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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
A tempestade de protestos que soprou pelo mundo no dia 12, fundindo num clamor planetário a condenação da guerra, tem um significado político e humanista transparente. Foi uma repetição. As gigantescas manifestações de sábado deram continuidade às do 15 de Fevereiro.
Os povos da Terra, pátria do homem, mobilizaram-se pela segunda vez num breve espaço de tempo para expressar a sua repulsa pela violência irracional e pelo projecto subjacente à tragédia iraquiana.
Nunca antes na história se produziu uma confrontação similar. Ela opõe um sistema de poder, economicamente muito poderoso e militarmente hegemónico, à esmagadora maioria da humanidade, representada pelo exército sem armas que em centenas de cidades da Europa, da Ásia, da América, da África, da Oceânia sai às ruas para advertir que as coisas não podem continuar assim.
A destruição das grandes cidades do Iraque e a morte sob os mísseis e bombas dos agressores de milhares de civis foram o desfecho esperado de um projecto anunciado com suficiente antecedência para que a recusa de aval do Conselho de Segurança das Nações Unidas o fizesse aparecer como uma guerra de agressão dos EUA, uma guerra selvagem, ilegítima, concebida para roubar o petróleo de um pequeno país, no âmbito de uma ambiciosa estratégia de dominação planetária.
Em si mesmas as imagens das manifestações de repúdio à cruzada de barbárie demonstram que a campanha de desinformação montada pelos governos de Washington e Londres com a cumplicidade das transnacionais que controlam as grandes cadeias de televisão não conseguiu atingir um dos seus principais objectivos.
Mas a engrenagem responsável pela guerra conseguiu até agora desviar a atenção daquela que é a maior fragilidade do sistema de poder imperial: a falta de uma base social de apoio estável e suficiente para o desenvolvimento da estratégia na qual a vandalização do Iraque foi somente uma etapa.
Todos sabemos que a «coligação dos 50» é um slogan da propaganda. Na prática apenas os governos de três países apoiaram a guerra estadunidense: os do Reino Unido, da Espanha e da Austrália, com a peculiaridade de, no terreno militar, somente a participação britânica ter sido significante.
Sabemos também que uma parcela ponderável do povo dos EUA, que inclui grande parte da intelligentsia, condenou a guerra e está a desempenhar um papel importante no combate ao projecto imperial. Sabemos igualmente que os povos da Grã Bretanha e da Espanha se opõem maciçamente à política capituladora dos respectivos governos e exigem nas ruas a demissão de Blair e Aznar. Na Austrália o panorama não é muito diferente.
Essa contradição entre governantes e povos ilumina com luz forte a fragilidade de uma aliança fantasmática. A guerra genocida contra o Iraque foi imposta pelo sistema de poder estadunidense, com a adesão de dirigentes políticos cada vez mais veementemente desaprovados pelas populações que os elegeram.
O Presidente dos EUA ainda consegue iludir a maioria do eleitorado do seu pais, embora o índice da sua popularidade tenha caído acentuadamente. Segundo uma sondagem publicada pela revista Newsweek, apenas 51% dos eleitores votariam nele hoje para Presidente.
Porventura estará o movimento universal de condenação da guerra a aproveitar todas as possibilidades oferecidas pela contradição acima citada? Não creio. Conhece as fragilidades do inimigo, mas não as tem explorado suficientemente, por falta de organização centralizada.
Em Washington, os estrategos do plano que, a ter êxito, conduziria gradualmente a uma ditadura militar planetária e a um fascismo de novo tipo, estão apreensivos — embora não o confessem — com a caudalosa vaga de indignação levantada pela invasão e ocupação do Iraque.
Sistema de poder algum consegue alcançar os seus objectivos e manter-se por muito tempo se encontra pela frente a oposição activa e organizada do seu próprio povo. Neste caso é a força torrencial da oposição dos povos da Terra que tende a promover nos EUA (e nos estados satélites como o Reino Unido e a Espanha) a rebelião das consciências.
Zbignew Brezinski, um dos mais talentosos ideólogos da direita norte-americana, sintetizou assim uma das metas da actual Administração: «O objectivo dos EUA deve ser conservar os nossos vassalos em situação de dependência, garantir a sua docilidade e a protecção dos nossos soldados, bem como evitar a unificação dos bárbaros».
O prof. Stephen Hares, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade de Harvard, diz o mesmo usando outras palavras: «O nosso objectivo não é lutar contra um rival, porque este não existe, mas conservar a nossa posição imperial e manter a ordem imperial».
Essa linguagem faz lembrar a de Roma após a destruição de Cartago, quando passou a exercer uma hegemonia total sobre o Mediterrâneo Ocidental. E também as proclamações dirigidas pelos procônsules de Hitler aos povos da Polónia e da Checoslováquia.
No seu quartel general do Qatar, o general Tommy Franks, interrogado sobre o numero de vítimas civis iraquianas, respondeu secamente: «nós não contamos os cadáveres».
O comandante da máquina de guerra que chacinou milhares de pessoas e os intelectuais que definem a estratégia de dominação mundial dos EUA não temem expressar-se com uma franqueza brutal. Ela tem o mérito de dissipar ilusões sobre o que a humanidade pode esperar da engrenagem que contempla o Terceiro Mundo como um vasto Protectorado que deve ser governado com mão pesada de modo a que os vassalos se comportem com docilidade. Na Terra organizada sob a égide de Washington, a autonomia dos Estados de economias desenvolvidas também seria limitada, incluindo a dos aliados satélites.
Não foi por acaso que nos últimos dias, Colin Powell, Donald Rumsfeld e Ary Fleischer, o porta-voz da Casa Branca, multiplicaram as advertências à Síria e ao Irão, exigindo que mudem de política, convidando ambos a extraírem as lições implícitas nos acontecimentos do Iraque. O presidente Bush já começou a acusar a Síria de possuir armas químicas. E não terá sido por iniciativa pessoal que o obscuro embaixador dos EUA na Republica Dominicana sugeriu a Fidel que reflicta sobre o destino do povo iraquiano.
A arrogância e o conteúdo ameaçador do discurso neonazi de altos funcionários e militares que falam pela Administração dos EUA ajudam a arrumar as peças do puzzle e a compreender melhor o significado de atitudes e situações inseparáveis dos objectivos a curto e médio prazo do sistema de dominação imperial.
Não é consequência inelutável do rescaldo de uma guerra o espantoso caos implantado em Bagdad. Segundo os jornalistas que acompanharam as tropas invasoras, os «incrustados», divulgadores das mensagens do poder, estaríamos perante uma fatalidade.
Mentem. Transcorridos cinco dias sobre o fim ali da resistência organizada, Bagdad, no momento em que escrevo, continua submetida a saque. Não estamos perante uma explosão de violência incontrolável, orientada apenas para o roubo de alimentos. Não. Grupos organizados assaltam os edifícios públicos e destroem tudo o que ali encontram.
As reportagens de jornalistas dignos e corajosos, como Robert Fisk, e as de correspondentes da BBC, da NBC e da Radio Nederland, confirmam que as forças de ocupação estadunidenses assistem passivamente a essa orgia de selvajaria. Por vezes estimulam o saque.(1) Alguns soldados divertem-se a disparar «ameixas» contra civis, a treinar a pontaria abatendo «galinhas» (mulheres), em exercícios de tiro a alvos humanos.
Destacamentos de tropas especiais protegem as instalações petrolíferas em todo o país. Mas bandos de saqueadores puderam, sob os olhares indiferentes de oficiais e soldados dos EUA, invadir o Museu de Arqueologia de Bagdad, e arrasar ou roubar tudo o que encontraram pelo caminho. O comando americano sabia que o Museu era património da humanidade, uma página viva da história das antigas civilizações de Sumer, Ur, Babilónia, Elam, da Assíria, dos alvores da civilização persa, do mundo Parto, da época Sassanida, etc. Mas os invasores do século XXI comportaram-se como modernos bárbaros, tornando-se cúmplices de um crime de cultoricídio.
Fundações ligadas à cultura norte-americana não hesitam em investir milhões de dólares em fragmentos da antiga porta de Ishtar, de Babilónia. Ou num touro alado de Nimrod, para oferecer esses e outros tesouros artísticos ao Metropolitan Museum, de Nova York. Mas permanecem mudas perante os crimes de lesa cultura cometidos nestes dias na Bagdad ocupada pelas Forças Armadas da União.
O saque da capital iraquiana e sobretudo a vandalização do seu maravilhoso museu nacional de arqueologia, consentidos pelas armas estadunidenses, foram outra advertência do poder imperial. O seu desprezo pela cultura lembra o do III Reich alemão.
A irracionalidade que assinala desde a sua preparação esta guerra de genocídio humano e cultural é tamanha que qualquer esforço de reflexão sobre ela é pobre, insuficiente.
A propaganda imperial orienta agora o massacre mediático desinformativo sobretudo para a ajuda humanitária e a reconstrução do Iraque.
Desmascarar essa ofensiva é outra tarefa urgente.
A estupidez do inimigo, por vezes, ajuda. O general Tommy Franks — um exemplo — teve o descaramento de afirmar em Kabul, após visita de inspecção imperial, que as forças armadas norte-americanas aprenderam muito no Afeganistão e, agora, «a grande prioridade é dar atenção à ajuda humanitária ao povo».
A hipocrisia do discurso sobre a ajuda humanitária somente é excedida pela que envolve o discurso sobre a «reconstrução» do país. Aí — como já salientei em artigo anterior publicado em http://resistir.info — intervêm simultaneamente interesses bilionários de grandes transnacionais e de personalidades da equipa presidencial, e um sinuoso jogo político que se desenvolve na área das relações internacionais.
Ocupada Bagdad e instalada ali a ordem imperial estadunidense, Washington procura obter dos governos que se opuseram à sua «cruzada libertadora», senão a aprovação da guerra, pelo menos a aceitação do facto consumado dela resultante.
Tendo em vista esse objectivo, a chamada «reconstrução» aparece como um terreno de diálogo com os governos da França, da Rússia e da Alemanha. Fatias do bolo a serem distribuídas, embora pequenas, podem ajudar a eliminar resistências e a promover cumplicidades. Pelo que transpirou do encontro no Kremlin entre Putin, Chirac e Schroeder são fundamentados os temores de que o trio se acomode rapidamente ao status quo imposto pelos conquistadores, conformando-se com um papel subalterno para as Nações Unidas. Outra é, felizmente, a atitude dos povos desses países.
Em Paris e Berlim, nos meios oficiais sequer se comenta o maior dos absurdos: Os EUA violaram a carta da ONU, desencadeando uma guerra cujo motivo era, segundo o seu governo, «desarmar Sadam Hussein» possuidor de armas de extermínio maciço que constituiriam ameaça para a humanidade.
O Iraque foi invadido, bombardeado e ocupado, Sadam está desaparecido e, afinal, não foram utilizadas encontradas as terríveis armas anunciadas. Mas Putin, Chirac e Schroeder já iniciaram a metamorfose camaleónica. Tratam agora de dialogar sobre a «reconstrução» de tudo o que os EUA ali destruíram.
A «reconstrução» política, essa, promete criar dissabores a Washington. Um general norte-americano, Jay Gardner, prepara-se para assumir a sua tarefa de procônsul investido por tempo indeterminado de poderes absolutos.
Mas o trabalho dos Quislings iraquianos, isto é de traidores dispostos cumprir ordens do comando estadunidense, não se apresenta sob perspectivas promissoras. Um dos primeiros candidatos foi abatido numa mesquita de Bagdad. Outro, Ahmad Chalabi, que se intitula presidente de um tal Congresso Nacional Iraquiano no exílio, decepcionou Washington com declarações impróprias de alguém que durante anos foi um dócil vassalo do Pentágono.
O líder iraniano Kamenei, dirigindo a oração na grande mesquita de Teerão, afirmou que na memória dos povos do Islão a guerra criminosa contra o Iraque deixará uma lembrança perpétua, comparável à de Hiroshima para a humanidade.
Não creio que exagere. O respeito pelo povo do Iraque, no mundo, tende aliás a acompanhar a subida da maré de repulsa pela agressão que o atingiu.
Não há mentiras forjadas pela propaganda imperial que possam apagar a evidencia. O povo iraquiano opôs-se colectivamente à invasão. Não tinha ilusões sobre o desfecho. É ridículo insistir que a resistência nasceu de uma decisão pessoal de Sadam. Sem o apoio do povo ela seria impossível.
Como escreveu Jean Paul Sartre, em determinadas situações históricas enfrentar a morte é preferível a optar pela vida em troca da renuncia à dignidade.
No caso do Iraque a opção foi colectiva. Eles resistiram durante três semanas, com armas quase obsoletas, ao ataque da gigantesca máquina militar do império que aspira ao domínio do planeta. E a sua resistência, embora noutro quadro, não findou. No domingo realizou-se em Bagdad a primeira manifestação de protesto contra a ocupação. Apareceram cartazes onde se lia: «Yankees Go Home!»
Os grandes poetas árabes vão cantar pelo tempo adiante essa epopeia iraquiana.
Os EUA venceram militarmente a guerra. Ainda não perceberam que já começaram a perdê-la politicamente, o que apressará a decadência do monstruoso sistema de poder neonazi que ali tomou forma, ameaçando a humanidade.
Os heróis estiveram em Bagdad; os covardes foram aqueles que em Washington impuseram a cruzada genocida.
Não é demais repetir que o nosso tempo será recordado como de viragem histórica. Este ano trágico de 2003 traz-me à memória o desespero de milhões de pessoas quando o exército alemão, em Junho de 1940, desfilou ao som de fanfarras sob o arco do Triunfo em Paris. Transcorrido pouco mais de um ano, as tenazes da Wehrmacht fechavam o cerco a Leninegrado e as suas vanguardas chegavam às portas de Moscovo. Para a esmagadora maioria da humanidade o Reich nazi projectava então uma imagem de invencibilidade.
Hoje o sistema de poder dos EUA, de contornos neonazis, também parece invulnerável. Não é. Num contexto histórico muito diferente, e sendo ainda imprevisíveis as circunstancias em que perderá a batalha, terá um destino similar ao de impérios que o precederam.
O clamor dos povos, no 15 de Fevereiro e no 12 de Abril, carrega a esperança da humanidade na luta contra a ameaça que compromete a sua sobrevivência. O projecto neonazi dos EUA não passará.
La Habana, 13/Abr/2003
Notas de rodapé:
(1) Em Kandahar, durante a guerra de agressão ao Afeganistão, quando a cidade, após demorado cerco, decidiu render-se, foi assinado um acordo de capitulação com as forças afegãs aliadas dos EUA que garantia a vida da guarnição. Posteriormente, o comando norte-americano anulou esse acordo. Bandos de salteadores chegaram das montanhas e foram autorizados a entrar em Kandahar. Durante a noite a cidade foi submetida a um saque sangrento. Pela manhã um milhar de cadáveres amontoavam-se nas ruas. A guarnição tinha sido exterminada. (retornar ao texto)