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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
A decadência dos partidos tornou-se nos últimos anos tema de uma campanha permanente que assume proporções mundiais. A sua época teria findado. Os partidos surgiram para responder a situações históricas ultrapassadas; tendo cumprido a sua função, não poderiam numa realidade social profundamente transformada responder ás exigências da evolução natural desta.
Essa campanha, lançada por forças políticas identificadas com a globalização neoliberal e habilmente trabalhada pelos meios de comunicação controlados pelas transnacionais, acabou influenciando segmentos da intelectualidade progressista.
Duas situações contribuíram para dar credibilidade à tese sobre o definhamento irreversível dos partidos. Em primeiro lugar a desagregação da União Soviética e a incapacidade de qualquer dos partidos comunistas do Leste europeu para assumir a defesa dos regimes ditos socialistas. Todos esses partidos, burocratizados, eram na época caricaturas de organizações revolucionarias. No Ocidente, o Partido Comunista Italiano, o maior do mundo capitalista, numa metamorfose rapidíssima transformara-se em social democrata, rumo ao neoliberalismo, renunciando ao marxismo. O Partido Comunista Francês, tendo dado o seu aval no governo Jospin à política de direita do Socialista, segue pelo mesmo caminho.
A outra situação nasceu, paradoxalmente, do subir da maré da contestação às políticas neoliberais que traduzem a aliança do capital norte-americano com o europeu e o japonês. O relevante papel desempenhado pelos movimentos sociais no repudio à globalização capitalista e à crescente agressividade do imperialismo foi interpretado por prestigiados cientistas políticos e sociais como prova convincente da decadência dos partidos políticos. A fragilidade dessas análises reside no seu caracter abrangente. Poderiam ter assinalado a insignificância da contribuição dos partidos de esquerda para o êxito das gigantescas mobilizações de massas de que Seattle aparece como marco de arrancada. Mas em vez de reflectir sobre as causas dessa ausência, optaram por uma conclusão genérica que coincide, no fundamental, com a difundida pelos epígonos do neoliberalismo: a decadência dos partidos seria um fenómeno irreversível.
Os erros cometidos por partidos tão diferentes como o PCUS, o PCI e o PCF apenas três exemplos e a incapacidade transparente por eles evidenciada de responder aos desafios da História não permitem a conclusão voluntarista de que os partidos se tornaram inadequados como instrumentos políticos nas grandes lutas contemporâneas, cabendo doravante aos movimentos sociais assumir o papel que eles desempenharam no passado.
Em França, Robert Hue, o dirigente que acorrentou o PCF ao carro de uma social democracia liberalizante, acaba de ser batido num círculo eleitoral tradicionalmente comunista por um obscuro candidato da direita. Pagou em termos pessoais o preço da capitulação. Um partido que já foi o maior da França obtém hoje menos votos do que os verdes e os trotskistas...
Em Portugal, ex-dirigentes comunistas, defensores de uma «renovação» do partido que o descaracterizaria, reclamam uma modernização que faria do PCP um partido igual aos outros.
Exemplos como os citados comprovam que a burguesia, na batalha ideológica em desenvolvimento, faz o que está a seu alcance para neutralizar e dividir os partidos comunistas. Não porque veja neles instrumentos políticos obsoletos. Mas porque teme que se mantenham fieis ao ideário e ao compromisso que lhes justifica a existência.
Merece reflexão uma realidade. Os partidos comunistas que para se «modernizarem» optaram por reformas supostamente renovadoras do marxismo desapareceram, entraram em processo irreversível de decadência ou transformaram-se em partidos burgueses. Entretanto, hostilizados e caluniados, Partidos Comunistas como o Português, o Partido Comunista do Brasil e o Grego, que se mantiveram fieis aos princípios e valores do marxismo, não só resistiram bem aos choques e campanhas que os atingiram, como conservaram, intacta, a confiança das bases, sendo respeitados pelos trabalhadores.
A participação no I e no II Foro Social Mundial, em Porto Alegre, e o aprofundamento da crise de civilização que a humanidade enfrenta reforçaram em mim, pelo contrário, a convicção de que os próximos anos ficarão a assinalar o fortalecimento dos partidos de esquerda revolucionários como instrumento indispensável de grandes transformações históricas.
Nos últimos meses reli, com proveito, capítulos de obras de Marx e Lenine. Ambos coincidem, na análise de acontecimentos diferentes, em que a existência do partido revolucionário é imprescindível à derrota final do capitalismo.
Não aceito, à partida, como válido o argumento de que, sendo outro o nosso tempo, o recurso a opiniões respeitáveis de clássicos do marxismo demonstraria arcaísmo no entendimento da historia.
Os partidos movem-se e actuam em determinadas situações históricas e é em função delas que a sua estratégia e táctica deve ser apreciada.
Mas as questões, os problemas ligados às formas de intervenção, à organização, à sua estrutura e funcionamento conservam através dos tempos uma actualidade permanente.
É difícil esquecer que quando Marx, com a colaboração de Engels, redigiu o Manifesto Comunista não existiam partidos políticos de esquerda tal como os concebemos hoje. Eles foram os primeiros a chamar a atenção para uma evidência nunca antes mencionada: o proletariado, rebelando-se, não tinha condições para levar à vitoria revolução alguma, em processo espontâneo. Somente o poderia fazer com êxito sob a direcção de um partido revolucionário.
Mas a emergência de um partido revolucionário capaz de assumir essa tarefa tardou ainda muitas décadas.
Não somente surgiu num pais atrasado, como se formou dentro de uma organização com estrutura de movimento. Chamo a atenção para o facto porque o Partido Operário Social Democrata da Rússia (POSDR) nasceu como um grande movimento no âmbito do qual conviveram por muitos anos forças políticas dispares. Nele o único denominador comum era talvez a rejeição da autocracia czarista e da sua política. Foi a Revolução de Fevereiro que clarificou as coisas, iluminando a incompatibilidade de objectivos. No próprio Soviete de Petrogrado a esquerda bolchevique defendeu a partir de Abril um aprofundamento da revolução orientado para a conquista do poder enquanto os mencheviques e os socialistas revolucionários se deslocavam para a direita numa clara aproximação à burguesia.
Não é, obviamente, essa complexa dualidade de poderes que nos interessa estudar aqui. O mundo do ano 2002 não se assemelha minimamente ao das vésperas da Revolução de Outubro, nem a classe operária nos países industrializados permite paralelos com o proletariado russo da época.
Para quê então ir tão longe? Quais as lições desses acontecimentos que nos interessam hoje?
O que mudou muito pouco foi o comportamento dos homens. Se assim não fosse o «Príncipe » de Maquiavel não conservaria a sua modernidade e o mais antigo tratado sobre Política, o do indiano Kautalya, com 22 séculos, não continuaria a ser fonte de ensinamentos actualíssimos.
O aparecimento do primeiro partido revolucionário moderno, o bolchevique, correspondeu a uma exigência da historia. Estavam criadas as condições objectivas para a destruição de um regime monstruoso. Mas foi necessário que, num parto lento, o partido revolucionário brotasse do movimento que o gerou para que a ruptura definitiva com a velha ordem se produzisse.
E hoje que desafio enfrentamos?
No inicio do século XXI, quando o homem, de pé no limiar do universo, realizou prodigiosas conquistas científicas e culturais que deveriam ser colocadas a serviço do bem estar e do progresso, o que acontece? A fome, a miséria, a ignorância alastram enquanto a riqueza se concentra nas mãos de uma ínfima minoria de privilegiados.
Nunca, desde o III Reich nazi repito-o incansavelmente a humanidade enfrentou uma ameaça comparável à resultante da ambição ilimitada do sistema de poder dos EUA.
Centenas de milhões de pessoas, recorrendo a diferentes formas de luta, manifestam hoje a sua rejeição das políticas neoliberais. Mas uma percentagem considerável dessas massas que repudiam a globalização capitalista e recusam a ordem social que ela pretende impor na Terra não tomou ainda consciência de que esse projecto é complemento de outro ainda mais inquietante. Refiro-me à estratégia imperial que aponta para a militarização do planeta, para o perigo da ditadura mundial exercida pelo sistema de poder dos EUA.
A irracionalidade dessa estratégia cuja imagem está plasmada em guerras de agressão como as do Golfo, da Bósnia, do Kosovo, do Afeganistão está a provocar uma reacção crescente dos povos.
Seattle, Melbourne, Praga, Gotemburgo, Quebec, Génova, Barcelona, Sevilha, Porto Alegre serão, entre outros, protestos recordados como marcos da resistência crescente da humanidade a ameaças que colocam em causa a sua própria continuidade.
Paralelamente, produzem-se em ritmo crescente, em países do Terceiro Mundo, protestos populares de outro tipo que mobilizam grandes massas. As situações que provocaram em cada um deles a explosão da violência colectiva diferem e na maioria dos casos são inseparáveis de problemas locais. Mas na origem da cólera das massas encontramos em todos as consequências das políticas neoliberais impostas pelos Estados Unidos, através do FMI e do Banco Mundial.
Na Argentina, elas levaram o país à falência, gerando a maior crise de sempre. A amplitude da revolta popular somente não desembocou numa situação revolucionária porque faltou, precisamente, um instrumento político partido ou frente capaz de assumir a direcção das massas, com uma estratégia marcada por objectivos políticos claros, fazendo da sua disponibilidade para a luta uma arma decisiva para a conquista do poder.
Na Bolívia, no Paraguai e sobretudo no Equador, ha dois anos, quando os indígenas da CONAIE chegaram a tomar Quito, essas súbitas explosões de repudio popular a políticas de recorte imperial apresentaram facetas insurreccionais.
O mais recente desses protestos foi o que em Arequipa, Cuzco e, de modo geral em todo o Sul do Peru, mobilizou centenas de milhares de pessoas contra a lei que privatizava a empresa produtora de energia eléctrica. Ao verificar, alarmado, que o movimento assumia as proporções de uma insurreição popular apoiada pelos alcaides da região, Alejandro Toledo que tipifica bem os presidentes lacaios da América Latina recuou, suspendendo a execução do projecto de entrega da energia a uma empresa belga.
Também neste caso, um poder frágil, sem base social minimamente consistente, sustentado pelo imperialismo, foi beneficiado pela inexistência de uma força política com forte implantação entre as massas, capaz de capitalizar o descontentamento popular, intervindo decisivamente nos acontecimentos.
Na Colômbia, a guerrilha das FARC transformou-se num autentico Exército Popular e, demonstra, dia após dia, que é possível, em determinadas condições, resistir vitoriosamente pelas armas a um Estado oligárquico sustentado militar e politicamente pelos EUA.
No Brasil o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, alvo de uma repressão permanente e brutal, resiste também a todos os esforços para o aniquilar e aparece como exemplo de experiências inovadoras que geram uma grande esperança entre as massas camponesas do Continente.
Uma intensa luta de classes está presente em todos esses choques. Uma luta de classes que adquire crescente importância nas confrontações que se sucedem, não obstante as forças no poder proclamarem que é coisa do passado.
Marx escreveu páginas muito interessantes sobre a «arte da insurreição» e Lenine retomou e desenvolveu o tema.
Por muito que isso choque os profetas do pessimismo, descrentes da possibilidade de uma alternativa para a globalização capitalista, acredito que a humanidade se encontra, pelo contrário, no patamar de um período de gigantescas lutas.
Pela primeira vez na historia, a contestação a uma política que afecta simultaneamente a totalidade dos países subdesenvolvidos encontra uma resposta que é também global. A rejeição mobiliza milhões de pessoas em todos os Continentes. Nunca antes se assistira a um fenómeno similar.
Na actual etapa histórica os movimentos sociais têm desenvolvido um esforço impressionante que ultrapassou as expectativas mais optimistas. Mas o seu papel na luta tem limitações inultrapassáveis. Falta-lhes a unidade de direcção, a organicidade, a firmeza no combate, a clareza dos objectivos que somente os partidos revolucionários (ou frentes com estrutura partidária) podem assegurar.
A história ensina-nos que as insurreições de forças elementares podem abalar, mas não destruir os alicerces dos regimes burgueses. A revolta popular, por mais ampla que seja, quando não ultrapassa o quadro dos movimentos espontaneístas, perde ímpeto, dilui-se, não atinge a fase que culmina com a derrota do poder e a implantação de uma nova ordem social, sua meta natural.
Após o terramoto social e político que foi a primeira guerra mundial, as revoluções alemã e austríaca de 1918, a húngara e a italiana de 1919 e a espanhola de 1931 fracassaram todas precisamente porque o formidável movimento de massas que em cada uma delas havia sido o instrumento da destruição da velha ordem monárquica não foi dirigido por um partido capaz de impedir a burguesia de se impor na luta pela preservação do regime social, ou seja do capitalismo. Na Europa, a social democracia contribuiu decisivamente para o funeral de algumas dessas revoluções. Na China, durante a revolução de 1925-27, o Partido Comunista, ainda débil, foi vítima da sua aliança oportunista com o Kuomitang de Chiang-Cai-Chek.
Não alimentemos a ilusão de que por si só, a dinâmica dos grandes Foros onde denunciamos os males da Globalização imperial e debatemos a procura de alternativas ao neoliberalismo nos aproximará do objectivo condensado no lema humanista: «outro mundo é possível».
Henry Kissinger, numa conferência pronunciada no Trinity College de Dublin, na Irlanda, fez uma interessante confissão: «o desafio básico é que a chamada globalização é realmente um outro nome para o papel hegemónico dos Estados Unidos». Essas palavras, proferidas há três anos, iluminam uma evidencia que alguns intelectuais simulam esquecer. É ingénuo, para não dizer utópico, o discurso de quantos acreditam na possibilidade de uma reforma do capitalismo que o humanize. O capitalismo é, pela sua própria essência, desumanizante. E os seus imponentes pilares assentam no sistema imperial dos EUA.
Esse sistema de poder é o inimigo concreto, permanente, o grande adversário das forças democráticas e progressistas que se batem contra o neoliberalismo e suas sequelas, de Seattle a Sevilha, das solidões andinas às pampas argentinas, das montanhas e selvas da Colômbia às minas africanas, das misérrimas megalópolis da Índia às siderurgias russas, das cadeias de montagem da União Europeia aos campos petrolíferos do Médio Oriente.
Em cada processo revolucionário golpeado, em cada experiência progressista afogada em sangue por intervenções estrangeiras identificamos no ultimo meio século a mão, o ouro e as armas do sistema de poder imperial dos EUA.
Nestas semanas é ele o grande responsável da tragédia que transforma a terra árabe da Palestina milenária num mostruário da barbárie fascista reassumida pelo sionismo. Foi ele o inspirador do frustrado golpe de Abril contra o governo democrático de Chavez. É ele quem incentiva, financia e aplaude o recomeço da conspiração contra a Revolução Bolivariana, consciente de que esta não conseguiu criar ainda o partido revolucionário sem o qual ela não pode ser defendida eficazmente.
Na crise global que vivemos objectam os pusilânimes que o poder económico, político e militar dos EUA é tamanho que, por tempo imprevisível, qualquer tentativa de o combater organizadamente seria inútil, por votada a uma derrota inevitável.
Esquecem que todos os grandes impérios no auge do seu fastígio exibiram uma imagem de invulnerabilidade. Assim foi com Alexandre, com Roma, com Napoleão, com a Inglaterra. Entretanto, todos ruíram.
No caso actual, o calcanhar de Aquiles do Império Americano é inseparável da irracionalidade da sua estratégia de poder. A sua ambição de domínio perpétuo, desenvolvida num período brevíssimo e exercida em escala planetária, gerou na reduzida elite que controla o poder em íntima aliança com os gigantes transnacionais, a convicção de que os povos da Terra, com a excepção de uma pequena minoria (G-7 e adjacências) podem e merecem receber o tratamento de escravos de novo tipo. A incultura e a escassa inteligência de um Presidente levado à Casa Branca precisamente pelo seu primarismo intelectual, agravaram as consequências da irracionalidade de um desígnio imperial que, após os acontecimentos do 11 de Setembro, rola com uma dinâmica tresloucada que faz germinar as sementes do fascismo.
A rebelião crescente dos povos, manifestada de múltiplas maneiras, é a resposta da Historia a essa irracionalidade. Ela tende a subir como as ondas do oceano nas grandes tempestades. E será na própria luta que tomarão forma os instrumentos de combate adequados a sua condução.
Os movimentos sociais continuarão a cumprir o papel que tão bem têm desempenhado. Foi deles que partiu o arranque na contestação mundial à globalização capitalista. Mas na próxima fase, caberá ao partido político de novo tipo uma função insubstituível.
Dir-se-á que são ainda difusos os contornos desse partido. Será a própria luta a defini-los.
A historia não se repete. Mas como as causas que determinaram as grandes revoluções não desapareceram, a revolta dos explorados e excluídos contra o sistema de poder monstruoso que desenvolve uma estratégia ameaçadora para a humanidade como conjunto é uma defesa e uma exigência que reactualiza os ideais da revolução humanista. E nessa revolta o partido revolucionário surge como necessidade.
O antídoto contra a neobarbárie do Império americano não será uma insurreição no estilo antigo. A humanidade, como sempre, encontrará a saída para esta crise global da civilização, a maior, a mais angustiante de todas.