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Primeira Edição: Em Marcha, 10 de Fevereiro de 1982
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Negros tempos aqueles em que o povo era espezinhado pelos ricos. Será que já todos o esqueceram?
Nesse tempo vergonhoso, havia quem estoirasse num jantar o dinheiro suficiente para uma família viver durante um mês. Aldeias em ruínas esperavam pelo dinheiro dos emigrantes para comer. Crianças patinhavam na lama de mil bairros da lata. Nos hospitais-antros, faziam-se festinhas de Natal, com biombos a esconder os moribundos. Velhos cansados deitavam-se debaixo do comboio. A cultura para o povo era a bola, o Papa em Fátima, a astrologia, a droga, a fotonovela. Havia legiões de desempregados, de vadios, de bandidos, de prostitutas.
Os de baixo nunca tinham razão. Se faziam greve, “ó da guarda, que estão a arruinar a economia”. Se gritavam na rua, “ó da guarda, que querem subverter a ordem”. Se morriam a trabalhar, era porque não tinham cuidado. Se andavam andrajosos, eram porcos. Se falavam, eram estúpidos. Se se calavam, estúpidos eram.
Era o desespero geral. Os políticos eram equiparados nas conversas de rua aos carteiristas. Parasitas engravatados vinham à televisão exigir a austeridade em nome do bem comum. Generais mercenários montavam guarda aos cofres das multinacionais, invocando a “Pátria sacro-santa”. A bandalheira farroupilha portuguesa era comentada com sarcasmo pelos jornais da Europa e da América.
Mas isso tudo foi pesadelo que ficou para trás. Hoje, ao aproximar-se o 8º aniversário da Revolução, respiramos a alegria da liberdade, do bem-estar, do sentimento colectivo de dignidade, de um povo que se governa a si próprio e sabe para onde vai. Ou não será assim?
Claro que não é assim. Por nossa desgraça, mal tivemos uma amostra do que podia vir a ser a democracia popular, logo nos caíram outra vez em cima os vampiros.
Mesmo assim, dirão que a comparação é injusta, porque nem tudo é igual a esse tempo. Pois não. Mas está a ficar muito parecido.
Tão parecido que talvez já seja a altura de começarmos a pensar na maneira de deitar abaixo este chafurdo. Com uma certeza, à partida: é que se nos aparecerem por aí uns capitães porreiros a oferecer um bónus para nos poupar trabalho, mais vale dizer logo: “Obrigadinho, mas vamos experimentar outro sistema”.
Para já, a greve geral. Depois, temos que pensar na continuação. Feita pelos de baixo. E dirigida por eles. também.
Inclusão | 03/08/2019 |