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Primeira Edição: Em Marcha, 13 de Outubro de 1982
Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Uma noite destas, talvez por estravagante conjunção dos astros, aconteceu-me esta coisa desnorteante: os programas disponiveis nas quatro estações de rádio eram uma tourada, uma missa, o comentário da bola e um discurso oficial.
Longe de mim, evidentemente, querer tirar desta coincidência qualquer comparação, que seria provocatória, com os tempos da ditadura. Hoje, a bola, as missas, as touradas e os discursos têm um conteúdo novo, democrático, sem nada de comum com o carácter alienante que tinham no tempo antigo. É a Democracia, com a sua varinha de condão, a transformar tudo aquilo que toca.
Mesmo assim, a coincidência deprimiu-me. De tal maneira que, no dia seguinte, negros pensamentos me assaltaram ao pegar nos jornais e ver que as concentrações operárias na Lisnave, Setenave e Siderurgia mereciam menos espaço do que as patacoadas da Madre Teresa ou as declarações de Otto Glória. Por mais que tentasse convencer-me de que não havia quaisquer más intenções por detrás disto, dúvidas atrozes infiltravam-se-me no espirito.
Inteiramente desmoralizado, pus-me a cogitar: será por falta de espaço que os jornais só falam da vida nas fábricas quando é para noticiar um acidente de trabalho e só falam dos bairros da lata quando é para noticiar um incêndio? Se toda a gente sabe que anda por ai uma roubalheira desenfreada, porque não falam disso os jornais? Porque é que os artigos de opinião calham sempre, por coincidência, a uns sujeitos conservadores e chatos? Porque é que, da tropa, só nos dão conhecimento das alocuções chachas dos generais e nada nos dizem sobre o que pensam os soldados? Porque é que das aldeias, só sabemos das romarias? Porque é que a vida real de milhões de pessoas aparece nos órgãos de comunicação como uma sombra esvaida ou como uma anedota?
Se eu fosse desconfiado, pensava que existe uma conspiração para cortar o pio aos que estão por baixo, para filtrar tudo o que não convém aos de cima, para dissimular habilmente a rodagem desta gigantesca máquina de ordenha de lucros que dá pelo nome de Democracia.
Se eu tivesse tendências subversivas, do que Deus me livre, dava razão a um tal Lenine, que dizia que a liberdade de imprensa da burguesia é uma grande burla, porque só os ricos têm dinheiro para sustentar jornais (e revistas e estações de rádio e televisão).
Mas eu não tenho essas tendências dissolventes. Acredito piamente que a nossa livre imprensa democrática e pluralista há-de conseguir espelhar cada vez melhor a vida real dos cidadãos.
A Censura acabou no 25 de Abril. Amén.
Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária.
Inclusão | 06/02/2019 |