MIA> Biblioteca> Miguel Urbano Rodrigues > Novidades
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Tal como o Fórum Social Mundial , o Encontro de Havana sobre Globalização e Problemas do Desenvolvimento foi mudando, acompanhando as rapidíssimas transformações do mundo nos últimos anos.
A atmosfera do VI Encontro foi muito diferente da que envolveu o I.
Este Fórum de economistas vindos de todos os continentes foi criado por iniciativa de Fidel Castro em 98. O objectivo era proporcionar um conhecimento mais profundo da problemática da globalização neoliberal numa época em que ele era ainda muito nevoento sobretudo na América Latina. O debate amplo teve como única fronteira a vontade dos participantes.
Havia uma enorme curiosidade em escutar os representantes das instituições ditas internacionais, mas criadas e controladas pelos EUA.
Como iriam intervir? No primeiro e no segundo ano exibiram uma grande timidez. Fidel incentivou-os a exprimirem-se livremente, sem complexos, porque não estavam numa caverna de leões. Mas as intervenções do representante do Banco Mundial e dos seus colegas de outras instituições similares, foram defensivas. A suavidade dos discursos soava como antecipação a criticas que temiam.
Esse estilo mudou.
Em anos posteriores vieram Prémios Nobel de Economia, todos dos EUA.
Diferentes. Stiglitz foi o primeiro a ensaiar criticas ao neoliberalismo. Tão hábeis que muita gente não percebeu que a sua postura não envolvia uma ruptura com a engrenagem básica do sistema, mas sim a vontade de introduzir no seu funcionamento reformas que o salvem. Tal como ocorreu com Lord Keynes, o objectivo de Stiglitz é garantir a sobrevivência do capitalismo.
Este ano apareceu em Havana uma equipa de economistas do sistema, de alto nível académico e técnico. Dois deles são Prémios Nobel, Daniel McFadden e James Hackman, aliás mais matemáticos do que propriamente economistas. A delegação do Banco Mundial incluía funcionários com grandes responsabilidades na instituição.
Com excepção de Fadden o estilo dessa gente foi ofensivo, senhorial, por vezes a roçar pela agressividade. Os Encontros anteriores trouxeram a Washington a certeza de que Cuba emerge hoje nas Américas como um espaço de debate muito especial onde é possível defender as teorias mais ortodoxas do capitalismo sem que os seus porta-vozes sejam tratados com descortesia.
E que ocorreu desta vez? Heckman e os dirigentes do FMI não se limitaram a fazer a apologia do neoliberalismo, da sua pretensa superioridade, sublinhando os imensos benefícios recebidos pelos que lhe aplicam as receitas. Com uma sobranceria que atingiu a arrogância, navegando entre a aula técnica e o discurso ideológico, tentaram "explicar" que o Consenso de Washington foi um projecto altruísta, ideado para bem da América Latina, tal como a ALCA. Se os resultados do modelo neoliberal nem sempre corresponderam às intenções a culpa teria sido exclusivamente dos latino-americanos. Se fossem neozelandeses ou australianos, ou mesmo sulcoreanos as coisas teriam sido muito diferentes na opinião dos profs. John Williamson e Guy Meredith, este do FMI.
Os dados estatísticos foram permanentemente manipulados, por vezes falsificados. Quando o debate envolveu o Tratado de Livre Comercio da América do Norte, TLCAN, os estadunidenses Luís Severn e William Malloney, do Banco Mundial, falaram como personagens de uma novela de Franz Kafka. Uma linguagem com toques extra-planetários sobrepunha-se à lógica aparente do discurso.
A resposta da América Latina foi serena, firme e demolidora. O argentino Julio Gambino, da Universidade de Rosário, desmontou a retórica do FMI. Demonstrou que a estratégia das Organizações Financeiras mundiais foi concebida para servir os interesses das potências dominantes e lembrou que o chamado Consenso de Washington não passou na prática de um diktat imperial imposto à América Latina com o apoio de oligarquias regionais e de governos para os quais a soberania nacional nada significa. Os factos comprovam e os números citados são indesmentíveis que a América Latina está mais endividada, mais pobre, e que o desemprego e a fome alastraram. Mobilizar os povos contra as políticas neoliberais responsáveis pelo agravamento da crise é, assim, uma exigência da historia.
O mexicano Arturo Huerta, da Universidade Autónoma do México, numa comunicação bem documentada, iluminou por dentro o TLCAN e a pesadíssima factura que o povo mexicano continua a pagar pela adesão ao Tratado, responsável pelo desmantelamento ou venda das suas industrias, e pela ruína alarmante da agricultura .
Pelo seu lado o professor brasileiro Renildo Sousa, e outros economistas latino-americanos colocaram contra a parede o Prémio Nobel Heckman em comentários críticos a que ele respondeu de maneira atabalhoada, inconvincente e por vezes quase insolente, pela carência de argumentos.
Outro defensor das políticas do Banco Mundial foi o brasileiro Luís Pereira da Silva, funcionario daquela instituição. Não foi original na repetição de teses bem conhecidas. Segundo ouvi de amigos de São Paulo, o ministro da Fazenda, António Palocci, acaba de o convidar para assumir um alto cargo oficial. A confirmar-se a noticia, a nomeação reforçaria a quinta coluna neoliberal instalada na Administração Lula.
Remy Herrera, da Universidade de Paris-1, estabeleceu a ponte entre as guerras de agressão imperialistas e a crise económica que nos EUA tende a assumir caracter estrutural. Numa das mais lúcidas comunicações apresentadas no Encontro, aquele investigador do CNRS da França chamou a atenção para uma realidade assustadora: o poder das finanças é sustentado hoje pela força bruta, pelo terrorismo de Estado, no âmbito de uma estratégia global que ameaça a humanidade.
Herrera pergunta se os EUA podem redinamizar a acumulação de capital no centro do sistema mundial mediante a guerra imperialista? A sua resposta é negativa porque as destruições de capital são «insuficientes para a acumulação capitalista, a menos que essas agressões se transformem em guerras permanentes dos EUA contra a totalidade do mundo, ou, pelo menos, contra o Sul» .
Sendo um Estado-nação parasitário que consome muito mais que produz, os EUA esforçam-se por bombear tantos recursos quanto possível.
Qual a saída? A da luta dos povos «Podemos resistir e temos que resistir!» --concluiu Remy Herrera
Numa intervenção de conteúdo diferente mas cujas conclusões coincidem com as do seu colega francês, o mexicano John Saxe Hernandez, da UNAM, esboçou também um quadro terrível dos perigos a que a humanidade está exposta pelo desenvolvimento da estratégia de um sistema de poder alucinatório dominado pela extrema direita estadunidense.
Promovido pela Associação de Economistas da América Latina e do Caribe, o Encontro de Havana atraiu 1470 delegados, de 50 países, e 9 organizações internacionais, novo recorde para uma iniciativa que emerge hoje como o mais prestigiado Fórum internacional de debates sobre Globalização e Problemas do Desenvolvimento.
Uma evidência: a defesa do neoliberalismo e das suas políticas pela task force estadunidense, reforçada por dois Prémios Nobel, não convenceu. Foi derrotada por KO nas sessões plenárias.
Cuba não teme a confrontação de ideias. Isso ficou transparente na impressionante diversidade de trabalhos apresentados nas cinco Comissões: Finanças, Comércio, Integração, Empresas e Desenvolvimento.
Pelo grande circo deste Encontro, simultaneamente internacional e cubano pela atmosfera, desfilaram também, como era inevitável, académicos cujas comunicações, pelo seu conteúdo absurdo, suscitaram mais sorrisos do que protestos. Um professor russo, com mentalidade de intelectual dos tempos do czar, debitou uma irada catilinária contra a Revolução de Outubro. Para ele tudo absolutamente tudo foi nela negativo. O homem não consegue enxergar nada positivo na herança da grande revolução.
Pessoalmente, não resisti a comentar a intervenção de um professor da Universidade do México, que sem disso tomar consciência, falou como um reaccionário quimicamente puro. Com apoio de belos diapositivos tratou de apresentar a União Europeia, hegemonizada pelo binómio Alemanha -França, como uma antecâmara do paraiso, identificando nela uma experiência valiosíssima para a futura integração latino-americana. Não creio que os meus esclarecimentos sobre o funcionamento da UE e o caracter nada humanista do capitalismo na Europa e das suas transnacionais tenha abalado o seu sonho de uma integração latino-americana inspirada pelos maravilhas da política franco-alemã.
Outra intervenção que divertiu a assistência foi a de um austero professor colombiano que, depois de fazer o elogio da opção revolucionaria, tendo como referencia os moços parisienses de Maio de 68, sugeriu como projecto revolucionário para a América Latina um pacto social dos «empresários patriotas com os trabalhadores para a construção de um capitalismo nacional».
Foi numa atmosfera de entusiasmo que, na sessão de encerramento, o plenário aclamou a declaração do Encontro de Estudantes da América Latina que havia transcorrido simultaneamente no Palácio das Convenções. Nesse documento, mais de 200 jovens de 15 países do Hemisfério condenam com veemência a globalização neoliberal e as tentativas de impor a ALCA, exortando os povos e particularmente a juventude a resistir e lutar .
A Declaração dos Colégios de Economistas da América Latina, também muito aplaudida, expressou um amplo consenso em torno de questões fundamentais. Num encontro em que participaram economistas com perspectivas muito diversificadas sobre os problemas do desenvolvimento económico, é positivo que tenham coincidido na condenação da globalização neoliberal e das políticas de ajuste que tem destruído os sistemas de saúde ,de educação e da segurança social -- é estimulante que tenham incentivado os povos a defender o ambiente e a soberania nacional ,participando decisivamente na construção do seu próprio futuro.
Coube a Fidel, pronunciar o discurso de encerramento.
Desta vez ele não teve a possibilidade de estar presente nas sessões plenárias. Mas, de longe, acompanhou o Encontro.
E que fez? Sempre imprevisível, assumiu o papel de repórter.
A primeira parte do seu discurso foi uma minuciosa síntese das comunicações apresentadas e dos debates. Depois, nova surpresa. Jornalistas da televisão e da radio cubanas haviam interrogado o povo nas ruas de Havana para avaliar as suas reacções ao que se passara no Encontro e numa mesa redonda em que haviam participado destacados economistas da América Latina. Nas respostas, interessantes, transparecia com nitidez, o elevado nível de consciência de um povo instruído, cuja reflexão sobre os grandes problemas do nosso tempo está marcada por profundas transformações revolucionárias que nas últimas quatro décadas mudaram a sociedade.
Fidel fechou a sua intervenção com uma firme condenação do neoliberalismo. Depois resumiu as ameaças mais recentes a Cuba de altos funcionários da Administração dos EUA e do próprio presidente Bush. Elas transmitem o retracto de um sistema de poder de matizes já neofascistas, eticamente degradado.
Mas o veterano dirigente foi bem claro. Cuba não se submete. Se atacada, saberá defender-se. Lutará.