“Ninguém no mundo pode impedir a vitória dos comunistas a não ser os próprios comunistas.”
LENINE(1)
“A justeza da política de Frente Popular antifascista aprovada pelo 7.º congresso da Internacional foi inteiramente confirmada na prática pela evolução dos acontecimentos, no limiar da II Guerra Mundial e posteriormente”, afirma-se no artigo do Zëri i Popullit atrás citado(2).
Naturalmente, só a propaganda reaccionária e social-democrata pretende hoje ofuscar o contributo formidável dado pelo povo soviético e pelos comunistas europeus para a derrota do império nazi, à custa de sacrifícios tremendos. Mas quer isso dizer que a política do 7.º congresso era justa? Ou não será que esses êxitos foram apenas uma pálida sombra dos que teriam sido possíveis se houvesse uma outra política?
Para ajudar a responder a esta questão, torna-se necessário recordar alguns factos sobre os quais a corrente centrista chefiada pelo PTA teima em fazer silêncio.
O preço da Frente Popular
Num primeiro momento, a linha do 7.º congresso abriu aos partidos um campo de intervenção política que parecia ilimitado. Foi o período áureo das frentes populares, em França, Espanha, Chile, e dos acordos com os PSD e outros partidos pequeno-burgueses. Cresceram os efectivos dos partidos (de 900 mil para 1 200 000, entre 1934 e 1939, sem contar o PC(b) da URSS)(3). Cresceu a sua influência em vastos sectores, até aí hostis aos comunistas. Os partidos rompiam o cerco e o isolamento, participavam nas alternativas políticas imediatas, influenciavam governos.
E esta a base para a tese dos “grandes êxitos políticos” do 7.º congresso, em que coincidem revisionistas e centristas. Mas estes êxitos eram extremamente ambíguos e ilusórios, traziam o descalabro a curto prazo. Era o “êxito” fácil que se ganha à custa de concessões à ideologia e à política democráticas da pequena burguesia.
Quais foram os custos imediatos da “abertura” do 7.º congresso?
- O centro de gravidade da acção política dos partidos transferiu-se da mobilização directa das massas proletárias e semiproletárias para o parlamento, para os acordos unitários com os partidos pequeno-burgueses, para a “grande política”. A acção de massas conduzida pelos comunistas perdeu independência e vigor revolucionário e descambou numa forma de pressão sobre as estruturas burguesas. Introduziu-se nos partidos a perspectiva nacional-reformista.
- Uma vez justificada a defesa da democracia burguesa, caíram todas as barreiras que até aí detinham as tendências para as manobras tácticas sem princípios. Os procedimentos tácticos oportunistas (coligações, apoio a governos) inundaram como uma avalancha a prática dos partidos.
- Para obter a unidade com a social-democracia, foi liquidada a corrente sindical de classe. Em Junho de 1936, o CEIC decidia concentrar a actividade da ISV num comité internacional pró-unidade com os sindicatos social-democratas. No ano seguinte, os sindicatos vermelhos foram integrados nos sindicatos reformistas. Em fins de 1937, a ISV foi oficialmente dissolvida(4).
- A luta contra o “sectarismo” e o “esquerdismo”, necessária para fazer triunfar a nova política, desagregou a vanguarda operária revolucionária que formava o núcleo dos partidos, ao mesmo tempo que abria as suas portas a uma invasão de intelectuais, estudantes e outros elementos das camadas médias. As directivas para colocar as células de empresa no centro da actividade do partido foram por água abaixo. A bolchevização passou a ser medida em termos de eficácia eleitoral e não da preparação revolucionária do partido.
Se quisermos traçar a radiografia do exaltante sentimento de êxito que envolvia os partidos neste período, teremos de constatar que a fácil popularidade subitamente ganha pelos comunistas, a simpatia com que eram acolhidos na família das “forças democráticas”, resultava de eles se oferecerem como ponta-de-lança leal para o combate ao fascismo sem pôr em causa a democracia burguesa. Em nome da luta contra o fascismo, os comunistas reentravam, como filhos pródigos, no mundo burguês a que tinham declarado guerra.
Esta viragem de fundo só se completou à custa da derrota das forças de esquerda que ainda resistiam nos partidos e da plena libertação das tendências de direita:
- Na Checoslováquia, a direcção Sverma-Slansky começou a lançar iniciativas políticas decalcadas pelas do PCF: diálogo com os social-democratas no governo, proposta de fusão dos sindicatos, apoio à política de Beneš, etc. Como esta guinada oportunista provocasse críticas de Gottwald, que reassumia a direcção do partido em Fevereiro de 1936, o Presidium do CEIC, reunido em Maio, desautorizou parcialmente Gottwald e rasgou caminho à abertura para a frente popular(5).
- Na Alemanha, o grupo de Pieck—Ulbricht venceu definitivamente, em Outubro 1935, as resistências “sectárias” da tendência Schubert-Schulte e lançou-se a procurar a unidade com a social-democracia(6).
- Entre fins de 1935 e meados de 1936, os partidos húngaro, jugoslavo e búlgaro foram repetidamente criticados pelo CEIC, pelo seu “sectarismo” e “passividade” na aplicação da nova linha(7).
- Na Itália, a aplicação do 7.º congresso produziu, num primeiro tempo, uma política de “reconciliação nacional” com os fascistas dissidentes, de tal modo oportunista que foi criticada de Moscovo por Togliatti.(8)
- Na Indochina, foi decidido, com base nas orientações de Dimitrov, pôr de lado a linha do 1.º congresso do PCI, de Março de 1935, e criar uma frente popular, visando não já a luta pela independência, mas a colaboração com o sector progressista do ocupante francês, contra os “colonos reaccionários”(9).
Mas o exemplo extremo foi sem dúvida o da França.
A Frente Popular em França
Em Janeiro de 1936, realizou-se o 8.º congresso do PCF, que aprovou o programa eleitoral e ao qual Dimitrov — distinção invulgar — enviou uma mensagem pessoal de saudação.
“O PCF — declarou então Thorez — não pensa que na sociedade moderna existam apenas duas forças frente a frente, dois grandes exércitos, o da burguesia e o do socialismo.” Isso seria uma “visão simplista”. “Nada do que é nacional nos é estranho.” “Privámos audaciosamente os nossos adversários das coisas que nos tinham roubado e que tinham deturpado. Retomámos-lhes a Marselhesa e a bandeira tricolor.”(10)
Com tão calorosa profissão-de-fé nacionalista e com a integração da CGTU na CGT, compreende-se que o congresso tenha tido como saldo a assinatura entre o PCF e a SFIO do programa eleitoral para a Frente Popular, dedicado a propor “soluções positivas para os problemas essenciais que actualmente se colocam à democracia francesa”(11).
A Frente Popular registou uma vitória estrondosa nas eleições legislativas. O PCF saltou de 10 para 72 deputados. Para isso muito contribuíra a política da “mão estendida” lançada por Thorez, num histórico apelo pela rádio, em 17 de Abril:
“Agora trabalhamos pela verdadeira reconciliação do povo da França.” “Estendemos-te a mão, voluntário nacional, antigo combatente que aderiste à Cruz de Fogo (organização fascista), porque és um filho do nosso povo, porque sofres como nós com a desordem e a corrupção...” “Nós, comunistas, que reconciliámos a bandeira tricolor do nosso pais com a bandeira vermelha das nossas esperanças”.(12)
Formou-se o governo de Frente Popular, de coligação entre socialistas e radicais. O PCF, parceiro da Frente, ficou fora do governo, não por objecções de princípio, mas para não assustar os radicais. Comprometeu-se, entretanto, a “apoiar o governo e com ele colaborar honrada e lealmente na realização do programa da Frente Popular”(13). Não tardou muito que tivesse ocasião para pôr à prova a sua lealdade.
De facto, a 11 de Maio começava o grande movimento grevista e de ocupação das fábricas, em apoio das reivindicações operárias, que abalou a França durante um mês.
O PCF não esteve em nenhum momento à cabeça deste movimento e limitou-se a acompanhá-lo para lhe limitar o alcance e evitar que se tornasse incontrolável. O Humanité acentuava que as greves e ocupações eram ditadas apenas pela exigência de “condições de trabalho mais humanas”, alertava que “acções aventureiras” só serviriam para suscitar a desconfiança e a hostilidade das classes médias, apelava a que o programa da Frente Popular fosse aplicado “na ordem, na calma, na tranquilidade”(14).
O movimento, contudo, continuou a alastrar, até conseguir a 8 de Junho importantes conquistas reivindicativas. Três dias depois, como se observasse relutância dos sectores mais avançados a pôr termo ao movimento, Thorez interveio, para convidar os operários a cessar as ocupações.
Esta atitude inaudita de sabotagem das greves fez maturar as posições da direcção do PCF num sistema mais elaborado de ideias revisionistas. “A Frente Popular — passou a defender Thorez — não é para os comunistas uma táctica de ocasião e menos ainda um cálculo eleitoral. É um elemento da sua política de fundo, uma aplicação dos princípios de Marx e de Lenine sobre a aliança necessária, até ao fim, da classe operária com as classes médias, não apenas para vencer o fascismo, mas para pôr termo à exploração do Capital”.(15) A Frente Popular, inicialmente justificada como uma necessidade táctica defensiva perante o fascismo, começava a tomar as dimensões de uma nova estratégia de passagem ao socialismo, em aliança “até ao fim” com as classes médias.
Desde fins de Julho de 1936, Thorez alargara já o seu conceito de Frente Popular à noção de uma “frente francesa”, englobando “todas as forças sãs da Nação”, contrárias ao fascismo e unidas “no respeito pela lei e na defesa da ordem republicana”(16). Como se vê, também na questão da “frente nacional” foi Thorez que deu o mote a Dimitrov...
No imediato, a política da Frente Popular parecia produzir um rio de dividendos. A ameaça fascista parecia ter-se evaporado perante a potência das “Esquerdas”. A CGT unificada organizava 4 milhões de trabalhadores. O PCF atingia em fins de 1936 os 260 mil membros — oito vezes mais do que em meados do ano anterior. Nesses dezoito meses a face da França tornara-se irreconhecível.
Contudo, a contínua deslocação à direita dos governos de Frente Popular veio a colocar o PCF na contingência de dar o aval a todas as medidas antipopulares em nome do “mal menor” e para não ser escorraçado da “união dos democratas”. Foi assim com a desvalorização do franco, adoptada pelo governo Blum em benefício da grande burguesia e que teve o voto de confiança do PCF. Foi assim com o estrangulamento da República espanhola pela chamada “política de não-intervenção” de Blum. A 13 de Fevereiro de 1937, Blum anunciou uma “pausa” na aplicação do programa da Frente Popular, pausa exigida pela burguesia. A 16 de Março, a polícia abriu fogo sobre manifestantes antifascistas em Clichy, fazendo 6 mortos. O PCF continuou contudo a apoiar o governo até ao fim.
Os dois governos que sucederam a Blum já pouco tinham a ver, mesmo formalmente, com a plataforma da Frente Popular, mas continuaram a ter o apoio do PCF. Os meios de negócios e o estado-maior preparavam, sob a capa do governo de “esquerda”, uma transacção com o regime nazi, enquanto o partido, metido na armadilha, por ele próprio montada, estava reduzido a disfarçar, com frases demagógicas, a sua impotência total. Para Thorez, a única saída, para não ter de confessar a derrota da sua grande política, era deslocá-la cada vez mais para a direita, procurar apoios na pequena burguesia, tranquilizá-la.
A traição de Munique, a liquidação da República em Espanha e a marcha final para a guerra encontraram o PCF amarrado de pés e mãos a um democratismo impotente. A política de Frente Popular, tão gabada no 7.º congresso acabava da pior maneira: na desagregação do movimento operário e popular.
E, como era inevitável, a integração do PCF no campo da democracia burguesa exigiu-lhe também a solidariedade com a burguesia na questão colonial. A partir de 1936, o chauvinismo desde sempre latente no partido, para onde fora transportado pelo velho partido socialista, assumiu uma forma aberta e mesmo brutal, sem suscitar contudo qualquer condenação pública por parte dos órgãos dirigentes da IC.
“Aqueles que, não compreendendo ou não querendo compreender nada da situação política da França e de todo o mundo — escrevia em 1937 o responsável do trabalho colonial do partido — desejariam que os povos coloniais se levantassem numa luta violenta contra a democracia francesa, a pretexto da independência (?), trabalham de facto pela vitória do fascismo e pelo reforço da escravidão dos povos coloniais.”(17)
Estas palavras dirigiam-se sobretudo para a Argélia, onde o PC se constituíra de forma independente (na realidade uma secção do PCF, como sempre foi), para aglutinar os sectores muçulmanos moderados e combater a ala intransigente da burguesia nacional argelina(18).
No 9.º congresso (Arles, Dezembro de 1937), Thorez apresentou um relatório sobre “A França da Frente Popular e a sua missão no mundo”, no qual o direito à independência era explicitamente rejeitado:
“O interesse dos povos coloniais está na sua união com o povo da França e não em atitudes que poderiam favorecer a acção do fascismo.”
Em 11 de Fevereiro de 1939, Thorez pronunciou um importante discurso em Argel:
“Sim, queremos uma união livre entre os povos da França e da Argélia... Vós também, muçulmanos árabes e berberes, todos filhos, se não pelo sangue, ao menos pelo coração, da grande Revolução Francesa..”(19)
Assim, vendendo, a coberto da bandeira vermelha, o seu chauvinismo tricolor, o PCF enfileirava também nesta frente ao lado da sua própria burguesia. Como é possível, perante isto, falar-se ainda hoje, como faz o PTA, numa “linha geral correcta no fundamental”?
O descalabro
Por toda a Europa, a social-democracia e os liberais não tardaram a recompor-se da surpresa causada pela abertura unitária dos comunistas e rapidamente aprenderam a utilizá-la em seu proveito. O imaginário “cavalo de Tróia” que Dimitrov prometera aos comunistas para conquistar o mundo burguês transformou-se num cavalo de Tróia bem real da democracia burguesa no interior dos partidos comunistas.
A luta pela paz e pela democracia, dominada pelo pacifismo e reformismo da pequena burguesia, não conseguia deter a marcha do fascismo para a guerra mundial. A nova crise económica que sacudiu o mundo capitalista na segunda metade de 1937 activava as tendências reaccionárias e a militarização nos principais países capitalistas. As melhorias económicas conseguidas pela classe operária em alguns países provocavam o retraimento dos meios de negócios e a consequente recusa da social-democracia a qualquer acordo com os comunistas.
As frentes populares, laboriosamente negociadas através de acordos de cúpula e das correspondentes cedências, começaram a ser rompidas, colocando os comunistas numa situação difícil. Segundo o testemunho, neste caso insuspeito, de um historiador revisionista, a política de frente popular chegara em meados de 1937 a um impasse na Checoslováquia, Polónia, Inglaterra, Bélgica, Noruega, Hungria, Grécia.(20)
Esta reacção da social-democracia, oposta à que se esperava, lançou a desorientação nos meios dirigentes da IC. Metido na ratoeira da sua própria política, Dimitrov não podia senão alternar a crítica moralizadora dos chefes social-democratas com novos apelos e propostas de acordo.
Num artigo pelo 1.º de Maio de 1937, o secretário-geral da IC classificava os dirigentes da IOS e da FSI de “inimigos da unidade operária”, que “intrigam, semeiam a desconfiança” e “sacrificam os interesses da classe operária em proveito das camadas mais reaccionárias da burguesia”(21). Mas, ao mesmo tempo, para não romper as pontes à negociação que ainda julgava possível, admoestava brandamente o chefe trabalhista Lansbury pela “ingenuidade infantil” de que dera provas ao avistar-se com Hitler!!.(22)
A Espanha em guerra, abandonada e traída peias “democracias”, era o teste das realidades da Frente Popular. Insistindo em proclamar “a unidade do proletariado internacional, imperativo supremo do momento actual”, o CEIC redobrava de apelos à IOS para uma acção comum em defesa da República espanhola, mas sem resultado.
No 20.º aniversário da revolução de Outubro, num artigo a que foi dado grande relevo pela IC, Dimitrov vincava solenemente a “responsabilidade histórica” da social-democracia no avanço incessante do fascismo e citava, contraditoriamente com tudo o que dissera no 7.º congresso, a fórmula de Staline de 1929: “Não se pode acabar com o capitalismo sem acabar com a social-democracia no movimento operário.”(23) Aproximava-se o momento em que ia ser forçoso abandonar as euforias unitárias do 7.º congresso.
A maioria dos partidos defrontaram assim o desencadeamento da guerra numa situação de caos político e ideológico, soterrados nos escombros das ilusões democrático-pacifistas que suscitara o 7.º congresso.
Foi o caso do partido espanhol, esmagado não apenas pela derrota militar mas sobretudo pelo descalabro da sua política de servente da República burguesa. Foi o caso do partido francês, cujos esforços convulsivos para salvar a política de Frente Popular o levaram a extremos oportunistas. Foi o caso do partido português, em desagregação total.
Por toda a América Latina, os partidos haviam abandonado a bandeira nacional revolucionária e o combate ao imperialismo americano, em nome da “unidade antifascista”: no Brasil, o PC passava atestado de “antifascista” ao ditador Vargas; em Cuba, o partido obtinha a legalização das mãos do ditador Fulgêncio Batista, enquanto a oposição democrática pequeno-burguesa era implacavelmente perseguida; no Peru, o partido apoiava a candidatura à presidência do ditador Benevides; etc. O PC da Indochina trocara a reivindicação da independência imediata pela denúncia do sector “ultra-colonialista” e em 1938 passou a apoiar os preparativos de guerra do governo colonial francês. Nas Filipinas, o partido pôs uma surdina na palavra de ordem da independência e fundiu-se com o partido socialista.
Amputados de perspectivas revolucionárias, entregues a direcções oportunistas, sangrados das suas melhores forças de classe pela campanha “anti-sectária” e pela sucessão de cedências sem princípios, privados do apoio da IC, já então praticamente liquidada, os partidos comunistas encontraram-se nas piores condições para enfrentar as duras obrigações revolucionárias que lhes eram impostas pela guerra.
Perante a evidência do descalabro, alega-se hoje por vezes que a linha da unidade antifascista, flexão táctica justa em si mesma, teria dado frutos negativos por ter sido indevidamente generalizada a países e situações a que não se destinava. Ouvimos esse argumento a Diógenes Arruda.
Mas é uma justificação insustentável. O próprio Dimitrov apresentara o seu relatório como uma nova orientação para toda a IC, como resultado de uma “autocrítica” sobre o caminho até aí seguido; definira a nova concepção da frente única operária e da frente popular como “a tarefa central imediata do movimento internacional do proletariado”; apresentara o governo de frente única como solução adequada para “uma série de países”; defendera a fusão com a social-democracia como uma via universal para a construção do partido operário único.
Seria aliás absurdo admitir que a assembleia suprema da Internacional se tivesse ocupado em traçar uma mera “flexão táctica” aplicável só a alguns partidos. Tratou-se indiscutivelmente da nova linha geral para todo o movimento comunista e como tal foi levada à prática sob a direcção do CEIC e de Dimitrov. E nessa qualidade de linha geral que a política do 7.º congresso tem de ser apreciada.
A “autocrítica”
A IC estava confrontada pelo fracasso incontestável da política do 7.º congresso. Impunha-se realizar um novo congresso (o que ainda teria sido possível, por exemplo, no Verão de 1939), que desse o balanço autocrítico aos quatro anos decorridos, levantasse de novo a linha revolucionária, coesionasse e armasse politicamente os partidos para responder à guerra imperialista, já inevitável, com a luta pela revolução.
Em vez disso, os meios dirigentes da IC trataram de se descartar das suas responsabilidades atribuindo o descalabro do movimento a erros de aplicação dos partidos, para não reconhecer que os erros tinham nascido aos cachos, como fruto de uma política direitista. Críticas ao oportunismo de diversos partidos foram feitas, por exemplo, por Manuilski no 18.º congresso do PC(b) da URSS, em Março de 1939(24). Crítica semelhante foi feita por Dimitrov no manifesto da IC pelo 1.º de Maio desse ano, ao assinalar que existia nos PC “um terreno propício à penetração... de todo o género de desvios oportunistas na política e na táctica”(25). Só não disse quem adubara o terreno para o tornar tão propício a todo o género de desvios oportunistas.
Entretanto, a súbita viragem da União Soviética para o pacto de não agressão com a Alemanha, quando se convenceu de que a Inglaterra e a França não desistiam de jogar os nazis para leste, deu lugar a uma reviravolta total do CEIC, que passou a dar o dito por não dito quanto à frente única e às frentes populares, sem mais explicações. A este respeito, é simplesmente espantosa a viragem feita por Dimitrov, num artigo publicado na imprensa da IC em Novembro, logo após o começo da guerra:
“No período anterior à guerra, os comunistas esforçaram-se por realizar a acção unitária da classe operária mediante acordos entre os PC e os PSD. Agora, um acordo desse genro é impensável. Na situação actual, a unidade da classe operária pode e deve ser obtida a partir de baixo...
No período anterior, os comunistas esforçaram-se por assegurar a formação de uma frente única popular mediante o acordo com os social-democratas e com os outros partidos ‘democráticos’ e ‘radicais’ pequeno-burgueses na pessoa dos seus organismos dirigentes, na base de uma plataforma comum de luta contra o fascismo e a guerra... Hoje já nem se põe a hipótese de falar em acordos desse género.
A frente única de luta das massas só se pode realizar por uma luta decidida contra os lacaios social-democratas, ‘democratas’ e ‘radicais’ do imperialismo, afim de eliminar estes agentes da burguesia no seio do movimento operário e de os isolar da massa dos trabalhadores.”(26)
Unidade pela base, nada de acordos de cúpula com os lacaios do imperialismo e agentes da burguesia... Onde tinham ido parar as perspectivas radiosas sobre o “processo de ascenso revolucionário que se está verificando no seio dos partidos social-democratas de todos os países?” Onde estava o balanço aos frutos desses esforços unitários e da “autocrítica” a que se submetera a anterior orientação da IC? Porque não aparecera o prometido “partido operário único”? Que era feito da furiosa denúncia como “ultra-esquerdistas” de todos os comunistas que em 1935 insistiam em considerar a social-democracia contra-revolucionária por natureza e se opunham à coligação com ela?
A solução mais cómoda para fugir ao reconhecimento do fracasso total do 7.º congresso era proceder como se ele nunca tivesse existido. “Nestes dois decénios de existência da IC — escrevia Manuilski na revista A Internacional Comunista, na Primavera de 1940 — nunca como agora a questão da liquidação da social-democracia no seio do movimento operário foi um objectivo táctico tão imediato”(27). “Esquecia-se” de dizer que esse objectivo fora, nos cinco anos anteriores, sacrificado à busca desesperada da coligação e da fusão com a social-democracia!
Poderá pensar-se que, mesmo sem autocrítica, esta viragem era apesar de tudo positiva, porque continha uma certidão de óbito das euforias oportunistas do 7.º congresso e um retomo às posições de princípio da IC. Mas não foi assim. Obrigado a abandonar as suas teses pela evidência do fracasso, Dimitrov limitou-se a largar lastro à direita para ganhar tempo e poder adaptar a sua linha oportunista às novas condições da guerra contra o nazi-fascismo.
Com efeito, o abandono da política das frentes populares e da frente única com a social-democracia não foi acompanhado por qualquer ressurgimento dos objectivos revolucionários que anteriormente guiavam a IC. Serviu, pelo contrário, de transição para uma nova viragem ainda mais à direita, que veio a tornar-se patente na fase final da guerra.
A frente nacional
O ataque da Alemanha nazi à União Soviética veio mudar o carácter da guerra mundial. Aquilo que começara como uma disputa entre dois blocos imperialistas pela partilha do mundo polarizou-se num confronto decisivo entre dois sistemas sociais. Criaram-se condições para um grande surto operário revolucionário.
A burguesia imperialista do bloco “democrático” apercebeu-se perfeitamente desse perigo e tratou de o neutralizar por uma reviravolta táctica. A União Soviética, até aí amaldiçoada em todos os tons pelo seu “bolchevismo totalitário”, passou a ser reconhecida como um baluarte da democracia. Staline, o “imperador vermelho”, viu-se subitamente tratado com deferência como o “generalíssimo”. Obrigada a reconhecer, pela força das circunstâncias, a União Soviética como a ponta avançada do campo antifascista, a burguesia imperialista ocidental passou a usar a sua imagem como engodo para acorrentar os operários à democracia burguesa. Era como se lhes dissesse: “Se és pela União Soviética, então és por nós, que somos aliados dela na luta por um novo mundo democrático e pacífico.”
Esta manobra podia ser frustrada se a IC e os partidos traçassem a alternativa operária independente face à guerra: concentrando todos os esforços na luta para derrotar as potências fascistas, manter clara aos olhos das massas a distinção entre a União Soviética e o campo “democrático” ocidental, defender a independência política e a independência da luta armada face à sua própria burguesia, acumular forças para passar imediatamente após a vitória na guerra à ofensiva pela revolução proletária.
A IC já abandonara contudo qualquer plataforma revolucionária independente. Fracassada a política das frentes populares, adaptou-se à nova conjuntura com a política de frente nacional, que consistia em meter a luta contra o fascismo nos limites da restauração do regime democrático-burguês.
O caso mais flagrante foi ainda o da França. Sem dúvida, o PCF foi, no meio da traição geral, o único partido a bater-se de facto pela independência. As fábulas que a esse respeito lançam os reaccionários e social-democratas destinam-se a fazer esquecer a sua própria traição. Dezenas de milhares de comunistas deram a vida pela derrota dos nazis.
Mas essa luta, orientou-a a direcção do PCF desde o primeiro dia para a restauração da democracia burguesa. A resistência não fez do PCF de novo um partido comunista, revolucionário, que há muito deixara de ser, mas acentuou cada vez mais o seu carácter pequeno-burguês reformista. Não há pois qualquer exagero em afirmar que esses milhares de comunistas se sacrificaram em vão, porque foram vendidos por Thorez à burguesia.
Logo no primeiro apelo de Thorez e Duclos à resistência, em 1940, a luta era colocada nos marcos da “salvação da França”, de uma “guerra nacional pela independência e a liberdade”. Denunciando os colaboracionistas ao serviço do invasor, o partido não tirava qualquer lição do comportamento traidor de toda a burguesia no período anterior à guerra, nem fazia qualquer autocrítica pelos resultados desastrosos da sua política de Frente Popular. O objectivo era a “frente nacional” para restabelecer a “grandeza da França”.
O desarmamento dos guerrilheiros e a dissolução das milícias, ordenados pelo CC do PCF em Janeiro de 1945, foi a conclusão previsível de um projecto político que Thorez concebera desde o início mas que, por razões tácticas, não pôde confessar desde logo. A medida que a guerra se aproximava do desenlace, Thorez teve contudo de falar claro, porque a burguesia gaullista e os ingleses lho exigiam. “Um único Estado, uma única polícia, um único exército”, proclamava a 27 de Novembro de 1944. E em Julho do ano seguinte, num discurso que ficou célebre, aos mineiros de Waziers, com a Alemanha já derrotada: “Não podemos aprovar a menor greve.”
Esta orientação não foi obra apenas de algumas direcções oportunistas, como ainda hoje se tenta fazer crer. Ela foi transmitida por Dimitrov e pela direcção da IC ao conjunto dos partidos. “Nos países da coligação anti-hitleriana — dizia a última resolução do Presidium do CEIC — é dever sagrado das largas massas populares, e antes de mais dos operários progressistas, apoiar por todos os meios o esforço de guerra dos governos desses países.”(28) Lenine dissera, a propósito da I Guerra Mundial, que “os traidores ao socialismo não prepararam no decurso dos anos 1914-1917, a utilização dos exércitos contra os governos imperialistas de cada nação”.(29) Há que reconhecer que a IC, em condições novas, também faltou ao dever de preparar a transformação da luta de libertação antifascista em luta pelo derrube da burguesia “democrática”.
Assim os comunistas nos países ocupados deram a vida aos milhares pela “honra da Nação” e, concluída a luta, entregaram as armas ao poder burguês “legal”, em vez de tentar impedir a sua instalação. Assim, graças à linha de “frente nacional”, os operários fizeram a guerra para a burguesia.
A dissolução da IC
Em 1943, quando a viragem no rumo da guerra pela vitória de Stalinegrado anunciava a aproximação de grandes abalos revolucionários na Europa e no mundo, com responsabilidades sem precedentes para os partidos comunistas, a Internacional Comunista foi dissolvida. O centro mundial do comunismo desapareceu quando tudo indicava que se ia tornar mais necessário do que nunca.
Ás teses burguesas, que atribuem esta medida às conveniências da política externa de Staline, desejoso de tranquilizar os aliados ocidentais, limita-se a responder a corrente marxista-leninista internacional com o gasto argumento da “maturidade” que teria sido atingida pelos partidos comunistas.
Argumento insustentável. Porque é que a “maturidade” dos partidos (que afinal se revelou como “maturidade” oportunista) havia de exigir a dissolução do seu centro único? Acaso deixara de vigorar o princípio proclamado por Marx e Engels, de que o comunismo só pode encontrar o seu caminho no plano da luta internacional do proletariado contra a burguesia? Quando o imperialismo dava novos passos na unificação da estratégia e da táctica contra-revolucionária, era essa a altura indicada para o proletariado revolucionário se dispersar em formações nacionais autónomas? Não mostravam os vinte anos de actividade da IC que o confronto e a fusão das experiências nacionais parcelares num centro mundial eram a única garantia de que os partidos se tornavam capazes de elaborar novas respostas, fazer frente à pressão do oportunismo e do nacionalismo, apoiar-se mutuamente?
Se a dissolução da IC esteve indiscutivelmente relacionada com a evolução da política soviética (que continua ainda hoje à espera de análise de um ponto de vista comunista), o que interessa ao âmbito deste estudo é mostrar as causas internas à própria IC que a encaminharam para esse desenlace.
A morte da IC fora ditada no 7.º congresso. A resolução de 15 de Maio de 1943, que dissolveu a organização, não foi mais do que a sua certidão de óbito.
Quando Dimitrov anunciou que “o congresso decidiu concentrar a direcção das operações nas próprias secções”(30) e Manuilski confirmou, logo após o congresso, que “o CEIC vai passar a interferir menos no trabalho das secções”(31), isto não significava apenas, como geralmente se faz crer, a passagem a uma estrutura mais descentralizada e flexível, mas uma ruptura com a própria concepção original da IC como partido mundial do proletariado. Ruptura que a nova linha política tornava necessária.
De facto, a política de coligação e fusão com a social-democracia e de colaboração com a democracia burguesa exigia, para ser aplicada, uma ilimitada liberdade de adaptação às particularidades nacionais, aos interesses de cada burguesia nacional. Ao permitir a cada partido que orientasse a luta antifascista e a luta de libertação nacional nos marcos da democracia burguesa, o congresso esvaziara politicamente a Internacional. Uma linha geral unificada tornava-se um estorvo à liberdade de manobra de cada partido comunista. Numa palavra: o abandono da estratégia da revolução proletária retirou à IC a razão de existir e lançou-a em processo de extinção.
O Comité Executivo encontrou-se sem funções. Se consultarmos as resoluções e artigos emanados do CEIC após o 7.º congresso, verificamos que a sua actividade passou a centrar-se na liquidação das resistências “sectárias” à nova política, abandonando por completo a análise global à situação e tarefas dos partidos. Deixaram de reunir os plenos do CEIC que tão grande papel haviam desempenhado no período anterior e toda a actividade dirigente se concentrou nas mãos do Presidium.
Em 1937-1939, quando a evolução acelerada para a guerra, o descalabro das frentes populares e a crise ideológica dos partidos requeriam o balanço à linha do 7.º congresso, o CEIC assinalava a sua existência por formais manifestos do 1.º de Maio.
O mais grave é que, na ausência do centro mundial único, eleito pelo congresso mundial e responsável perante todo o MCI, o seu papel começou a ser assumido de facto por centros regionais que a ninguém prestavam contas. Os partidos com maior influência, que eram justamente os que caminhavam na vanguarda da nova política e mais afectados estavam pelo oportunismo, o reformismo e o nacionalismo, puseram-se a tutelar os partidos menores e a metê-los na sua órbita. O PCF submetia às suas conveniências de aliança com a democracia burguesa os partidos da Indochina, da Argélia, da Bélgica, da Espanha, de Portugal. O PC dos Estados Unidos pôs ao serviço do seu escandaloso oportunismo todos os partidos da América Latina, do Canadá, das Filipinas, transformando-os em apoiantes da “democracia americana” e arrastando-os ao descalabro. O PC Inglês governava os partidos da Índia e de todo o Império. Assim, as relações de dominação imperialista por parte das burguesias reproduziam-se em inadmissíveis relações de tutela no campo do proletariado, numa clara manifestação do chauvinismo próprio da aristocracia operária e da pequena burguesia.
A Internacional passou a ser orientada, não pela linha revolucionária de outros tempos, mas por uma espécie de associação tácita de partidos influentes. Entre os grandes partidos do Ocidente e o PC(b) da URSS estabeleceu-se um novo tipo de relações ambíguas, que prefiguravam já o equilíbrio nacionalista instituído mais tarde pelo revisionismo. Declarando uma inalterável fidelidade à pátria do socialismo para não perder o crédito perante a sua classe operária, os grandes partidos oportunistas reservavam-se a liberdade para toda a espécie de manobras oportunistas e cedências à sua própria burguesia. O Partido Bolchevique, pela sua parte, a braços com a ameaça de agressão iminente do nazismo, deixava-se enredar na conciliação com a maré oportunista dos outros partidos, a troco do apoio à sua política internacional.
Quando se desencadeou a guerra, a IC já muito pouco tinha de comum com o partido mundial criado em 1919. Consumada a dissolução, não é de estranhar o que veio a seguir.
O browderismo
É altura de falar do “browderismo”, usualmente citado como uma das correntes geradoras do revisionismo moderno. Os factos mostram que ele não foi mais do que uma ramificação extrema do dimitrovismo, no clima envenenado da maior metrópole do imperialismo. À pressão máxima da burguesia sobre o movimento operário correspondeu o máximo oportunismo. Mas o tronco de origem é ainda o mesmo.
Vinha de longa data a ofensiva oportunista no PCEUA. Contra essa ofensiva levantara-se a IC através da carta de Staline e Molotov, em que se criticava a teoria do “carácter excepcional” do capitalismo americano defendida por Lovestone e Gitlow, culminando na expulsão desses dois dirigentes em Junho de 1929.
Durante os anos da viragem à esquerda da IC, que coincidiram com a grande crise nos EUA, os comunistas americanos fizeram importantes progressos na mobilização e organização da vanguarda operária, em luta áspera contra a perseguição policial fascista. Ficou histórico o papel do partido na longa greve nacional dos mineiros, de Maio a Agosto de 1931.
Mas as tendências oportunistas, obrigadas ao silêncio pelo ambiente de radicalização das massas e pela vigilância da IC, voltaram a levantar cabeça assim que a conjuntura se lhes tornou mais favorável. No 8.º congresso do partido, na Primavera de 1934, Earl Browder deu início a um esforço de adaptação da linha do partido a limites aceitáveis para o grande capital e atraentes para a pequena burguesia. A sua proclamação de que o comunismo não era mais do que “o americanismo do século XX” era uma nítida oferta de compromisso, uma tentativa para cobrir os comunistas com as cores nacionais.
Como reagiu o 7.º congresso da IC a esta suspeita deslocação? Não só Browder não foi criticado, como foi eleito para o Comité Executivo. E Dimitrov, no seu relatório, incitou-o a ir mais longe: “Pode o proletariado americano contentar-se em organizar apenas a sua vanguarda consciente, que está pronta a marchar pela via revolucionária?” — interrogava-se, para responder a seguir: Não, o partido deve ir mais além e animar a criação de um outro partido operário e camponês “que não seria comunista nem socialista”, mas uma espécie de frente popular de massas(32).
Quando o partido comunista americano, encravado na principal fortaleza da burguesia, se debatia com maiores dificuldades do que nenhum outro para preservar a sua identidade revolucionária, quando se impunha sublinhar que o futuro do comunismo nos Estados Unidos dependia do agrupamento mais sólido da vanguarda, do reforço da vigilância, Dimitrov vinha transferir as atenções para a criação de um novo partido “unitário”, o que só podia estimular o crescimento do oportunismo, como de facto aconteceu.
A crítica que se ouviu no 7.º congresso, acerca do partido americano, não foi ao oportunismo que se desenhava, mas ao “sectarismo”, por ter classificado a central sindical AFL como “organização fantoche puramente capitalista”. Sem comentários...
Após o 7.º congresso, Browder lançou-se a aplicar o espírito da frente popular às condições nacionais. O PCEUA apoiou sem quaisquer reservas Roosevelt contra o candidato republicano. Após a vitória dos democratas, Browder previu “uma reestruturação completa da política americana” e falou de “um novo partido que começa a tomar forma e inclui a maioria da população”, o qual seria “a expressão americana da frente popular”, graças aos apoios que receberia do Partido Democrático e dos “sectores progressistas” do Partido Republicano.
Como consequência desta viragem espectacular, a influência do partido nas camadas antifascistas e sindicais intermédias começou a crescer aceleradamente. O investimento na “democracia” dava dividendos. Isto ao mesmo tempo que começava a declinar a influência que o partido chegara a ter no proletariado revolucionário.
Como enfrentou ainda desta vez a direcção da IC este toque de alerta? Em Janeiro de 1938, o Secretariado do CEIC aprovou este “rumo audacioso” para a criação de uma ampla frente democrática e criticou o “temor” que ainda se verificava no partido a “incorporar-se num amplo movimento juntamente com as forças pequeno-burguesas, progressistas e democráticas”.
Não admira, portanto, que Browder desse um novo passo em frente no 10.º congresso do partido, em Maio desse ano, ao traçar-lhe como objectivo “preservar e ampliar a democracia” e criar uma “frente democrática” como primeira etapa para alcançar a frente popular. Para estimular essa corrente, proclamou no congresso “a fusão da tradição democrática americana com o socialismo” e juntou Marx e Lenine a Lincoln e Jefferson, como guias do proletariado americano...
Isto já era falar claro, mas não provocou qualquer sobressalto conhecido na direcção da IC. Em 1939, o PCEUA atingia o máximo do seu “esplendor” com 90 mil membros, mas estava em plena decomposição ideológica. As ideias pequeno-burguesas da colaboração de classes e do patriotismo campeavam nele sem freio. Browder metera-se a tutelar a maioria dos partidos comunistas da América Latina, para os integrar na sua política rooseveltiana, o que conseguiu, exportando a peste do seu oportunismo para todo o continente, também sem objecções do CEIC. Em Novembro de 1940, para salvaguardar a existência legal e a base de influência pequeno-burguesa, o PCEUA desligou-se oficialmente da IC, o que ainda desta vez foi aprovado pelo CEIC!
Quando Browder, em 1944, completou a sua trajectória com o passo que faltava, decretando a dissolução do partido, tornou-se forçoso expulsá-lo, reorganizar o partido e denunciar publicamente o “browderismo”. Mas a denúncia furiosa da sua traição individual, ocultando o sistema de ideias que lhe dera origem, a protecção e o estímulo que recebera do CEIC e de Dimitrov, impossibilitou uma verdadeira crítica. O PCEU e os partidos latino-americanos sob sua influência não fizeram nenhuma ruptura com o oportunismo browderísta, não despertaram as forças proletárias sãs dos seus países e foram dos primeiros a afundar-se no revisionismo.
Como classificar as condenações escandalizadas do browderismo que se “esquecem” de mencionar estes factos, senão como tentativa hipócrita do centrismo actual para desculpar o velho centrismo? Apedreja-se a ovelha ranhosa para que ninguém pense que ela foi criada no mesmo rebanho. Mas com isso a única coisa que se consegue é facilitar o alastramento da doença cujas raízes se escondem em vez de as pôr a nu.
As vitórias da guerra — ficção e realidade
“Durante a luta contra o fascismo e após a II Guerra Mundial — escreveu Enver Hoxha — ganharam grande relevo os resultados do trabalho realizado e da luta desenvolvida pelo PCUS, pela Comintern e pelos diversos partidos comunistas. Numerosos países da Europa e da Ásia entraram no caminho socialista. (...) Fortaleceu-se e temperou-se em bases sólidas a unidade marxista-leninista dos partidos comunistas. (...) A revolução ia em ascenso, em avanço contínuo, enquanto o imperialismo caminhava para o túmulo.” E conclui que este ascenso se teria transformado inesperadamente em recuo dez anos mais tarde, devido à conspiração dos revisionistas, camuflados no seio do movimento e postos à solta pela morte de Staline.(33).
Ninguém duvida de que o desaparecimento de Staline abriu caminho a uma brutal guinada à direita na União Soviética e no movimento comunista. Mas seria necessário passar além dessa constatação indiscutível e tentar explicar o que tornou possível a fácil vitória do revisionismo após 1953. Como é que a “sólida unidade” dos partidos e o “avanço contínuo” da revolução puderam transformar-se tão subitamente em cisão, crises e derrotas? Não será que no interior dessa “unidade” e desses “avanços” havia já sintomas da doença que depois se declarou de forma tão fulminante?
Sem dúvida, a guerra acabou com grandes vitórias para as forças democráticas. Mas se em vez de nos extasiarmos perante a “grandiosidade” dessas vitórias, reflectirmos um pouco sobre as dimensões dessa tempestade social que foi a guerra, a maior que a humanidade até hoje conheceu, teremos de colocar a questão em termos inversos.
Com efeito, a pergunta a fazer é a seguinte: porque é que a II Guerra Mundial, terramoto colossal que sacudiu até aos alicerces o sistema capitalista, aniquilou os centros mais ferozes do imperialismo e projectou o país dos sovietes como um dos mais poderosos da Terra, não terminou com vitórias revolucionárias muito maiores? Porque é que a guerra não abriu caminho a revoluções proletárias comparáveis pela sua envergadura à revolução socialista de Outubro? O surgimento das democracias populares na Europa Oriental e na China foi uma “grandiosa vitória” ou apenas o pálido reflexo dos triunfos revolucionários que a guerra tornava possíveis? Porque é que nenhum dos partidos comunistas dos países capitalistas conseguiu explorar as crises de poder abertas pela derrocada das suas burguesias, arrastadas na queda do fascismo (Alemanha, Itália, Japão, França, Espanha, Portugal, Grécia, Holanda, etc.), para levar a cabo insurreições populares que alargassem decisivamente o campo da ditadura do proletariado? Porque é que, à cabeça do movimento nacional-libertador que despontou à saída da guerra nos países da Ásia, Médio Oriente, Norte de África e América Latina, sugiram as forças da burguesia nacional reformista e não os comunistas?
Que as vitórias da guerra parecessem gigantescas nessa época, quando se julgava que a União Soviética era um bastião inexpugnável do socialismo, quando se acreditava que as democracias populares eram a antecâmara para novos regimes soviéticos, quando se cria a vitória ao alcance da mão para uma série de partidos — foi um erro de consequências fatais, mas na altura explicável.
Hoje, porém, depois de se ter constatado que a União Soviética, as democracias populares e o movimento comunista já estavam grávidos de revisionismo à saída da guerra, depois de se ter assistido ao ascenso do revisionismo sobre os escombros da IC, ao campear arrogante do imperialismo americano, com o seu cortejo de horrores, ao surgimento do social-imperialismo soviético, à crise que estrangula a revolução, buscando em vão vias de saída para as suas energias — perante estas lições da vida, continuar a glorificar as “grandiosas vitórias” da guerra é sinal de indigência mental.
Porque tiveram de ser o imperialismo e o revisionismo os maiores beneficiários de uma guerra cujos frutos pertenciam à revolução proletária e aos povos oprimidos? Porque traziam as vitórias da guerra tão grandes derrotas em germe? A isto deveriam responder os adeptos da linha do 7.º congresso, em vez de se refugiarem em banalidades sobre as “condições objectivas”, que explicam o que aconteceu... pelo facto de ter acontecido!
Na realidade, temos de concluir que as vitórias populares do fim da guerra, arrancadas ao preço de tanto sangue, foram apenas o eco atenuado daquilo que poderiam ter sido. A guerra poderia ter tido como desenlace uma vitória esmagadora para a revolução proletária se não fosse a fraqueza extrema a que chegara o movimento comunista, o processo adiantado da sua crise interna, a acção devastadora da política de compromisso instituída pelo 7.º congresso. À saída da guerra, a unidade do movimento não era sólida mas fictícia, a maioria dos partidos definhava na prática da colaboração “democrática” das classes, o marxismo agonizava como um dogma, o revisionismo germinava impetuosamente por todos os poros do centrismo oficial. Esta a verdade que teimam em esconder os defensores do 7.º congresso, acabando por ficar sem explicação para o surto contra-revolucionário do 20.º congresso.
Alguns desvios ou desvio geral?
Que após o fim da guerra já se manifestavam fortes tendências oportunistas nos partidos é facto admitido na corrente ML internacional. Mas essa admissão é limitada aos casos de reformismo flagrante, como os do PCF e PCI, ao mesmo tempo que se insiste na justeza da linha geral seguida e nos “grandes êxitos e vitórias” que teriam sido conseguidos. Resulta daqui uma apreciação ambígua, contraditória, tipicamente centrista, que deixa na sombra a penetração maciça do oportunismo no movimento comunista após a guerra mundial.
A primeira vista, parecerá absurdo pôr em dúvida sequer os grandes êxitos registados pelo movimento nos países capitalistas. Houve uma expansão prodigiosa da influência dos PC na classe operária e na pequena burguesia, nos sindicatos, parlamentos, municípios, na frente cultural. Fortes do prestígio que lhes davam os sacrifícios consentidos na luta antifascista, os comunistas rompiam o cerco de perseguições, discriminações e calúnias e faziam-se reconhecer como corrente popular legítima. As fileiras dos partidos engrossaram desmesuradamente. O comunismo tornou-se uma moda para a intelectualidade e a juventude.
Mas qual era o suporte político profundo destes êxitos estonteantes? Era apenas este: a burguesia imperialista ocidental, que tentara manhosamente livrar-se do nazismo e do bolchevismo atirando um contra o outro, viera a encontrar-se no fim da guerra aliada à União Soviética, devedora de gratidão aos comunistas, amarrada às promessas democráticas e libertadoras a que fora forçada para convencer os povos a combater. O tiro ameaçava sair-lhe pela culatra.
Nesta situação escorregadia, toda a burguesia compreendeu intuitivamente a necessidade de recorrer à táctica das concessões, de vestir a pele do cordeiro democrático-reformista-pacifista, apresentar os recuos forçados como dádivas, prometer o máximo para dar o mínimo, ganhar tempo para se recompor. Ocultar ao proletariado e aos povos oprimidos a verdadeira extensão da vitória que tinham ao alcance da mão por efeito da derrocada do nazismo e do triunfo da União Soviética — era nesse momento a questão vital para a burguesia.
Inversamente, o que estava em jogo para o proletariado e os seus partidos comunistas era não se deixar apanhar na armadilha das concessões mas utilizá-las a fundo para pôr a nu a mentira do democratismo imperialista, apoiar-se na radicalização a que a luta antifascista havia elevado o movimento operário e popular para activar a luta revolucionária, avançar audaciosamente virando a manobra burguesa do avesso.
Ora, não é preciso demonstrar que o terreno para uma utilização revolucionária da crise já tinha desaparecido por completo do horizonte da esmagadora maioria dos partidos em virtude da política praticada nos dez anos anteriores. Por toda a parte, os comunistas estavam confinados à luta pela democracia e nem sonhavam em pôr a questão da revolução como tarefa. Por isso, com raras excepções, jogaram em cheio o jogo do “mundo novo” que lhes era oferecido. Participaram nos governos de “reconstrução nacional”, apelaram à atenuação dos conflitos sociais, voltaram a propor a unidade e a fusão aos social-democratas, esforçaram-se por provar (à burguesia) que eram bons democratas. Todos declaravam o socialismo uma exigência inadiável; em revolução ninguém queria ouvir falar.
Nem sequer nas colónias. O último e desesperado gesto de boa vontade por parte do PCF foi votar os créditos para a guerra na Indochina, em Fevereiro de 1947, a fim de mostrar “até que ponto o PCF se preocupa com os interesses do país e tem um sentido agudo das responsabilidades”(34). Mas nem com isto conseguiu evitar a expulsão do governo, exigida pelos americanos, como condição para abrirem os créditos do Plano Marshall.
Esta gangrena reformista pequeno-burguesa cobria-se com um álibi aparentemente inatacável: a força colossal da União Soviética e o prestígio conquistado pelos comunistas iriam permitir daí em diante “o livre desenvolvimento no caminho do progresso e da democracia”, como dizia Dimitrov. Era como se as leis da luta de classes tivessem ficado para trás.
À sombra deste optimismo de papelão, deixaram-se massacrar os guerrilheiros gregos, pediu-se aos povos coloniais que tivessem paciência, para não desestabilizar o “avanço da democracia”, deu-se largas nos partidos ao chauvinismo insolente e ao cretinismo parlamentar da aristocracia operária e da pequena burguesia. Tudo ficou maduro para a entrada em cena do revisionismo.
Compreende-se que, para os revisionistas modernos, este seja um período áureo, pois serviu para assentar as bases ao triunfo em toda a linha da sua ideologia. E compreende-se também que o centrismo actual faça equilíbrios na corda bamba, denunciando severamente Thorez e Togliatti mas recusando analisar o quadro em que eles se moviam. A nata estava azeda, mas o leite era fresco...
Os comunistas, para completar o corte inacabado com o revisionismo, têm de fazer uma apreciação radicalmente diferente deste período. Têm de denunciar sem compromisso o oportunismo geral, de que Thorez e Togliatti foram os principais expoentes, e reconhecer que a euforia democrática do fim da guerra, pequeno-burguesa até à medula, representou um passo gigantesco do centrismo do 7.º congresso para apodrecer no revisionismo do 20.º congresso.