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Primeira Edição: Em Marcha, 14 de Janeiro de 1982
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Agora que falaram as figuras gradas do assalto de há 20 anos ao quartel de Beja, talvez não pareça mal que um paisano dê os seus palpites na matéria.
Sinceramente, parece-me que Beja merecia mais do que se disse. Entrar na discussão das desventuras, militar-conspiratórias do sr. Edmundo Pedro é fraca homenagem.
Antes de mais, não me venham com a história de que aquilo não foi um golpe tradicional, porque estava prevista a distribuição de armas aos trabalhadores rurais alentejanos. Os trabalhadores não eram tidos nem achados na coisa: seriam quando muito chamados a dar o corpo ao manifesto. E o mais certo era recusarem. E com razão.
O assalto de Beja foi uma aventura à partida condenada ao fracasso. Não por o capitão Varela Gomes ter sido demasiado temerário, nem por o general Delgado ter chegado tarde demais, nem por terem faltado os grupos de civis de Manuel Serra. Falhou porque foi construída a pensar na corrente de apoio no Exército ao general Delgado, revelada em 1958. Mas entretanto começara a insurreição em Angola. Goa caíra — e a massa dos oficiais oposicionistas já não sentia ânimo para pegar em armas contra Salazar: seria apunhalar a "pátria" pelas costas... Foram precisos 13 anos de guerra para mudarem de ideias. Esta é a verdade que não vale a pena esconder. O Exército traiu Beja.
Mas então porque se embalavam os conspiradores de Beja na esperança delirante da adesão de não sei quantas unidades, de marchas sobre Lisboa e colunas no Algarve?
O assalto de Beja só pode ser compreendido como o reverso e a crítica da política do PCP, que exasperava os antifascistas mais combativos. Álvaro Cunhal não dava um passo para empenhar o PCP no derrubamento do regime.
As armas que começavam a afluir ao aparelho do partido, entregues pelos primeiros desertores, eram rejeitadas. Os primeiros apelos à luta popular violenta contra a guerra suja eram censurados como "esquerdistas". Pior ainda: a criação de uma organização revolucionária de soldados e marinheiros estava proibida. Primeiro, porque Cunhal sabia que todo o oficial, por muito democrata que seja, não tolera ver os "seus" homens aliciados para revoluções. Depois, porque Cunhal receava que uma organização de revolucionários armados tomasse o freio nos dentes, como na revolta de 1936. Não é por acaso que ele gosta de citar a história do aprendiz de feiticeiro que desencadeou forças que já não podia dominar...
Cunhal não se impressionava com a efervescência. A situação, dizia, não estava madura. Havia que persistir nas pequenas e grandes acções de massas até se criarem as condições para o "Levantamento Nacional". Isto é: havia que ir fazendo força por baixo até apodrecer o regime e proporcionar uma "revolução" sem solavancos incontroláveis. Como efectivamente aconteceu no dia 25 de Abril. A distância, todos terão que reconhecer que Cunhal pensava mais na sobrevivência do sistema do que os impacientes golpistas.
Por tudo isto, dá vontade de rir a recuperação lacrimejante que o PCP agora promoveu do golpe de Beja. E dá vontade de chorar a incoerência com que alguns homens de Beja se prestaram a ser figurantes nas comemorações do PCP.
Inclusão | 22/08/2019 |