, ‘a caminho da sociedade sem classes”. Tudo funcionou como se a uma meia revolução devesse corresponder uma meia contra-revolução, a uma comédia, outra comédia.
Esta singularidade não se explica, naturalmente, pela “índole pacífica” dos portugueses. Os povos africanos podem atestá-lo. Elas têm a ver com o equilíbrio original entre as classes criado durante a crise revolucionária, o qual deu lugar, na sugestiva expressão de Boaventura Sousa Santos, a uma dualidade de impotências em vez de uma dualidade de poderes . O 25 de Novembro foi brando porque a contra-revolução não tinha muita energia, mas também porque não havia muita revolução para destruir.
Durante longos meses, o movimento popular, impulsionado pela classe operária e pelo proletariado rural, e o movimento conservador da burguesia tinham-se esgotado em escaramuças incertas, incapazes de fazer pender a balança decisivamente para um dos lados. Se no auge do “Verão quente” a revolução parecia prestes a ganhar a partida, a vantagem era ilusória porque o aparelho de Estado, embora paralisado, se mantinha intacto e as massas não dispunham de forças para o assaltar.
Os três meses finais da crise, entre o pronunciamento de Tancos e o 25 de Novembro, tiveram como pano de fundo precisamente a disputa das tropas por parte da corrente popular. Mas, mesmo nessa fase clássica de desenlace de todas as crises revolucionárias, a impotência foi o traço marcante de parte a parte. Até que a burguesia, enquadrada pelo PS, PPD, CDS e ELP, e estimulada pelos americanos e alemães, reuniu forças para pôr ponto final ao confronto.
Em que se radicava a impotência da “esquerda” no Outono de 75? Esta é talvez a questão mais importante que os marxistas portugueses têm para responder. Quanto a nós, ela nascia da divisão que dilacerava a corrente revolucionária popular. O proletariado, verdadeiro motor dos acontecimentos, estava tão estreitamente entrelaçado com a pequena burguesia democrática que não conseguia desenganchar-se da sua direcção política. Ora, os interesses de um e da outra eram nesse momento abertamente antagónicos. O proletariado precisava, para realizar os seus objectivos, de se lançar na disputa armada do poder; a pequena burguesia de “esquerda” oferecia-lhe, em nome da revolução, uma grande variedade de tácticas, que tinham todas um traço comum: manter o poder fora do seu alcance. Daqui, a impotência.
Que isto não é uma tese “dogmática” marxista mostra-o o jogo dos conflitos e alianças, nesses três meses de agonia do PREC, entre os protagonistas da esquerda: o PCP, os “gonçalvistas”, o grupo do COPCON, a extrema esquerda.
A queda do V governo, primeiro dobre a finados pela revolução, pôs em relevo as diferenças tácticas entre o PCP e o “gonçalvismo”, diferenças que o PS e a direita persistem em ignorar por conveniência e a esquerda “marxista-leninista” por miopia.
Era missão atribuída ao V governo, segundo o testemunho insuspeito de um seu membro, tomar medidas económicas de emergência, as quais “implicando sacrifícios para os próprios trabalhadores, tornar-se-iam necessariamente impopulares. Só um Governo, portanto, que merecesse a confiança dos trabalhadores poderia conseguir que estes as aceitassem sem forte reacção.” Tratava-se de amainar o descontentamento da burguesia à custa dos trabalhadores e, a este respeito, não havia divergências entre Vasco Gonçalves e o PCP.
O cálculo ficou porém prejudicado à partida pela brusca aparição do Documento dos Nove. A partir desse momento, começou a definir-se um desacordo, discreto, mas cada vez mais profundo, entre Vasco Gonçalves e Cunhal. O primeiro acreditava, com a sua impulsividade um pouco obtusa, poder fazer frente ao desafio de Melo Antunes e avançar com o “poder revolucionário”. Mas o secretário-geral do PCP, para quem a unidade dos “militares democratas” era matéria de fé, entendeu desde logo que era preciso abandonar a trincheira.
Assim, enquanto V. Gonçalves obtinha do Conselho da Revolução a suspensão dos nove “rebeldes”, o CC do PCP fazia votos por “recomposições, reajustamentos ou reconsiderações que possam aumentar a eficiência governativa e alargar a base de apoio social e político do poder.”
A calorosa e “inabalável” adesão do PCP ao governo durante o turbulento mês de Agosto era em parte forçada – a base proletária do partido não entenderia outra atitude – e em parte calculada – com esse apoio o partido colocava-se em melhores condições para regatear uma plataforma com os Nove.
As motivações do PCP nesta conjuntura foram expressas com franqueza só um ano mais tarde, no relatório do CC ao VII congresso: “O PCP repetidas vezes chamou a atenção para os perigos da formação de um tal Governo sem se resolver a situação no MFA.” Formado este, o PCP insistiu na necessidade de uma “viragem na atitude da Esquerda militar (isto é, os “gonçalvistas”) no sentido da reaproximação e entendimento dos vários sectores do MFA, particularmente a Esquerda e os Nove.”
Por fim, a 28 de Agosto, perante a iminência de um desastre que V. Gonçalves se obstinava em não admitir, o PC decide-se a desautorizá-lo, renegando a FUR e lançando uma proposta pública de negociação ao PS e aos Nove. A proposta – é ainda Cunhal que o diz — “não foi bem recebida. A Esquerda militar, preocupada então numa aproximação com os esquerdistas, achou incorrecto admitirem-se conversações com os Nove e com o PS, que os esquerdistas acusavam de fascistas.”
Com esta oferta de capitulação ficou traçada a sorte da Assembleia de Tancos, donde Vasco Gonçalves saiu dias depois, amargurado pela derrota mas sobretudo pela traição do aliado.
Como chegara Vasco Gonçalves a colocar-se à esquerda do PCP? O que há de curioso no seu pensamento político e que o separa de Cunhal é que ele levou muito a sério o mito da transição para o socialismo no Verão de 75. Com a cabeça esquentada por leituras revisionistas mal digeridas, o “companheiro Vasco” acreditava piamente que se a aliança Povo-MFA se mantivesse firme na sua rota conseguiria levar de vencida todas as oposições, ganhando pedagogicamente a burguesia para o seu lado.
Como expusera com patética ingenuidade no discurso de Almada, abria-se “à pequena e sectores da média burguesia” a perspectiva de, “por uma via pacífica, ascenderem progressivamente à sociedade sem classes, na qual gozarão exactamente dos mesmos direitos que o resto da população.” (…) “Assim o queiram compreender.” Ascender à sociedade sem classes! – não havia melhor forma de pôr os patrões, os proprietários e os quadros em pé de guerra.
Cunhal não tinha esta ingenuidade. Os caminhos do PCP e da “Esquerda militar’ podem ter parecido idênticos, nesse Outono febril de manifestações e proclamações. Mas correspondiam a duas tácticas em disputa: a de uma fracção pequeno-burguesa inexperiente, que pretendia impor o “socialismo militar” em confronto com todos os sectores da burguesia; e a de um corpo pequeno-burguês amadurecido em largas batalhas políticas, considerando-se a si próprio como o condutor natural da classe operária e que se dispunha a procurar uma via mais prudente.
Naturalmente, para uns e para outros o objectivo era desviar o curso dos acontecimentos dos dois desenlaces extremos que os espreitavam: fascismo ou revolução proletária. Por isso, o PCP e os gonçalvistas” se encontraram unidos, apesar das suas divergências, na luta contra a direita e na luta contra a esquerda.
Não podia ser mais arrasador o juízo que Cunhal fez do “esquerdismo” no VIII congresso do seu partido. “Força complementar e aliado efectivo da reacção”, “procurou sempre agudizar os conflitos, provocar as forças armadas e militarizadas, a fim de que estas se voltassem contra o povo”, procurou “desviar as massas dos seus objectivos e levá-las a adoptarem formas extremas de luta que conduzem a becos sem saída”; “monumental provocação da UDP e outras forças esquerdistas” no assalto à embaixada de Espanha, “grande provocação diante do Patriarcado”, “contribuição sinistra para o enfraquecimento político e militar do MFA”, etc.
Este rol de acusações desenha melhor os contornos da “Revolução Democrática e Nacional” do que todos os textos programáticos do PCP. Na perspectiva de Cunhal, não havia caminho para a frente – logo, tudo o que fosse no sentido de agudizar os conflitos era provocatório. É com este tipo de raciocínio que o progressista dos tempos de paz se transforma em capitulador e mesmo em reaccionário, nos momentos de crise revolucionária.
Em 40 anos de luta abnegada pela Democracia, Álvaro Cunhal sonhara com um grande PCP legal, representado no parlamento e no governo, respeitado pela sua força nos sindicatos, nas câmaras, na intelectualidade. Mas no momento em que tudo isso fora alcançado, até para além das suas melhores expectativas, o mundo parecia ruir e uma agitação imprevista, poderosa e incontrolável, punha tudo em questão. Palavras de ordem inacreditáveis eram aclamadas em comícios e plenários – revolução socialista, controle operário, soldados ao lado do povo, tribunais populares, milícias! Mário Soares era apupado como fascista, oficiais democratas eram desfeiteados, tudo era subvertido. Esta subversão parecia-lhe produto da acção malfazeja dos “esquerdistas”. Recusava-se a reconhecer nela uma criação do movimento operário, subindo trabalhosamente, um a um, os degraus que o levariam ao confronto com a burguesia.
Por isso, via como única política possível em Setembro-Outubro tentar a todo o preço regressar a uma fase ultrapassada do movimento, abrindo caminho entre as tendências extremas da revolução e da contra-revolução: desligar os Nove da direita, mesmo à custa de concessões, desligar os “gonçalvistas” dos esquerdistas e voltar a colar as duas metades em que se partira o MFA democrático.
Mas, precisamente porque era um recuo, esta posição não era fácil de defender no Outono de 75. As massas operárias deslocavam-se ao encontro das palavras de ordem “esquerdistas”, que penetravam por mil canais nas fileiras do PCP. Toda a dinâmica da luta empurrava a base proletária do partido a aproximar-se da extrema esquerda para poder dar batalha à direita. Esses “esquerdistas” que ninguém levara a sério tinham adivinhado que o MFA não era de confiança, que a burguesia democrática iria passar-se para o outro lado da barricada, que era preciso pensar em tomar o poder.
O PCP foi sacudido por uma onda “sectária”, como Cunhal confessaria mais tarde: “Registou-se em certos momentos e em certos sectores um grande sectarismo e uma cedência à pressão esquerdista”; “houve palavras de ordem e formas de luta que não correspondiam às condições existentes”, “obreirismo”, “triunfalismo”; “a influência esquerdista fez-se sentir no cerco ao VI Governo pelos deficientes das Forças Armadas e pelos trabalhadores da construção civil”, etc.
A duplicidade de que o PCP foi acusado nesses meses, pelo facto de permanecer no VI Governo fazendo apelos à concórdia, ao mesmo tempo que “se decidira a fazer uma aliança com a extrema-esquerda” para a tomada do poder, tinha um sinal contrário ao que se lhe atribuía: Cunhal era forçado a lutar em duas frentes, negociando com o PS e os Nove para evitar um confronto, mas sendo suficientemente duro para não deixar os operários irem para os braços dos “esquerdistas”.
Até ao último momento, a direcção do PCP continuou a jogar com o pau de dois bicos. Para não perder contacto com o movimento, teve que esbater as críticas ao “esquerdismo” e foi radicalizando as palavras de ordem: saída do PPD do governo, reforço da representação da esquerda no poder civil e militar e, por último, “formação de um governo de defesa da Revolução” (manifesto do PCP a 22 de Novembro). Mas a sua estratégia permaneceu inalterada – impedir as massas de tomarem em mãos a solução do confronto (era isso que visava com o dramático “não à guerra civil”) e usar as manifestações como pressão sobre o CR e o PR para conseguir a “reunificação do MFA’. A rua ao serviço das instituições.
Nesses dias, a corrente de esquerda dizia muitas coisas acertadas e tomava iniciativas não menos acertadas. Desagregar a hierarquia do Exército, constituir os SUV (“Soldados unidos vencerão”) e trazê-los à rua, manter a mobilização e vigilância das massas através de sucessivas manifestações, reunir armas, assaltar a embaixada de Espanha, manter a funcionar a “Rádio Renascença”, cercar o governo em S. Bento, denunciar o CR como “Conselho da contra-revolução” – tudo isto era indiscutivelmente correcto – e é preciso reafirmá-lo hoje – porque servia a acumulação de forças revolucionárias pelo proletariado. O problema com esta agitação não era ela ser “excessiva” ou “provocatória”, como acusava o PCP na esteira do campo da ordem. Era precisamente o oposto – ela era insuficiente.
Para a iniciativa revolucionária das massas se tornar avassaladora, seria preciso descolar a base proletária do PCP do seu aparelho dirigente. A táctica da extrema-esquerda era incapaz disso porque não se apercebia da iminência de uma ruptura interna no PCP.
Na FUR, entrelaçada com o grupo do COPCON, prevalecia uma imagem do PCP como “o partido potencialmente revolucionário”, pelo facto de agrupar o grosso do movimento operário. Esperava-se que a pressão de esquerda acabasse por levar as bases a exigir da cúpula uma viragem política. Não se compreendia que um reagrupamento da classe operária em posições decididamente revolucionárias passava pela desagregação do PCP.
O outro ramo da esquerda (a corrente ‘marxista-leninista”) fazia grande alarde do seu corte “definitivo” com o revisionismo mas era igualmente incapaz de lhe arrancar a direcção do movimento. A sua denúncia da “sede de poder dos cunhalistas, ao serviço do social-imperialismo russo” confundia-se com a crítica social-democrata. Os seus ataques indiscriminados aos militantes do PCP como “caciques” favoreciam a coesão em vez da desagregação.
Seria preciso, com propostas de acção operária comum, obrigar Cunhal a revelar o seu reformismo diante da classe; mostrar aos operários que a estabilização unitária por que Cunhal lutava era inviável e só dava trunfos à reacção; criticar o PCP, não como “social-fascista”, mas como o partido reformista por excelência, que confiscava as aspirações revolucionárias dos operários e as fazia reverter, sob a bandeira do comunismo, em benefício da democracia pequeno-burguesa.
A extrema esquerda não sabia explorar o conflito latente entre proletariado e pequena burguesia nas fileiras do PCP porque receava encarar a grande batalha entre proletariado e pequena burguesia que estava em curso na “esquerda” e no país. Não via que o suporte social para as maquinações dos Nove, os atentados do ELP e as provocações intoleráveis do VI Governo era dado pela adesão massiva de uma pequena burguesia exasperada que acorria aos comícios e manifestações do PS, PPD e CDS, reclamando a restauração da ordem.
De etapa em etapa, a luta chegara ao ponto de clarificação – dum lado, o proletariado, as grandes massas assalariadas, os camponeses pobres, que precisavam de expropriar a burguesia e, para isso, desmantelar o Estado; do outro lado, a burguesia, atirando a pequena burguesia para a frente, em defesa da propriedade, da ordem e da integridade do Exército; no meio, a servir de tampão, travando lutas de retardamento, a “caldeirada” operária/pequeno-burguesa do PCP, dos ‘gonçalvistas”, do MDP, etc.
A extrema esquerda recuava diante da agudeza desta luta de classes. A UDP navegava entre duas águas. A partir de Outubro, retomou do PCP a palavra de ordem “não à guerra civil”, alegando que o essencial era ganhar tempo para recuperar o atraso da esquerda. Ora, no ponto a que chegara a luta de classes, a única forma de ganhar tempo não era com o papão desmobilizador da guerra civil mas impelindo mais audaciosamente a luta dos operários, soldados e assalariados para desorganizar e atrasar o golpe reaccionário em preparação. Com o seu capitulador “não à guerra civil”, temperado com impropérios contra o PCP, a UDP só conseguiu desmobilizar os seus próprios aderentes.
Os grupos da FUR, pela sua parte, viviam a vertigem insurreccionista, que era a outra face da mesma incapacidade revolucionária. O MES escondia sob a palavra de ordem de “unificar e armar o poder popular” a esperança de que os quartéis revolucionários conduzissem as comissões populares no derrubamento do VI Governo e na formação de um “governo de unidade revolucionária”. O PRP ultrapassou-o com o apelo à insurreição armada, que não era mais do que o apelo ao golpe militar de esquerda.
O melhor revelador das indecisões da extrema esquerda era a sua atitude quanto à questão do partido. Sem o seu partido próprio, a vanguarda operária estava em desvantagem irremediável perante as diversas fracções da burguesia e da pequena burguesia, todas organizadas em partidos fortes. Havia que organizá-lo, em corrida contra o tempo.
Aparentemente, os grupos ‘m-l” estavam mais avançados do que os outros nesta questão e colocavam a “reconstrução do verdadeiro Partido Comunista” na ordem do dia. Mas que partido era esse que preparavam e que veio a surgir tarde de mais, semanas após o 25 de Novembro?
Era um partido inspirado numa deturpação “popular” do marxismo, que iludia as tarefas revolucionárias do proletariado atrás de uma pretensa etapa prévia: a revolução democrática e popular”, conduzida por uma frente popular em embrião, a UDP, sob palavras de ordem de “unidade do povo”. Onde era preciso um partido de tipo bolchevique, leninista, enxertava-se um partido centrista de colaboração “revolucionária” de classes. Mesmo que tivesse nascido a tempo, o PCP(R) não teria alterado o curso dos acontecimentos.
A ala semi-anarquista agrupada na FUR proclamava à boca cheia a necessidade da revolução socialista, mas opunha-se à criação do estado-maior político para essa revolução. Encarava o partido como uma ameaça às comissões de base, a que atribuía o valor miraculoso de “parcelas de poder” e de únicos representantes genuínos da vontade das massas. Não via que, na ausência do partido, a vanguarda proletária não conseguia imprimir uma linha política coerente às comissões e que estas, com toda a sua “autonomia”, se tornavam joguetes de uma política precisa – a da pequena burguesia radical e do seu inevitável golpe desesperado.
A 20 de Novembro, o governo suspendeu funções, num claro convite ao Exército para assumir todo o poder. A multidão que acorreu a Belém nesse dia a exigir um governo revolucionário e gritando “ninguém arreda pé” recebeu o duche trio de mais um discurso contemporizador de Costa Gomes. O secretariado da cintura industrial de Lisboa foi o primeiro a dar ordem para voltar para casa.
Teria sido a última oportunidade para tomar decisões que bloqueassem o golpe de direita: proclamar a greve geral, constituir uma direcção de luta, colocar as empresas sob o controle das CTs. Mas o PCP nem queria ouvir falar em desafios desses e a esquerda não tinha forças para o fazer.
E, naturalmente, a batalha que se escamoteou no terreno político de massas foi transferida em caricatura para a conspiração de quartel. Os oficiais do COPCON e da FUR, aliados de ocasião dos “gonçalvistas” e do sector militar do PCP, decidiram-se a travar o ‘combate decisivo” à sua maneira.
“Chegou o momento do avanço decisivo para o socialismo”, proclamava a 21 o manifesto dos oficiais do COPCON. O poder dos trabalhadores tem que ser armado”. O objectivo era ganhar o apoio popular para um pronunciamento que impedisse a destituição de Otelo e demitisse os chefes de direita da Força Aérea.
A insubordinação dos pára-quedistas e o miniputsch esquerdista foram o triste desenlace a que se reduziu o grande movimento revolucionário de 74/75, o maior da história moderna portuguesa. Os operários que no dia 25 de Novembro se agruparam junto dos quartéis pedindo armas já se sabiam derrotados. Os chefes do PCP mandaram-nos para casa, com “confiança no futuro”. O golpe militar da social-democracia, longamente amadurecido, ia inaugurar uma nova era de estabilidade. Cunhal acolheu-se como refém submisso à protecção de Melo Antunes. Tudo acabara em bem: nem fascismo nem revolução.
Inclusão | 06/09/2018 |