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Primeira Edição: Comunicação apresentada no Ponto 4 do seminário "Geopolítica da paz e dos conflitos, Módulo C- Zonas de tensão e conflito no sistema internacional contemporâneo", na Universidade de Coimbra, em 22 de Abril de 2005. Tema - Convergencia de três factores específicos e mais salientes na conflitualidade na América Latina: droga, indigenismo índio, área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Universidade de Coimbra, 22 de Abril de 2005
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
A América Latina é uma diversidade. Entre os países que a constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador comum entre eles é a dependência de um sistema de poder imperial e a herança resultante de terem sido com excepção do Haiti colonizados pela Espanha e Portugal cujos idiomas são hoje ali falados por mais de 500 milhões de pessoas.
Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas com poucas excepções ficaram assinaladas por políticas de genocídio. Os de Tenochtitlan, no México, e o posterior à conquista do Tahuantinsuyo, no Peru, deixaram memória pela sua amplitude. No Brasil milhões de índios foram também vitimas da colonização.
Essas chacinas, prolongadas, deixaram marcas profundas no imaginário dos povos mestiços contemporâneos, filhos de culturas antagónicas.
Na maioria dos países latino-americanos assume amplitude o movimento de repúdio à área de Livre Comércio das América (ALCA).
Os governos, com poucas excepções, aceitaram o projecto dos EUA, mas os povos rejeitam-no.
O nome, concebido em Washington, nas versões em espanhol e inglês, é propositadamente enganador. A chamada Associação de Livre Comércio das América não foi concebida para ser uma aliança entre iguais, mas sim um projecto recolonizador.
A grave crise que a América Latina atravessa coincide com a escalada agressiva dos EUA em busca da hegemonia planetária. Essa escalada é acompanhada de uma campanha mediática na qual a exigência de combate ao terrorismo serve de pretexto e justificação para uma política assinalada por agressões militares na ásia que visam o controle de recursos naturais de povos do Terceiro Mundo, sobretudo o petróleo e o gás.
Um dos objectivos da ALCA é a redução do colossal défice comercial dos EUA que no ano passado excedeu os 350 mil milhões de dólares. Outro, paralelo, é a apropriação das riquezas da América Latina, uma região que produz 40% do oxigénio do planeta, dispõe de um terço da água doce renovável da Terra e dos maiores recursos em biodiversidade.
A herança da dependência latino-americana, agravada pelas políticas neoliberais impostas pelo Consenso de Washington, transparece numa divida externa superior a 800 mil milhões de dólares, em permanente aumento.
A subida da maré do descontentamento aparece assim como fenómeno natural.
Segundo o projecto inicial, a ALCA deveria estar operativa em Janeiro deste ano. Mas o projecto fracassou em consequência da oposição do Brasil, da Venezuela e da Argentina. Em Março do ano passado as negociações foram suspensas e não voltaram a ser retomadas. Washington não designou sequer o sucessor de Robert Zoellink, que representou os EUA no diálogo com os 34 países do Hemisfério.
Perante o malogro do projecto, o governo Bush elaborou uma estratégia alternativa. Trata de assinar com diferentes países Tratados de Livre comércio bilaterais, ou seja uma ALCA em pequena escala. Significativamente os governos que já assinaram tratados desse tipo são aqueles cuja relação de dependência é mais ostensiva: o do Chile e os dos países da América Central. Na fila estão os da Colômbia, do Peru e do Equador.
A resistência da Venezuela era esperada. Mas a do Brasil um dos países que mais sofreria com a integração sob hegemonia norte-americana incomodou particularmente Bush. Sem o gigante brasileiro, a ALCA seria inviável.
Os governos dos países que assinaram Tratados Bilaterais afirmam que eles lhes asseguram uma melhor participação no processo de globalização. Consideram que os benefícios do livre comércio são maiores do que os inconvenientes do mesmo. Identificam nos TLC uma oportunidade para o crescimento económico.
O exemplo do México contraria essa argumentação.
Do balanço apresentado pelo Prof. Alberto Anaya no IX Seminário Internacional "Los Partidos y una Nueva Sociedad" (4 a 6 de Março pp, na capital mexicana) conclui-se que o Tratado de Livre Comercio da América do Norte (TLCAN) contribuiu no México para gerar:
O Prof. Arturo Huerta, da Universidade Autónoma do México, um dos economistas mais prestigiados do Continente, sublinha num ensaio que os TLC permitem aos EUA "ampliar os acordos preferenciais e a flexibilização para a entrada dos seus produtos e o investimento e obter o controle de sectores estratégicos que são do seu interesse, assim como salvaguardar os interesses das suas empresas transnacionais. Tudo isso actua em prejuízo dos países signatários dos referidos acordos. Com esses acordos bilaterais diminui a participação e o controle que os Estados nacionais exercem sobre a actividade económica, de modo a conseguir a abertura de novos sectores estratégicos e de alta rentabilidade ao capital internacional».(1)
Nos TLC que os EUA impôs sublinha "não se contemplam políticas de compensação e de apoio a infra-estruturas em benefício dos menos desenvolvidos, tal como as estabelecidas na União Europeia, onde os países mais fortes aprovaram políticas compensatórias de apoio aos mais débeis".
Não obstante o nível de informação dos povos sobre as consequências da ALCA ser muito baixo, a contestação ao projecto repito aumentou de ano para ano.
As conferencias e seminários anti-ALCA e outras iniciativas de protesto promovidas em diferentes países contribuíram para que o debate chegasse a amplas camadas da população em todo o Continente.
O balanço negativo para o Canadá e o México do Tratado de Livre Comercio da América do Norte NAFTA em inglês permite avaliar o que acontecerá na América do Sul se a ALCA for adiante.
No Canadá o domínio exercido sobre a economia do país pelas grandes transnacionais dos EUA levou à falência milhares de pequenas e médias empresas.
No México os efeitos são devastadores. Um punhado de transnacionais dos EUA é responsável por 25% das exportações do país. A propaganda do governo de Fox explora o facto de as exportações superarem actualmente 160 mil milhões de dólares por ano, mas oculta que somente uma percentagem mínima da riqueza produzida fica no país. A balança comercial continua a ser deficitária. é significativo que as remessas dos emigrantes sejam a principal fonte de divisas do pais, ultrapassando o turismo e o petróleo. A NAFTA contribuiu para que o desemprego tenha aumentado quase 10% desde o inicio da administração Fox. Actualmente, dos 105 milhões de mexicanos, mais de 60% vivem na pobreza, com uma alta percentagem de indigentes. A dívida externa ultrapassa os 150 mil milhões de dólares e a banca passou a ser quase totalmente estrangeira.
O México é um mostruário do que aconteceria na América Latina se o projecto concebido em 1991 pelo pai do actual presidente dos EUA se concretizasse.
A oposição da Venezuela Bolivariana assumiu, aliás, facetas de desafio porque Chavez propõe como alternativa uma integração que excluiria os EUA. A sua ideia da ALBA da qual Cuba seria membro é utópica, mas traz a certeza de que a oposição de Caracas à ALCA se radicalizou.
é significativo que a agenda das conferencias e seminários convocados para aprofundar o debate sobre a ALCA se tenha ampliado de ano para ano. Com o tempo transformaram-se em oportunidade para a transmissão e assimilação de um saber diversificado. Com a participação de personalidades eminentes da intelligentsia do Continente, incluindo estadunidenses e canadianos, aparecem como fóruns onde se discutem questões que transcendem a ALCA como cito a Divida externa a, a Militarização, o Ambiente, Cultura e Identidade, a Economia, a Agricultura, a Informação, os Trabalhadores imigrantes, as Mulheres, os Estudantes, os Camponeses, os Aborígenes, a Religião, os Parlamentos, os Direitos Humanos, as Lutas Sindicais, a Educação.
O nível da contestação e as formas de a expressar variam muito de país para país, mas no âmbito da Aliança Continental, criada para combater a ALCA, desenvolveram-se nos últimos anos acções de massas comuns que se inserem num programa hemisférico.
Aquilo que há quatro anos parecia impossível tornou-se uma realidade: a luta contra a ALCA mobilizou milhões de latino-americanos da Guatemala à Argentina.
O Continente Americano foi a área da Terra mais tragicamente marcada pelo massacre dos povos que o habitavam quando os europeus ali chegaram em força a partir do final do século XV.
El alguns casos, como no México e nos Andes centrais, as matanças assumiram as proporções de genocídios. Não existem estatísticas confiáveis, mas admite-se que a população de 10 a 12 milhões de ameríndios distribuída pela Mesoamerica quando Cortez conquistou e destruiu Tenochtitlan estaria reduzida a menos de dois milhões no inicio do século XVII. As doenças trazidas pelos europeus, as chacinas e o trabalho escravo foram as causas principais dessa tragédia. Nos territórios do antigo Incario que ocupava uma área que ia do sul da actual Colômbia ao Bio Bio no centro do Chile a população seria sensivelmente igual quando Pizarro iniciou a conquista. E as proporções do genocídio similares.
Darci Ribeiro admite no seu livro "O Povo Brasileiro" que no Brasil o total de aborígenes não seria, quando Pedro álvares Cabral ali chegou em 1500, inferior a 10 milhões. Exagera porque, na ausência de grandes civilizações precolombianas, as tribos existentes, em grande parte nómadas, não estavam em condições de produzir alimentos para uma população tão numerosa. Mas as matanças de indígenas, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, foram também devastadoras.
Nos actuais territórios dos EUA e do Canadá o genocídio é melhor conhecido. Estimativas de historiadores e demógrafos avaliam em dois milhões o total de índios que habitavam esses territórios. No final do século XIX restaria um décimo.
A vastidão argentina era quase desabitada, mas os índios foram dizimados sobretudo durante a ditadura de Rosas.
O Chile foi uma das regiões onde os povos indígenas opuseram maior resistência aos invasores europeus e seus descendentes. Historiadores chilenos sustentam que os araucanos hoje conhecidos como mapuches mataram mais soldados espanhóis ao longo de três séculos do que todos os demais povos indígenas da América Latina somados. Os mapuches aproximadamente um milhão num pais cuja população atinge 15 milhões continuam, alias, a lutar com tenacidade pelas suas terras ancestrais e contra a desflorestação.
Entretanto foi somente a partir da segunda metade do século XX que o indigenismo como fenómeno social adquiriu expressão e força.
José Carlos Mariategui, um dos mais notáveis pensadores políticos do Continente, procedeu a uma autêntica radiografia da realidade social do seu pais na obra hoje clássica "Siete Ensayos de Interpretacion de la Realidad Peruana".(2) Mas os movimentos indigenistas não dispunham então de condições mínimas para intervir activamente na história dos seus países.
Na própria literatura passariam muitos anos antes que José Maria Arguedas, outro peruano genial, oferecesse nos seus romances ele foi o criador do realismo mágico a visão e o sentir dos actuais comuneros das altiplanuras andinas.
Não cabe num trabalho como este esboçar sequer o panorama dos movimentos indigenistas contemporâneos na América Latina.
Chamarei assim somente a atenção para alguns aspectos da luta dos povos indígenas da Região por direitos que desde a Conquista lhe foram, pela violência, negados nas terras que eram suas.
Em primeiro lugar lembrarei aqui que o quechua e o aymará, as duas línguas principais do Incário são hoje os idiomas em que milhões de índios dessas etnias são alfabetizados em escolas do Peru, e da Bolívia. Quando, há mais de 35 anos, visitei pela primeira vez a capital boliviana, La Paz, quase 70% da população local tinha ainda como idioma materno o aymará.
Uma concepção sectária do nacionalismo desenvolveu-se ultimamente naquele país entre as comunidades aymarás. O seu líder, Felipe Quispe, assumiu inclusive uma posição separatista, preconizando a criação de uma Republica Aymará.
Essa etnia habita as áreas próximas do lago Titicaca, na Bolívia e no Peru. No total são menos de dois milhões.
No Equador, onde as comunidades quechuas são majoritárias, os movimentos indigenistas assumiram um papel decisivo na insurreição popular que derrubou um Presidente da Republica em l998. Agrupados na Confederação Nacional de Indígenas do Equador (CONAIE) esses movimentos foram a alavanca política da eleição para Presidente do coronel Lúcio Gutierrez, que havia sido o líder da marcha revolucionária sobre Quito. A traição de alguns dirigentes e a inexperiência de outros permitiram, entretanto, uma rápida alteração da correlação de forças. Eleito Presidente, após cumprir um tempo de prisão, Lúcio Gutierrez, incluiu no seu primeiro gabinete ministros índios indicados pela CONAIE, incluindo a titular dos Negócios Estrangeiros. Mas a lua de mel teve curta duração. Lúcio Gutierrez arquivou os compromissos com a CONAIE, reprimiu os movimentos indígenas e passou a ser um dos mais fieis aliados dos EUA no Continente.
O Pachacutik, partido cujos membros são originários das comunidades aborígenes, é entretanto hoje um dos principais partidos equatorianos. As intervenções dos seus dirigentes impressionam pela qualidade nos fóruns internacionais em que comparecem.
No Peru, o Presidente Alejandro Toledo é de origem índia. Mas, chegado ao poder, rompeu todos os compromissos assumidos com as massas indígenas. Educado nos EUA, é um neoliberal ortodoxo.
A Bolívia é no momento cenário de um processo que pelas suas características não tem precedentes. A luta para defender camponeses, na maioria indígenas, vítimas da brutal repressão do governo de Sanchez Lozada na sua campanha para a destruição de plantações de coca esteve na origem de um movimento MAS, cujo líder, Evo Morales, de origem aymará, adquiriu prestigio internacional.
Incapaz de criar culturas alternativas para substituir as plantações erradicadas, o governo de Lozada lançou na miséria milhares de famílias, criando condições favoráveis às mobilizações dos cocaleros. Numa ascensão vertiginosa, Evo Morales, com um discurso populista, somente não conquistou a Presidência da Republica porque a direita tradicional apoiou a reeleição pelo Congresso de Sanchez de Losada.
No desenvolvimento de crises em cadeia, o presidente, após matanças sangrentas, foi forçado a renunciar no contexto de uma insurreição popular em que os indígenas aymarás, os mineiros e os cocaleros cercaram La Paz, isolando a cidade.
O papel desempenhado por Evo Morales então e posteriormente, durante o actual governo de Mesa, não foi claro, mas a liderança que exerce sobre uma importante parcela das massas indígenas é uma realidade. O facto de liderar um movimento que defende os produtores de coca criou-lhe uma péssima imagem nos EUA. Condoleeza Rice, a actual chefe do Departamento de Estado, identifica nele um truculento revolucionário.
Essa opinião não é compartilhada pela maioria dos marxistas bolivianos.
O MAS não é ideologicamente um movimento socialista, mas Evo já foi convidado por Fidel a falar em Havana no Primeiro de Maio perante um milhão de pessoas.
Outro país onde a herança indígena tem um grande peso é o Paraguai. Nele o guaraní idioma também falado no oriente boliviano e por aborígenes brasileiros é no pais língua oficial ao lado do castelhano.
Um acontecimento de repercussão mundial viria no inicio dos anos 90 colocar o indigenismo no centro das atenções: a rebelião de Chiapas. Na realidade o chamado Exercito Zapatista de Libertação Nacional é uma guerrilha virtual, praticamente sem armas e que somente no inicio travou combates com as forças armadas mexicanas.
A ressonância do movimento resultou em grande parte do prestígio e do talento do seu mais destacado dirigente, o sub-comandante Marcos, um intelectual brilhante, ex. professor universitário, cujo discurso humanista, antineoliberal, chegou a milhões de pessoas através da Internet. A selva lacandona, em Chiapas, tornou-se um lugar de romagem, atraindo escritores e políticos de todo o mundo, entre os quais José Saramago.
Transcorridos 15 anos, a situação dos índios do México não se alterou sensivelmente e o novo Código indígena não lhes confere mais direitos do que o anterior, mas o fascínio exercido por Marcos sobre os intelectuais e a juventude não tem sido afectado pelo caracter polémico das suas teses sobre o Poder e o Estado, contestadas por intelectuais marxistas e por muitos partidos revolucionários.
Marcos é incontestavelmente um extraordinário fenómeno mediático. Mas ele próprio afirma ser um rebelde, não um revolucionário.
O narcotráfico assumiu nas ultimas décadas as proporções de flagelo mundial. Não é um fenómeno latino americano. Os seus tentáculos cobrem hoje todo o planeta. A produção de cocaína e de heroina e a sua exportação foram estimuladas pela procura externa. Os cartéis colombianos, os mais famosos, surgiram e cresceram estimulados pelas mafias importadoras da droga que tinham e continuam a ter seu polo nos países consumidores, sobretudo nos Estados Unidos.
As engrenagens montadas na América Latina não diferem aliás muito das que funcionam para o trafico da heroina, montado a partir das plantações de papoulas no Afeganistão e em alguns países do Sudeste Asiático.
A desinformação sobre o narcotráfico é tão ampla que a maioria da humanidade desconhece a rede de cumplicidades existente entre governos e serviços de inteligência de países que afirmam combater o narcotráfico e as mafias que o controlam.
Durante os anos 80 é um exemplo os EUA apoiaram com armas e dinheiro a Hesbe Islami, organização fundamentalista que combatia a revolução afegã. Ronald Reagan definiu então Gulbudin Hekmatyar, o seu líder, como um "combatente da liberdade". Ora, Gulbudin dirigia então o negócio da heroina. Ao longo da fronteira nordeste do Afeganistão tive a oportunidade de contemplar numa visita aquele país as imensas plantações de papoulas a partir das quais eram produzidos o ópio e a heroina que inundavam os mercados mundiais da droga. Actualmente o Afeganistão, ocupado por tropas americanas e europeias, produz muito mais heroina do que na época dos talibãs. A comunicação social estadunidense tem reconhecido essa realidade. Sobre o tema a prestigiada revista estadunidense Monthly Review publicou um interessante trabalho.
O relatório anual do governo dos EUA sobre o combate às drogas apresenta um panorama distorcido do problema. é dada uma grande ênfase aos esforços da Drug Enforcement Agency (DEA) nas campanhas que visam a erradicação das plantações de narcóticos e o trafico de heroina e cocaína. Capítulos inteiros são dedicados à critica aos governos, sobretudo da América Latina, acusados de colaboração insuficiente na luta contra o flagelo.
Mas o fundamental é omitido nesses relatórios. Em primeiro lugar não informam que a destruição de plantações de coca mediante produtos químicos como o gliosato proibido nos EUA e na Europa tem envenenado rios e terras da bacia amazónica e lançado na miséria milhares de camponeses. O glifosato é um herbicida que mata qualquer coisa com folhas. Segundo Sean Donahue, "disseminado por aviões de fumigação, torna-se uma arma indiscriminada que aniquila as culturas de alimentos e danifica severamente a selva. Ha evidências de que promove o crescimento de cogumelos tóxicos. O seu efeito persiste na água onde pode envenenar peixes, aves e anfíbios. Nos seres humanos provoca erupções, problemas respiratórios, náuseas e cegueira temporária(...) Há evidencias comprovativas de que a fumigação foi utilizada como estratégia para expulsar pessoas das suas terras, cobiçadas pelas empresas petrolíferas no sul da Colômbia.(3)
Entretanto, a produção de cocaína, na Colômbia e também no Peru, tem aumentado em vez de diminuir. Os grandes plantadores não foram afectados.
Em segundo lugar, o Departamento de Estado omite que o combate à droga se apresenta na prática intimamente ligado ao desenvolvimento da estratégia global dos EUA na Região. No caso da Colômbia, o Congresso aprovou recentemente a transferência de verbas do Plano Colômbia teoricamente concebido para promover o desenvolvimento económico e social e erradicar o narcotráfico para o combate aos movimentos guerrilheiros.
As ligações entre a DEA e os serviços de inteligência são inocultáveis, como ficou comprovado com a captura pelas Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia (FARC) de três agentes da CIA que viajavam num avião derrubado pela guerrilha há dois anos na região amazónica colombiana.
A documentação existente a maioria de fontes estadunidenses sobre os objectivos políticos das campanhas de desinformação relacionadas com o narcotráfico, é hoje torrencial.
Perante tamanha abundância, sugiro a consulta ao sítio web "The Narco News Bulletin", respeitado pelo rigor e qualidade da sua informação.
Nos últimos anos, as FARC colombianas foram apresentadas como a "guerrilha do narcotráfico". Incluídas na lista das organizações terroristas pelos EUA e pela União Europeia, os seus representantes são hoje perseguidos pela Interpol em dezenas de países.
Tive a oportunidade em Junho de 2001 de passar três semanas em acampamentos amazónicos das FARC. Escrevi sobre essa experiência uma serie de artigos publicados em Portugal, nos EUA e na América Latina. Quero apenas afirmar aqui que regressei da selva colombiana com a convicção enraizada de que os combatentes daquela organização guerrilheira são revolucionários que não somente não consomem drogas como estão empenhados no desaparecimento do narcotráfico.
Foi o Exército colombiano com o apoio de sucessivos governos quem criou como braço do estado para tarefas sujas as organizações de paramilitares, essas sim estreitamente ligadas aos cartéis da droga.
Cabe lembrar aqui, na Universidade de Coimbra, que o actual presidente da Colômbia, álvaro Uribe, que hoje se apresenta como paladino nas campanhas contra a droga, foi, quando governador de Antioquia o polo dos cartéis da cocaína quem promoveu e financiou o paramilitarismo, sendo publicamente acusado de manter contactos íntimos com o narcotráfico.
O tema, senhoras e senhores, é tão amplo que se torna extremamente difícil uma abordagem global que o ilumine na sua complexidade no breve tempo de que disponho.
Optando pelo pragmatismo, permito-me transcrever alguns parágrafos de uma entrevista que fiz em Março de 2004 com o responsável pelas Relações internacionais das FARC.
O meu interlocutor, o comandante Rodrigo Granda, foi posteriormente sequestrado em Caracas por polícias colombianos, em operação pirata violadora da soberania venezuelana e encontra-se hoje encarcerado num presídio de Bogotá, correndo o risco de extradição para os EUA.
Em resposta a uma pergunta minha sobre as acusações que apresentam as FARC comprometidas com os cartéis da droga, Granda mais conhecido como o comandante Ricardo Gonzalez respondeu:
"Contra nós sempre houve campanhas de desprestigio. Quando não existia o narcotráfico na Colômbia diziam que éramos a quinta coluna do imperialismo soviético, que as FARC eram financiadas pelos soviéticos e que somente por isso existiam. Depois trataram-nos como bandoleiros ou simples delinquentes comuns. Posteriormente sim, o senhor Stamb (ex-embaixador dos EUA em Bogotá e colaborador do Pentágono) forjou o epíteto da narcoguerrilha, e com frequência nos chamam também narcoterroristas ou simplesmente terroristas. é uma campanha bem orquestrada e montada em momentos escolhidos. Qualquer pessoa pode aperceber-se de que o negócio do narcotráfico é um negócio eminentemente capitalista, que na Colômbia, pelas condições específicas da aplicação das políticas neoliberais arruinou o campo, tirou da circulação um milhão e quinhentos mil hectares de terras, antes dedicadas ao cultivo do café, arruinou também toda a economia do sorgo, arruinou toda a economia de outro produto, o algodão. Os camponeses começaram a cultivar marijuana ou a plantar coca e isso foi em certa medida tolerado pelos governos colombianos. Os narcotraficantes na década de 80 estavam metidos em todas as camadas sociais do pais. O próprio Pablo Escobar, o rei da droga, fez-se eleger para a Câmara dos Representantes nas listas do Partido Liberal. E nos aviões dos narcotraficantes colombianos viajavam desde o presidente já falecido Carlos Lleras Restrepo até aquilo que vimos com o narcopresidente Ernesto Samper, que foi eleito com os dinheiros do narcotráfico. Recordo um episódio expressivo da hipocrisia dessa sociedade colombiana. Quando o papa João Paulo II visitou a Colômbia, os cartéis da droga reuniram uns três milhões de dólares para os oferecer a obras sociais do Vaticano.
Certamente o papa não soube donde procedia esse dinheiro, mas ele chegou às mãos do chefe da Igreja Católica.
Pablo Escobar era um homem muito religioso; rezava à Virgem Maria antes de colocar as bombas. Mas, enfim, como sabe, o narcotráfico contaminou todas as estruturas da sociedade colombiana, desde o parlamento aos grandes banqueiros e industriais, aos juízes e outros magistrados e à alta oficialidade do exército colombiano... Inclusivamente, aviões da força aérea colombiana levavam droga para os EUA. O navio insígnia da Armada colombiana, o "Glória", foi interceptado quando transportava cocaína. Até no avião presidencial, quando o dr. Ernesto Samper Pizarro ia visitar os EUA, encontraram cocaína. Mas obviamente esse negócio é dos mais rentáveis do planeta. Está quase no mesmo nível dos armamentos. Aqui o capital circula com muita rapidez; analistas do problema calculam que estão em circulação no mundo 550 mil milhões de dólares, produto do narcotráfico. Nesses 550 mil milhões a parte da América latina é somente de 20 000 milhões dos quais chegaram à Colômbia 5 500 milhões segundo os mais optimistas, embora se admita que a Colômbia produz 80% da cocaína do planeta. Onde permanece esse dinheiro? Dentro do Império; o grande negócio é dos próprios EUA. Durante os dois mandatos de Clinton a economia dos EUA cresceu 6,11%. Porque, claro, os capitais provenientes do narcotráfico irrigavam como torrente financeira a economia norte americana. As FARC propuseram aos EUA e à ONU e a todos os governos do mundo que estivessem interessados em dar combate ao narcotráfico uma política clara de substituição de culturas, de ataque em profundidade à questão. Nós recebemos os ataques dos grandes cartéis da droga porque tivemos de os enfrentar militarmente, porque a verdadeira aliança é a dos narcotraficantes com os paramilitares, com os homens de alguns comandos militares colombianos e toda a apodrecida casta política colombiana enlameada pelo negócio. São eles realmente quem o dirige, pois podem sair do país e entrar nele sem problemas. Nós não podemos sequer mover-nos livremente no território nacional, porque nos perseguem por todo o lado. Como sabe, desde a época da guerra fria, todo o Caribe e o Pacífico e a Região Andina estão infestados radares dos EUA. Nós dissemos aos gringos: deixem de ser hipócritas; o problema é vosso e vocês tiram lucros dele. Calcula-se que nos EUA, neste momento, haverá uns 25 milhões de consumidores directos de droga. Se admitirmos que cada habitante consumidor afecta quatro ou cinco pessoas, chega-se à conclusão de que 120 a 125 milhões estão envolvidos no problema. Para combater dentro dos EUA o flagelo dos narcóticos, o governo para reduzir 1% do consumo no interior do pais, curando viciados, promovendo campanhas nas universidades e colégios e entre a população em geral gastaria cerca de 180 milhões de dólares. Se dentro dos EUA se fizesse a mesma campanha, mas tendo como complemento o combate sério à entrada de droga no pais, então, para se obter a mesma redução de 1%, a Administração federal gastaria 380 milhões de dólares.
A hipocrisia é inocultável. Não combatem o problema nos EUA, mas levam a guerra contra a droga à Bolívia, ao Peru, ao Equador ou à Colômbia e então os custos para reduzir o consumo na mesma percentagem de 1% elevam-se a 780 milhões de dólares.
Por outras palavras, seria mais proveitoso para os EUA o combate no interior do seu próprio território. Nos propusemos no I Encontro Internacional sobre o combate a culturas chamadas ilícitas e ao narcotráfico, propusemos à União Europeia repito e ao presidente Pastraña substituir essas plantações com base num estudo realizado num município chamado Cartagena del Chairá onde existiam 7200 hectares de plantações de coca. A ideia era instalar ali um grande laboratório experimental, realizar um teste para provar que se pode efectivamente combater o narcotráfico em profundidade. Mas, como disse, logo se levantaram contra nós esses fantasmas que servem de pretexto aos EUA para agredir militarmente a Colômbia e esconder o verdadeiro objectivo do Plano Colômbia, que é um plano contrainsurreccional para acabar com as FARC, para implantar o seu domínio no país, agredir a Venezuela e, alem disso, apropriar-se da Região.
Já antes falámos da Amazónia, a propósito da cobiça despertada pelas suas riquezas. Lamentamos muito neste momento tão difícil que amigos nossos continuem acreditando em infâmias que visam a desacreditar a nossa organização guerrilheira. Sempre condenámos o narcotráfico como crime contra a humanidade. Sabemos dos males que causa sobretudo entre a juventude. Nós, nas áreas onde estamos implantados condenamos com muito rigor o consumo de estupefacientes.
Sendo maioritariamente camponesa, a guerrilha das FARC é uma guerrilha sadia. Os camponeses da Colômbia, os próprios camponeses dos EUA, como os de Portugal, da Argentina ou da Venezuela são gente sadia, que nunca utilizou drogas. Quem as consome são estadunidenses, digo milhões deles, o que demonstra o alto grau de desequilibro moral dessa sociedade. O mesmo acontece na Europa. Na Colômbia, nós não estamos envolvidos no negócio, mas a partir de calúnias afirma-se que as FARC são um movimento milionário, o que dá vontade de rir porque ninguém sabe com que sede outro bebe. Nós somos uma guerrilha autárquica e vimo-nos obrigados a autofinanciar todas as coisas. Há grandes industriais patriotas que contribuem para as FARC, tal como proprietários de grandes fazendas, que também nos ajudam. As FARC mantêm na Colômbia negócios rentáveis que facilitam o seu abastecimento. Obviamente, como é uma guerra que nos foi imposta e são os ricos quem tem o dinheiro, os potentados que se beneficiam do suor e das lágrimas do nosso povo, tivemos de recorrer por vezes a retenção de pessoas, os chamados sequestros, mas não esqueça que na última etapa, a partir de El Caguán, as FARC promulgaram a Lei 002, mediante a qual qualquer cidadão, nacional ou estrangeiro, cujos lucros excedam um milhão de dólares tem de pagar às FARC 10%. Estamos cobrando esse imposto e para o cobrar não pode ser com flores. Temos de agir porque as FARC, quando promulgam uma lei é para ser cumprida. Neste momento, cada vez mais industriais, mais banqueiros, mais transnacionais tocam à porta das FARC 'para saber quanto têm que nos pagar' ".
A transcrição foi longa, mas creio que as palavras de Rodrigo Granda serão mais úteis para iluminar o mundo podre do narcotráfico na Colômbia do que a leitura de dezenas de artigos sobre o tema.
Quero somente acrescentar que identifico nesse comandante das FARC um dos revolucionários mais puros e autênticos que conheci na minha já longa vida.
Encontrei-o pela ultima vez em Caracas, em Dezembro passado durante o Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade. Dois dias depois era sequestrado em pleno dia a dois passos do Hotel Hilton, no centro daquela capital.
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Vou terminar esta comunicação sobre os três temas que me propuseram, a ALCA, o indigenismo índio e o narcotráfico, inseridos na conflitualidade da América Latina. Pela sua diversidade, tenho consciência da inevitável superficialidade da abordagem que tentei.
Senhoras e senhores, se de algum modo consegui estimular o vosso interesse pela América Latina, pela sua história e pela contribuição dos seus povos na luta global em defesa da humanidade, ameaçada por uma crise de civilização, sentirei que valeu a pena corresponder ao honroso convite do meu amigo, o general e professor Pezarat Correia que me trouxe a esta Universidade.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Notas de rodapé:
(1) "Los Tratados de Libre Comercio Impulsados por Estados Unidos de América y la Profundizacion del Subdesarrollo", Arturo Huerta G., Universidad Nacional Autónoma de México, 2005. (retornar ao texto)
(2) "Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana", José Carlos Mariategui, Editora Alfa Omega, S. Paulo 1975, trad. brasileira. (retornar ao texto)
(3) "The Narco News Bulletin", 25/Março/2005 http://www.narconews.com/es.html (retornar ao texto)