Reflexão sobre as eleições portuguesas

Miguel Urbano Rodrigues

21 de fevereiro de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Os resultados das eleições portuguesas favoreceram o Partido Socialista, atribuindo-lhe uma ampla maioria absoluta. Seria uma ingenuidade esperar que a mudança de rumo por ele prometida se concretizará. Pode-se desde já afirmar que o futuro governo de Sócrates dará continuidade à política de direita dos governos anteriores. E isso era antecipadamente uma certeza.

Para se avaliar a complexidade da crise portuguesa é útil lembrar que na actual conjuntura europeia o desfecho de qualquer eleição legislativa, independentemente de diferenças importantes no desenvolvimento económico e cultural dos povos, não apaga uma evidência não assimilada pela grande maioria dos eleitores.

A afirmação de que na União Europeia há um défice de democracia adoça e oculta uma realidade preocupante.

O panorama não é uniforme, mas isso não impede o funcionamento da engrenagem do sistema. Nos 15 países da Europa que se assume como Ocidental (contrariando a geografia) é identificável um denominador comum. Em todos impera um regime que na prática é uma ditadura da burguesia com fachada democrática. Nos países ex-socialistas agora integrados na UE a faceta mais saliente é a sua relação de submissão a Washington e a tendência para autoritarismos de cariz fascizante.

Estou consciente de que a caracterização que faço do tipo de governos existentes nos 15 choca inclusive muitos companheiros de luta. Mas creio não exagerar ao utilizar a expressão ditaduras da burguesia. O que define um sistema de governo hoje, na Europa, é, em primeiro lugar, a sua atitude perante o capitalismo.

Em Portugal os dois partidos que têm estado no governo nas últimas décadas praticaram políticas neoliberais, em intima ligação com o capital financeiro e as transnacionais. É entretanto simplista a conclusão de que são iguais. Diferem pelo núcleo das suas bases sociais, pela postura adoptada na defesa do capitalismo e, naturalmente, pelo discurso que serve o seu manobrar táctico.

O PS insiste em apresentar-se como socialista, mas mesmo aqueles que nele dizem ser de "esquerda" não contestam o capitalismo. Propõem-se contribuir para a sua "humanização", o que é uma impossibilidade absoluta pela própria essência desumanizante da sua lógica e funcionamento. Como o alemão Bernstein no inicio do século passado, proclamam que, através de reformas graduais, a injustiça social tenderá a desaparecer, eliminando desigualdades afrontosas da condição humana. O discurso é farisáico; os dirigentes utilizam-no como instrumento eleitoral, mas tratam apressadamente de engavetar os seus próprios projectos formalmente orientados para tímidas reformas. Com os dirigentes que ele tem – e nada indica que mudem nos tempos mais próximos – apresentar o PS como um partido de "esquerda" é uma fonte de confusões.

O PSD esconde cada vez menos o seu desejo de levar adiante uma politica que aprofunde as clivagens sociais, um capitalismo ainda mais cruel, que aumente o fosso entre os trabalhadores e a classe dominante.

Admitir que na Europa maastrichiana está aberta a porta, no âmbito das instituições impostas pela burguesia, a mudanças estruturais rumo a uma democracia avançada é – sublinho – alimentar ilusões. Sem que ocorram grandes convulsões sociais, resultantes da luta dos povos, as mudanças, cosméticas, não evitarão o agravamento da crise.

O sociólogo húngaro-britanico István Mészáros alerta para uma realidade esquecida por milhões: Na pratica da social-democracia europeia (que engloba os partidos mal chamados socialistas) todas as reformas em debate pressupõem "a necessária exclusão de qualquer mudança estrutural radical, por qualquer meio (repressivo ou não) que a ordem constitucional imperante tenha à sua disposição".

É também Mészáros que nos chama a atenção para outra realidade: em décadas de permanência do poder os partidos social-democratas escandinavos tal como os da França, da Alemanha e da Grã-Bretanha não conseguiram, nem pretenderam, introduzir mudanças estruturais na ordem económica capitalista. Todos, sem excepção, se comportaram como dóceis administradores do sistema. Convêm alias recordar que o PS português se situa muito à direita dos partidos social-democratas da Suécia, da Noruega e da Dinamarca.

GRANDES LUTAS NO HORIZONTE

A crise global da humanidade é uma resultante da crise do capitalismo – uma crise perante a qual, pelo seu carácter estrutural, o imperialismo, sem soluções, tenta atrasar a derrocada do sistema, desacadeando guerras "preventivas" e saqueando os recursos do Terceiro Mundo.

A União Europeia é parte do sistema e nos diferentes países cumpre com zelo o seu papel.

É inocultável que o futuro da humanidade depende do desfecho da actual crise de civilização.

Seria portanto natural que o debate dos grandes problemas do mundo contemporâneo merecesse uma atenção permanente na campanha eleitoral portuguesa, porque a própria continuidade da vida se acha directamente ameaçada por uma politica imperial exterminista que pode levar inclusive à extinção da humanidade.

Entretanto, isso não aconteceu. O PCP foi a excepção. Tanto o PS como o PSD evitaram deliberadamente aprofundar a discussão sobre as grandes questões ligadas à integração na União Europeia, e ignoraram praticamente temas como a Palestina, o Iraque, e as tensões criadas dos EUA na América Latina, na Ásia Central e na Ásia Oriental.

Sócrates e Santana Lopes quase se limitaram a fazer a defesa entusiástica da Constituição Europeia.

A desinformação em Portugal atingiu tais proporções que a grande maioria dos eleitores desconhece que a Europa de Maastricht é uma construção contra-revolucionária. Nenhuma política progressista é possível no quadro de uma constituição que, pela primeira vez na historia, institucionaliza o capitalismo. Uma política única é predeterminada pela ordem constitucional. A tese segundo a qual a Constituição, a ser referendada pelos parlamentos, pode ser melhorada mediante emendas adequadas é enganadora.

Para as forças progressistas do Continente, a opção correcta implica uma luta difícil para quebrar a couraça supranacional e travar a caminhada suicida para o estado federal imperial. É difícil porque isso somente será viável no âmbito de um combate continental. Por ora, nos 25 o nível da solidariedade internacionalista dos trabalhadores é, sejamos realistas, muito baixo.

Falar por exemplo, da possibilidade, na actual conjuntura, de um projecto social europeu é semear ilusões. Fora de uma planificação socialista do desenvolvimento, sem que na Europa se implante o socialismo num grande pais, não pode sequer concretizar-se a reivindicação de um "salário mínimo continental" que não seja um caramelo envenenado. Como sublinha o filosofo marxista francês Georges Gastaud, "o IV Reich do capital esconde um punho de ferro na sua luva de veludo".

Mas como abater então a política económica imposta de Bruxelas e Frankfurt?

Seria romântico admitir que um pais pequeno e atrasado como Portugal está em condições de, isoladamente, desafiar a estrutura pré-federal da União Europeia.

As montanhas de obstáculos que surgem no horizonte não justificam, porem, atitudes pessimistas que conduzem na prática a renunciar ao combate. Os objectivos imediatos ao alcance dos trabalhadores podem funcionar como plataforma para ambições maiores. Um exemplo é a ascensão das lutas contra "o pacto da estabilidade" ligado à moeda única, autêntica polícia dos salários que destrói as conquistas sociais e reduz os gastos em todos os países sob tutela de Bruxelas.

O Partido Comunista Grego mobiliza-se cada vez mais contra a ditadura da União Europeia. Sair desta parece hoje uma utopia. Mas quase todas as rupturas revolucionárias se cumpriram contra a lógica aparente da história, desmentindo previsões.

A crise de civilização é anunciatória de grandes lutas. O fim do capitalismo senil não tem data no calendário, mas apresenta-se como uma certeza.

A Revolução Francesa de 1789 não principiou com a tomada da Bastilha. As suas sementes germinaram quando o despotismo dito esclarecido estava no auge. A Revolução Russa de Outubro não teria mudado a vida se na Rússia autocrática e atrasada Lenine e os seus companheiros não tivessem desde o final do século anterior previsto a sua inevitabilidade e trabalhado para a concretização do que parecia impossível.

A classe dominante francesa utiliza a palavra "catástrofe" para qualificar a situação que resultaria, num quadro caótico, da saída da França da União Europeia. Mas – cito mais uma vez Georges Gastaud – "uma saída da França da União Europeia somente seria uma catástrofe para a grande burguesia e os seus homólogos e mentores europeus. Os trabalhadores dos serviços públicos, os operários deslocalizados, os beneficiários da segurança social, os pequenos e médios agricultores…respirarariam, aliviados. Na Europa os trabalhadores sentir-se-iam encorajados".

O compromisso de um revolucionário, sobretudo de um comunista, não implica ser contemporâneo das transformações sociais pelas quais vive e luta. A vitória dos seus ideais pode ser posterior à sua morte. Ou ser adiada durante muitas gerações.

O inadmissível é o desalento, a capitulação numa época como a nossa de crise civilizacional em que um sistema monstruoso, o capitalismo globalizado, configura ameaça à própria sobrevivência da humanidade.

Estou consciente de que em Portugal a esmagadora maioria da população não está preparada para lutas que envolvam confrontações frontais com os poderes da União Europeia cujo projecto e ideologia ignora.

O nosso povo não constitui excepção. Lenine lembrou nos anos que precederam a revolução de Fevereiro que a ideologia da classe dominante marca decisivamente o conjunto de qualquer sociedade.

Essa realidade é ainda mais transparente, transcorrido um século, na era da informação instantânea, quando os meios de comunicação são controlados hegemonicamente pelo grande capital. Em Portugal a farsa cruel da ditadura da grande burguesia de fachada democrática é agravada pelo efeito desinformador e anestesiante de um sistema mediático (de intermediários medíocres, com raras excepções) que trata de impor modelos importados que glorificam o capitalismo selvagem e o individualismo mais feroz, e exorcizam a ideia da revolução social.

Subalternizando princípios eternos da condição humana, invertem valores, contribuindo para o avanço da alienação. Num contexto diferente, sonham, como Salazar, com a despolitização dos trabalhadores e o advento de uma massa amorfa de gente submissa à vontade e ao projecto do grande capital.

A revolução de Abril, cujas grandes conquistas no terreno da economia foram destruídas, deixou, felizmente, no plano social uma herança que, embora fortemente golpeada, resiste com tenacidade à ofensiva contra ela desencadeada.

Os factos confirmam, entretanto, que a capacidade demonstrada pelos trabalhadores na resistência à sua domesticação não é acompanhada por uma compreensão extensiva de que "a democracia representativa" não passa em Portugal de uma mistificação. Daí que alternadamente o PS e o PSD tenham, através do voto, exercido o governo para executar sempre políticas incompatíveis com as aspirações mínimas do povo e obviamente com os compromissos assumidos durante as suas campanhas.

O PS apresenta-se mascarado de partido de esquerda, mas todas as suas direcções comportaram-se como aliadas do grande capital e do imperialismo. Cabe-lhe a responsabilidade de ter contribuído decisivamente para travar o avanço da Revolução de Abril e participou activamente na conspiração que precedeu o 25 de Novembro. Sob a liderança de Mário Soares, chamou o CDS para o governo, inaugurando as alianças com a direita.

A escolha dos deputados do PS e do o PSD é sistematicamente da iniciativa dos respectivos aparelhos partidários, sem participação das bases Representam-se a si próprios e em muitos casos a interesses económicos.

O Bloco de Esquerda esforça-se por exibir a imagem de uma esquerda inovadora e combativa. Elegeu 8 deputados, mas é um partido integrado no sistema apesar do alarido que faz. Traz à memória os grupos que Lenine definia, pela ideologia e actuação, como "pequenos burgueses enraivecidos". Foi muito beneficiado pelo tratamento carinhoso que lhe dispensou a comunicação social.

Quanto ao CDS, cartaz da reacção ultramontana, esteve à beira da extinção e sobrevive graças ao carisma de um populista agressivo que sabe atrair os votos da direita saudosista. O senhorito Paulo Portas pode formar gabinetes fantasmáticos e até anunciar programas de governo, mas está consciente de que o seu partido cumpre apenas a função instrumental de muleta do PSD, quando tal lhe é indispensável. Paulo Portas anunciou a sua renúncia à presidência do CDS, mas tal decisão não altera essa realidade.

A excepção na caricatura de democracia existente é o Partido Comunista Português. Desempenhou um papel fundamental na luta contra o fascismo e na arrancada e defesa da Revolução de Abril. No espaço da União Europeia forma hoje com o grego, o duo dos grandes partidos comunistas que se assumem como marxistas-leninistas, não abdicando de uma perspectiva revolucionária de transformação da sociedade.

O quadro é sombrio e as eleições de Fevereiro não anunciam mudanças na política que conduziu o pais à crise que enfrenta. A maioria absoluta obtida pelo PS – o descalabro da passagem de Santana pelo executivo teve um efeito psicológico na votação – tende, pelo contrário ao seu agravamento.

A demagogia de Sócrates não impedirá que os problemas se acumulem em cadeia. Em vez dos 150 mil empregos que prometeu criar, assistiremos provavelmente a um aumento do desemprego. Em dois sectores nevrálgicos – a saúde e a educação – prosseguirá a degradação. O pouco que durante a campanha disse sobre a necessidade de mudanças na Segurança Social leva a crer que tudo fará para destruir conquistas históricas dos trabalhadores. No diálogo com Bruxelas e Washington a sua atitude será de uma submissão humilhante.

O quadro post eleitoral traz uma certeza: no horizonte imediato esboçam-se os contornos de um dos piores governos dos últimos 30 anos.

Essa perspectiva não justifica atitudes de passividade.

Um factor importante a ter presente é a interligação das crises. Pelo seu carácter estrutural, e não cíclico, a que afecta o capitalismo – repito – vai aprofundar-se nos EUA e na União Europeia. Portugal será duramente atingido.

A demagogia do governo de maioria absoluta será incapaz de evitar a subida da maré do descontentamento popular. A grande tarefa das forças progressistas – e em primeiro lugar do PCP como partido revolucionário – será contribuir decisivamente para que as lutas sociais que se perfilam num horizonte marcado pela luta de classes sejam orientadas não apenas para reivindicações sectoriais, mas, assumindo um carácter permanente, visem objectivos que firam a lógica e o funcionamento do sistema. Um exemplo: o combate tenaz, sem quartel, às privatizações, nomeadamente a da água e a da recolha do lixo, e campanhas pela renacionalizaçao de serviços públicos.

O aumento da votação na CDU e a eleição de mais dois deputados comunistas confirmaram que as forças mais progressistas da sociedade portuguesa – desmentindo as previsões da direita – mantêm intacta a sua confiança no PCP, reforçando-a. Essa votação vale por um estímulo à intensificação da luta.

A presença na Assembleia da Republica de uma bancada comunista batalhadora, distanciada do sistema, poderá nesse contexto assumir uma grande importância se o complemento das iniciativas parlamentares empreendidas no quadro institucional se inserir numa estratégia ambiciosa de denúncia firme da engrenagem da ditadura burguesa mascarada de democracia. Por si só, isoladamente, os projectos comunistas submetidos ao plenário não poderão, por mais justos e oportunos que sejam, impedir o desenvolvimento da política de direita do próximo governo. A função do Parlamento ao longo das últimas Legislaturas confirma essa evidência. Cumpriu o seu papel instrumental ao conseguir no fundamental sabotar ou neutralizar as iniciativas progressistas que se lhe afiguraram incompatíveis com a ideologia da classe dominante ou, para ser mais explicito, com os interesses do grande capital e as exigências do imperialismo.

Somente o povo português, como sujeito da história, poderá criar, pelos caminhos da luta, as condições indispensáveis a uma alteração de fundo da relação de forças, inviabilizando o prosseguimento da estratégia vassala de forças e partidos que empurraram o país para a beira do abismo.

Não concebo essa luta na linha de continuidade de outras travadas nos últimos anos pelos trabalhadores. Ela, para abalar os alicerces do sistema de opressão, terá de assumir um carácter diferente. Não revolucionário – o que seria impossível em Portugal neste início do século XXI – mas também não meramente reivindicativo e reformador.

Para responder ao desafio da história – no quadro de um combate cada vez mais global e internacionalizado – a luta do nosso povo terá de se inserir numa estratégia que recuse frontalmente, pela palavra e pela acção, o projecto de sociedade que levou o pais à beira do abismo.

A tarefa é ciclópica, não tenho ilusões, porque milhões de portugueses não se aperceberam ainda de que o capitalismo está condenado e assumiu no seu baluarte principal, os EUA, uma dinâmica exterminista.

Mas precisamente porque a irracionalidade do sistema de opressão ameaça já a humanidade como um todo, a luta contra ele não visa já somente mudar a vida. É para salvar a vida que urge combater pelo fim da exploração do homem.


Inclusão: 01/08/2021