MIA> Biblioteca> Francisco Martins Rodrigues > Novidades
Primeira Edição: Tribuna do Congresso nº 12, 18 Dez 1982 (boletim interno de debate para o 4º Congresso do PC(R)
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Uma coisa à primeira vista desconcertante está a acontecer com o debate na Tribuna: à onda de críticas de esquerda, que põem em causa o caminho até hoje seguido pelo Partido, responderam escassas vozes em defesa do 2° e 3º Congressos e mesmo essas cada menos seguras. O camada Raul, que começou por considerar as minhas opiniões “delirantes”, acaba reconhecendo-lhes o mérito de “pôr o dedo na ferida” de males reais. Os camaradas Zé Alves e Luís Costa prometeram passar das lições de moral e outras miudezas à discussão política, mas ficaram-se pela promessa. A maioria do CC e dos quadros dirigentes do Partido mantém um silêncio prudente.
Grande número de camaradas (sobretudo operários) não se pronunciam sobre as questões políticas em debate e limitam-se a apelar à ponderação e equilíbrio, isto é, à conciliação de pontos de vista. O debate na Tribuna tem vindo a morrer. Na ausência de resposta às críticas de esquerda, a polémica esvazia-se. Há mesmo indícios de se caminhar para um certo consenso em torno de uma mudança na linha do Partido.
Parece que os portugueses têm que ser originais em tudo. Depois de termos atravessado uma revolução de cravos e uma contra-revolução sem tiros, iremos assistir agora a uma viragem radical na linha do Partido por unanimidade e aclamação? Será que não está em jogo a escolha entre dois caminhos? Será que tudo se resume a um mal-entendido?
É evidente que tal não pode ser aceite, sob pena de conduzirmos o Partido a uma crise maior ainda. Nenhuma viragem real é possível sem uma acesa luta de ideias que revele aos olhos de todos os militantes a natureza dos dois caminhos que se nos oferecem. Só nessa luta interna serão postas ao sol as raízes políticas do desvio que se apoderou do Partido. Só nela poderá forjar-se uma corrente de pensamento e um núcleo de camaradas capazes de se bater com coerência, audácia e determinação pelo levantamento do Partido da crise em que se encontra.
Há que reagir portanto contra o manto de silêncio que tem vindo a abafar o debate. O pior de tudo seria o pântano. Há que insistir em pôr o dedo nas feridas, que são muitas e já estão infectadas e gangrenadas. É preciso impedir que a táctica do silêncio salve da derrota o oportunismo no PC(R). Qual é o fundo do debate? É a hegemonia do proletariado. E o que é preciso para dar a hegemonia ao proletariado? É preciso desenganchar o proletariado da pequena burguesia. Discutir as lições da crise, o 3º Congresso, a linha sindical, a luta anti-revisionista, as listas únicas, etc., etc. sem ir a esta questão das relações entre proletariado e pequena burguesia, é perdermo-nos numa floresta incompreensível.
A verdade é que a nossa política desde o 2º Congresso apoia-se na tese da pequena burguesia como classe revolucionária (2° Congresso, pág. 31) e esta tese está errada. A pequena burguesia não é nem pode ser revolucionária num país capitalista que já passou por duas revoluções burguesas (1820, 1910) e onde o feudalismo foi há muito varrido. Os camaradas que se agarram desesperadamente a essa crença no revolucionarismo da pequena burguesia têm que se resolver a olhar a realidade de frente.
A atitude geral da pequena burguesia só pode ser oposta ou vacilante perante a revolução proletária, a democracia popular e o socialismo. Serão opostos e activamente contra-revolucionários os sectores da pequena burguesia que alinharão atrás de partidos como o CDS, o PSD e o PS. Serão opostos e igualmente contra-revolucionários os sectores pequeno-burgueses que alinharão atrás do PCP. A este respeito não pode haver qualquer dúvida.
Será vacilante a ala esquerda da pequena burguesia menos abastada ou arruinada, que poderá ser arrastada pela corrente da revolução, se esta for suficientemente enérgica, massiva e avassaladora. Essa ala esquerda pequeno-burguesa será tanto maior quanto maior for a determinação revolucionária da classe operária, dos assalariados rurais, dos camponeses pobres e outros trabalhadores.
Logo, é errado tudo o que obscureça os interesses próprios do proletariado em nome da “unidade popular”. É errado tudo o que cale a crítica e a demarcação da classe operária face à política pequeno-burguesa. É errado tudo o que esconda que a pequena burguesia sempre procura seguir o seu caminho de classe, que não é o da revolução. O decisivo para que alguma vez haja uma revolução em Portugal é libertarmos a classe operária da direcção política da pequena burguesia. Tudo o mais vem daí.
Se olharmos para a nossa linha política a esta luz, teremos que concluir que foi errado ver na crise de 1974-75 apenas a luta entre a via do povo e a via da burguesia, quando era preciso mostrar, dentro dessa “via do povo”, a luta subterrânea entre a via do proletariado revolucionário e a via da pequena burguesia reformista. Foi errado o 2º Congresso inventar um “caminho do 25 de Abril do povo” semi-revolucionário, que fosse atraente para os operários e não assustasse a pequena burguesia. Foi errado o 3º Congresso inventar uma “deslocação à esquerda de largos sectores pequeno-burgueses”, quando se metia pelos olhos dentro que essa deslocação estava a fazer-se para a direita. Foi errado o 3º Congresso fabricar a teoria de um “movimento democrático camponês” para meter a pequena burguesia rural no mesmo saco com o proletariado. Foi errado calarmos o carácter pequeno-burguês da política do PCP para não ferirmos as susceptibilidades dos nossos possíveis aliados pequeno-burgueses.
Foi errado o 3º Congresso ceder à pressão oportunista da cisão de Ricardo, virando o fogo da luta ideológica contra o sectarismo para poupar o oportunismo de direita. Foi errado embebedar o Partido com esperanças numa “política de milhões” que ia ao encontro dos preconceitos pequeno-burgueses das massas em vez de as elevar ao nível do proletariado revolucionário. Foi errado querermos alargar o Partido por uma “promoção Staline” que o aproximava do modelo pequeno-burguês em vez de o aproximar do modelo bolchevique. Foi errado sonhar com o efeito de grandes manobras tácticas eleitorais esquecendo a nossa fraqueza aterradora na classe operária, nos camponeses pobres, etc. Assim como foi errado querer reagir às propostas oportunistas com atitudes rígidas e sectárias que continuavam a isolar-nos da classe operária. Assim como é errado as nossas resoluções não exporem a situação política e as tarefas, do ponto de vista da classe operária e dirigidas à classe operária. Etc., etc.
Uma ideia está por detrás de todos estes erros: o medo de nos isolarmos da pequena burguesia, o desejo de entusiasmarmos a pequena burguesia, o esquecimento de que a classe operária é a chave de tudo. Vamos reconhecer esta verdade, camaradas!
Em Maio de 1917, Lenine respondia aos bolcheviques que temiam o isolamento: “A nossa atitude isola-nos dos que vacilam. E só há um meio de ajudar os que vacilam: é deixarmos nós próprios de vacilar”. Não vos parece que a carapuça nos serve?
Libertar ou não o proletariado da direcção política da pequena burguesia? A crítica de esquerda que se levantou no Partido pronuncia-se pela afirmativa. O camarada Raul, pelo contrário, protesta contra o “ódio chapado à pequena burguesia”. A maioria do CC vacila e tenta iludir a questão. Vai ser preciso decidir-se.
Inclusão | 26/08/2019 |